quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Nada além de Orlando Silva

                                                                                   

Nada além
Nada além de uma ilusão
Chega bem
Que é demais para o meu coração
Acreditando
Em tudo que o amor mentindo sempre diz
Eu vou vivendo assim feliz
Na ilusão de ser feliz
Se o amor só nos causa sofrimento e dor
É melhor , bem melhor a ilusão do amor
eu não quero e nem peço
para o meu coração
nada além de uma linda ilusão.   

   No Teatro Recreio em uma peça chamada Rumo ao Catete, em alusão a Getúlio Vargas, uma cena mostrava um homem de aparência simples examinando mercadorias em uma loja. Um vendedor o interpela: “Afinal, o que deseja o cavalheiro?“. Cantarolando o freguês responde: “Nada além, nada além de uma ilusão“. Caíra o refrão na boca do povo.
   Em 1938 Orlando Silva, o cantor das multidões, tornou imortal este sucesso de Custódio Mesquita e Mário Lago. Vivia o Brasil a época áurea da Era do Rádio com grandes compositores (Ary Barroso, João de Barro, Lupicínio Rodrigues, Ataulfo Alves, Assis Valente) e cantores (Orlando Silva, Francisco Alves, Nelson Gonçalves, Araci de Almeida, Carmen Miranda). A safra musical farta deste ano constava ainda de pérolas como:
Abre a Janela (Arlindo Marques Junior e Roberto Roberti): 
“Abre a janela formosa mulher / e vem dizer adeus a quem te adora/ apesar de te amar/ como sempre amei/ na hora da orgia eu vou embora / vou partir e tu tens que me dar perdão / porque fica contigo o meu coração / pode crer que acabando a orgia / voltarei para tua companhia “. 
A velha manha do malandro posta às claras num pedaço de canção.    
Se acaso você chegasse (Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins): Lupicínio, boêmio e inveterado conquistador, transformou em samba um episódio amoroso envolvendo ele próprio e um amigo (?), Heitor Barros, que sofrera perdas no quesito fidelidade: 
“Se acaso você chegasse / no meu chatô encontrasse / aquela mulher / que você gostou/será que tinha coragem/ de trocar nossa amizade / por ela que já lhe abandonou / eu falo porque essa dama / já mora no meu barraco/ à beira de um regato/ e de um bosque em flor/ de dia me lava a roupa/ de noite me beija a boca / e assim nós vamos vivendo de amor “
   O que poderia ter como epílogo uma tragédia, mostrou um final feliz de novela com o perdão do piedoso Heitor, que não agiu como aquele seu homônimo grego, o mais valente dos chefes troianos.
   Último desejo (Noel Rosa): Este samba–lamento, o poeta da vila o compôs no final de sua curta jornada terrena. De caráter claramente autobiográfico, endereçado com açúcar e com afeto para o grande amor de sua vida, Juraci Correia dos Santos, a Ceci, bela dama de um cabaré da Lapa. Morto em maio de 37, aos 26 anos de idade, Noel não teve o prazer de ver sua amiga Aracy de Almeida lançar a música em março de 38: 
“Nosso amor que eu não esqueço/ e que teve o seu começo/ numa festa de São João/ morre hoje sem foguete , sem retrato e sem bilhete/ sem luar , sem violão/ perto de você me calo tudo penso e nada falo/tenho medo de chorar/ nunca mais quero teus beijos/mas meu último desejo/ você não pode negar/ se alguma pessoa amiga / pedir que você lhe diga / se você me quer ou não/ diga que você me adora/ que você lamenta e chora a nossa separação/ e às pessoas que que eu detesto / diga sempre que eu não presto/ que o meu lar é o botequim/ que eu arruinei sua vida / que eu não mereço a comida/ que você pagou pra mim”. 
   O “nunca mais quero os teus beijos“ mostra o cuidado do poeta em evitar uma possível contaminação da tuberculose para sua amada. A despeito disto trocando beijos e afagos mil, Noel e Ceci partiram para a orgia numa outra dimensão. Alegam os puristas que a dupla “encantou-se“ por conta da peste branca (tuberculose) que grassava por aqueles arraiais; já outros mais pés-no-chão, creditam somente aos males de amores mal resolvidos o motivo da precoce partida de ambos. Permanece ainda um assunto em aberto.
   Orlando Garcia da Silva (1915–1978), carioca do Engenho de Dentro, de pai violonista e boêmio, integrante de um conjunto do célebre Pixinguinha. Curtiu uma infância pobre, tendo seu genitor sido uma das milhares de vítimas fatais da terrível Gripe Espanhola de 1918. Orlando exerceu humildes atividades laborais como sapateiro, vendedor de tecidos e trocador de ônibus. Em um sério acidente de trânsito perdeu quatro dedos de um pé esmagados por um bonde em movimento. Internado num hospital público por uma longa temporada e por conta de atrozes dores foi inadvertidamente apresentado a Morfeu –o deus grego do sono- por intermédio da morfina, um potente analgésico. A facilidade que este fármaco tem de aplacar dores físicas é mesma de gerar dependência somática e psíquica. Ao longo de sua dolorosa estrada, tal droga haveria de promover danos irreparáveis na maviosa voz de Orlando e de sua vida de um modo geral. 
   Tal infortúnio também alcançou um outro ídolo da música, seu contemporâneo, o grande cantor Nelson Gonçalves, só que desta vez em decorrência do uso desregrado de cocaína. Ah!, as dores da vida esmagando literalmente seus pobres filhos!. O compositor carioca Bororó, autor de “da cor do pecado“ introduziu Orlando Silva no mundo artístico sob as generosas mãos de Francisco Alves, o Chico Viola. Entre 1937–1945, o mesmo período da segunda guerra mundial, Orlando Silva, o Cantor das Multidões, num curto e fecundo reinado, tornou-se a maior referência da música romântica brasileira. De 1945 até 1978, o que se ouviu foi apenas uma caricatura barata do grande cantor das multidões, buscando sair das trevas.
   Composições defendidas por Orlando Silva:Jardineira; a última estrofe; lábios que beijei; nada além; rosa; risque; sempre no meu coração; estrela d’alva; sertaneja; carinhoso; velho realejo; número um; juramento falso; aos pés da cruz; curare.
   Orlando Silva permaneceu nos porões do Inferno de Dante, durante duas décadas, levado pela mãos traiçoeiras do álcool e da morfina. Em 7 de agosto de 1978, enfim, Orlando obteve sua carta de alforria por conta de uma isquemia cerebral, aos 63 anos de idade. Calou–se para sempre uma das mais maravilhosas vozes da nossa rica Música Popular Brasileira.

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