terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Batom no espelho e quase sangue


“Tantas palavras , meias palavras / nosso apartamento , um pedaço de Saigon / me disse adeus em um espelho com batom/ vai minha estrela , iluminando / toda esta cidade , como um céu de luz neon / seu brilho silencia todo som/ às vezes , você anda por aí / brinca de se entregar / sonha pra não dormir / e quase sempre eu penso em te deixar e / é só você chegar , pra eu esquecer de mim/ anoiteceu , olho pro céu e vejo como é bom/ ver as estrelas na escuridão / espero você voltar pra Saigon “

   O servidor público e boêmio Orisvaldo da Silva, tirou licença – prêmio do Bar da Alegria, onde comumente animava uma roda brega – romântica, com uma fiel imitação do cantor taurino pernambucano Orlando Dias, de saudosa memória.

“Tu és a criatura mais linda que os meus olhos já viram / tu tens a boca mais linda que a minha boca beijou / são meus os teus lábios / estes lábios que os meus desejos mataram / são minhas tuas mãos / estas mãos que as minhas mãos afagaram /sou louco por ti /eu sofro por ti / te amo em segredo / adoro o teu porte divino / pela mão do destino / a mim tu vieste / tenho ciúme do sol , do luar, do mar / tenho ciúme de tudo / tenho ciúme até da roupa que tu veste “

   Numa Autarquia do Estado, onde prestava serviço há trinta anos, Orisvaldo agora andava casmurro e cabisbaixo. Acomodava em sua cadeira de trabalho o surrado paletó de linho branco que até o mês passado lá no campo ainda era flor, como na música de Ednardo, e escorregava de fininho para um boteco próximo com o intuito de enfrentar umas “sapuparas “com pitombas de vez. Pairava algum reboliço no ar , assim farejava a rádio - peão . 
Há coisa de seis meses , a cabocla maranhense Jussara das Quintas, uma reluzente estampa do tipo rainha de bateria da Unidos do Acaracuzinho“, que batia ponto na Boate Continental assinara contrato verbal com o dito Orisvaldo para bater bola no oitavo andar do famigerado edifício “ balança mas não cai“, ali pras bandas da Avenida Duque de Caxias e que bem poderia ser Saigon. 
Tudo quase foi por água abaixo, quando um desinfeliz foi segredar para Orisvaldo que alguém do “MST“ estava invadindo sua propriedade privada e mexendo com sua ovelha cabocla. Numa rápida busca pela “feira dos malandros“ caíra-lhe às mãos um Taurus 38 cano curto, com numeração raspada, tinindo e doido para resolver qualquer parada cuspindo fogo. Mais uma tragédia anunciada, pelo visto. Naquela noite, Orisvaldo, passando a mão pela cabeça em busca de não sei o que, meio truviscado, adentrou no recinto, cheirando a uma mistura de cachaça e crônica policial, disposto a dar marradas a torto e a direito. Do outro lado do campo, Jussara, envergando um baby–doll preto bem curtinho, deu trato ao bicho brabo com uns beijos quentes e loucos daqueles de arrebentar qualquer bridge mal posta. Foi uma contenda e tanto com direito a prorrogação e mata- mata. Orisvaldo, em franco nocaute técnico deu bobeira deixando inocentemente à mostra, o pau–de– fogo em cima da penteadeira. Jussara, faceira e não besta, escafedeu-se postando uma pequena mensagem no espelho do quarto, com batom, partindo para um lugar incerto e não sabido, com fins de preservar a ordem e o seu bem mais precioso, aquela luzente estampa de capa de playboy. E ademais, seguro morreu de velho. 
O valente Orisvaldo mandou chumbo grosso em todos os discos de Orlando Dias até esquecer a desventura cabocla mas, ainda, choramingava baixinho, desde que, estando só:

“Quem eu quero não me quer / quem me quer mandei embora /e por isso eu já nem sei / o que será de mim agora / passo as noites meditando / relembrando o meu castigo / no meu quarto de saudade / solidão mora comigo / por onde anda quem me quer / quem não me quer onde andará/ o que será de sua vida / da minha vida o que será / não sou capaz de ser feliz / nos braços de um amor qualquer / ah! Se uma fosse a outra / que eu amo tanto e não me quer “

“Esta noite eu queria que o mundo acabasse / e para o inferno o senhor me mandasse /para pagar todos os pecados meus /eu fiz sofrer a quem tanto me quis / fiz de ti meu amor infeliz / esta noite eu queria morrer/ perdão ! / quantas vezes tu me perdoaste / quanto pranto por mim derramaste / hoje o remorso me faz padecer/ esta é a noite da minha agonia / é a noite da minha tristeza / por isso eu quero morrer“

   Por pouco não se escreveu com sangue inocente mais uma crônica policial nesta pobre terrinha machista. Orisvaldo, meu irmão, fique frio, isso se trata de coisa saindo de sua cabeça. Encontra – se em andamento uma mudança da lei para os casos de invasão de propriedade privada no Brasil. O invasor passará a receber certas regalias. Conforme–se, criatura  você não está só e respeite a lei, ôxente!

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