sábado, 28 de março de 2015

GRANDE OTELO  :  OURO E PRATA

Sebastião Bernardo Silva ( Grande Otelo ) , chegou ao mundo em Uberlândia ( Minas Gerais ) no dia 18 de outubro de 1917 . Cantor  , compositor , comediante , ator e poeta .Um verdadeiro  artista multimídia . Filho de Maria Abadia de Souza  , alcoolista ,  e de Francisco Bernardo Costa , que teve um fim trágico  -  assassinado - . Bastiãozinho , como era chamado o petiz , viveu desde cedo nas escolas da vida perambulando por logradouros de adultos onde  assimilou  a arte de se virar e  de não se perder na vastidão do mundo . Fez sucesso vestindo uma indumentária feminina  ,  com um travesseiro nas nádegas ,   em dupla com um palhaço de circo . Isto aos  6 anos de idade  e para espanto de todos cantando  e declamando  em outros idiomas .
Em passagem por Uberlândia  , a Companhia de Comédias e Variedades Sarah Bernhardt  leva Bastiãozinho  para São Paulo . Por essa época  ,  recebeu o apelido de Otelo , de um maestro  italiano  Filipo Alesso que previa um futuro de tenor para o garoto sapeca e em alusão à peça “ Otelo “ de Giuseppe Verdi . Engano do maestro  , segundo as palavras do próprio agora Otelo :  “ – Mas não deu certo , nem cresci , pois  parei em hum metro e meio e nem cantei ópera “ .
Em 1926  ,  aos 10 anos de idade estreia em São Paulo e percorre em turnê várias cidades com peças apropriadas ao seu tipo : “ Tudo Preto “ ; “ Preto no branco “ ;  “ Carvão Nacional “ . Ninguém  na oportunidade  autuou ninguém  em  crimes como trabalho infantil nem como preconceito racial . No ano seguinte Otelo deixa a Companhia de Comédias e pula para a clandestinidade das ruas com todos os seus perigos até ser internado num Abrigo de Menores   .   Dali é resgatado pela família do advogado Antônio de Queiroz  ,  que reconduz o garoto nas veredas da vida ordeira , abrindo possibilidades de um futuro promissor  do garoto  . Em 1933 por iniciativa própria ,  Otelo corta o cordão umbilical com a família Queiroz assumindo por completo sua missão de artista de palco. Firma contrato profissional com a Companhia de Revistas de Jardel  Jércolis  , onde passa a ser conhecido como “ Grande Otelo “ .
Em 1936 Grande Otelo faz sucesso com a peça “ Maravilhosa “  e chama a atenção de todos interpretando “ No Tabuleiro da Baiana” com a mulata Déo Maia .
Em 1939 Grande Otelo , aos 22 anos , contracena com a famosa cantora e dançarina Josephine Baker ( 1906 – 1975 ) denominada de Vênus Negra  , num dos mais importantes marcos de sua gloriosa carreira . Em 1942  ,  Grande Otelo em parceria com Herivelto Martins ( 1912 – 1992 )  lança um retumbante sucesso    , o samba carnavalesco “ Praça Onze “ , numa curta carreira de compositor  :
“  Vão acabar com a Praça Onze / não vai haver mais Escola de Samba , não vai / chora o tamborim / chora o morro inteiro / Favela , Salgueiro / Mangueira , Estação Primeira / guardai os vossos pandeiros , guardai / porque a Escola de Samba não sai / adeus , minha Praça Onze , adeus / já sabemos que vais desaparecer / leva contigo a nossa recordação / mas ficarás eternamente em nosso coração /e algum dia nova praça nós teremos / e o teu passado cantaremos “ .
Nas décadas de 40 e 50 encontramos Grande Otelo participando ativamente de Chanchadas que reuniam comédias e números musicais  , fazendo uma imortal dupla com o comediante Oscarito ( 1906 – 1970 ) .  Depois trabalhou com outro astro do cinema de nome Ankito ( 1924 – 2009 )  . Destaques no cinema  para :  Aviso aos Navegantes ( 1950 ) ;   Canção Atlântida ( 1952 )  ;  Dupla do Barulho ( 1953 )  e Matar ou Correr ( 1954 ) . Este último uma paródia para o clássico do faroeste  Matar ou Morrer ,  de  Fred Zinnemann estrelado por Gary  Cooper como xerife  .
Uma tragédia passional  se interpõe na vida de Grande Otelo  em 1949  . Sua esposa Lúcia Maria comete suicídio e leva consigo  , seu filho menor de 6 anos  conhecido como  Chuvisco  . Um golpe duro para a sensível alma do artista que se afoga de vez  em  homéricas bebedeiras .   O escritor paraibano  José Lins do Rego ( 1901 – 1957 )   através do jornal “ O Globo “ escreve sobre o nefasto ocorrido : “ ....Tratava-se do nosso Otelo , o artista fruto de nosso teatro de revista , o negro das caretas e dos gestos grotescos , o cantor da Praça Onze , o pobre rapaz arrebatado pelo choque de uma tragédia . Vi a cara que é uma fonte de riso transformada numa cara de sofrimento , de amargura , de desespero . E li o noticiário impiedoso e quase chorei .  Uma repulsa geral  pelos homens atiçou- me na alma a vergonha de ser de uma sociedade  de sádicos e de doentes de espírito . Caro Otelo , estou contigo . Mal te conheço , no entanto ,  conheço o bastante para te mandar um abraço de homem , que te sabe vítima do destino sem entranhas . Ontem à noite , à força de um contrato te levou ao palco para fazer os outros rirem . E dizem que não suportaste a dor .  E sua máscara se rasgou em  público . E o público que  queria gozar o cômico arrasado pela dor , muito terá sofrido , apesar do sadismo monstruoso . O pranto de Otelo abafou a sala , encheu o teatro , rompeu a rua , correu para o apartamento vazio , onde o seu Chuvisco , coitado , era uma sombra de menino morto “ .
Grande Otelo fez sucesso ainda  com os filmes  Rio Zona Norte ( 1957 )  ; Assalto ao trem pagador ( 1962 ) ;  e o marcante Macunaíma ( 1969 )  dirigido por Joaquim Pedro de Andrade . Sua carreira marcada por altos e baixos devia- se  em parte ao estilo de vida boêmio e livre de compromissos escolhidos pelo artista , que , contudo representa um dos mais completos artistas do país . Mário Prata  , jornalista e escritor  mineiro ,  conta que certa feita teve um encontro com Grande Otelo num bar em Copacabana . Otelo já meio tomado pelo álcool  chorando  sobe no colo de Mário dizendo – se seu primo . O pai de Otelo fora escravo de seu avô em Minas  . Um dia Mário convidou Otelo para trabalhar numa telenovela na TV  Manchete .  A resposta foi a seguinte  : “ Primo ,eu sou contratado da Globo e não faço nada por lá . Você quer me levar pra Manchete pra ganhar menos e , provavelmente,  não receber e ainda por cima  ter que trabalhar ? . Não , primo , isso não vai dar certo ! “ .
Grande Otelo morreu  de um enfarte do miocárdio em  26 de novembro1993 numa  viagem  a Paris , onde receberia uma homenagem  num  Festival em  Nantes  .
O cantor Benito de Paula compôs  uma  música como  uma singela  homenagem a Grande Otelo  :
“ Tens o dom de ser/ risos e perdão / tens no palco a vida teu coração / Grande Otelo é festa / eu quero aplaudir / sempre chora e ri / quase ao mesmo tempo / o cinema livre / é seu pensamento /  Grande Otelo é festa / eu quero aplaudir /  és o meu herói / és meu rei menino / és Macunaíma /és um peregrino / um gigante em cena /eu quero aplaudir “ .

quarta-feira, 25 de março de 2015

MONSUETO  :   MORA NA FILOSOFIA

Monsueto Campos Menezes  ( 1924 – 1973 ) , compositor , cantor , sambista , comediante , ator , instrumentista e pintor . Há de se convir  , um legítimo  homem de sete instrumentos  . Nasceu na Gávea  , no Morro do Pinto em 04 de novembro de 1924 no Rio de Janeiro . Teve  uma infância  pobre e  ficou órfão de pai e mãe aos 3 anos de idade . Frequentou um colégio até o quinto ano primário  .  Dali partiu para ganhar a vida e  aos 15 anos de idade já tocava na bateria de escolas de samba da redondeza  , de onde saltou para o trabalho noturno em bares e cabarés exercendo a função de baterista  . Durante um breve período trabalhou com um irmão em uma  tinturaria . O seu verdadeiro mundo estava na música e na boemia  , assim estava escrito nas estrelas ou nas entrelinhas do destino .
Em 1951 estreou  Monsueto  com o samba “ Me deixa em paz “ na voz de Linda Batista ( 1919 – 1988 )  e que logo caiu na boca do povo  , tornando –se de pronto um retumbante e duradouro  sucesso .
“ Se  você não me queria / não devia me procurar / não devia me iludir / nem deixar eu me apaixonar  /evitar a dor é impossível / evitar este amor é muito mais / você arruinou a minha vida / ora vai mulher / me deixe em paz “ .
Em 1953 compôs o samba  “ A fonte secou “ , um clássico desde cedo  :
“ Eu não sou água pra me tratares assim/ só na hora da sede é que procuras por mim/ a fonte secou / quero dizer que entre nós / tudo acabou / seu egoísmo me libertou / não deves mais me procurar / a fonte do amor secou / mas os seus olhos / nunca mais hão de secar “ .
Duas curtas composições sobre dores de amores mostrando a profundidade do sentimento envolvido nestas pelejas do  cotidiano na visão de um autêntico poeta do morro .
“ Mora na Filosofia “ surgida em 1954 tornou-se um grande sucesso carnavalesco na voz de Marlene ( 1922 – 2014 ) :
“ Eu ... vou lhe dar a decisão / botei na balança e você não pesou / botei na peneira , você não passou / mora na filosofia / pra que rimar amor e dor / se seu corpo ficasse marcado / por lábios ou mãos carinhosas / eu saberia ( ora vá mulher ) / a quantos você pertencia / não vou me preocupar / porque /  o teu caso não é de ver pra crer / tá na cara “ .
Nos anos 60 e 70 do século passado  ,  grandes nomes da MPB como  Maria Betânia ( 1946 )  e Caetano Veloso ( 1942 )  regravaram este samba – clássico .
Monsueto participou de programas humorísticos ( Noites Cariocas ) ,  filmes ( Na Corda Bamba ) e espetáculos teatrais ( Copacabana de Tal ) revelando sua real versatilidade  .  Ainda  dispôs  de tempo para enveredar  pelos caminhos  da pintura , sendo inclusive premiado no Salão Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro em 1972 . É de sua autoria  uma “  Santa Ceia “  em que Jesus e seus apóstolos são  representados como  negros .
Forte cunho social  na relação patrão x empregado , como nos tempos  da senzala ,   evidencia - se na música “ O Lamento da Lavadeira “ :
Ô  , dona Maria / olha a roupa , dona Maria / ai , meu Deus ! / tomara que não falte água / sabão  , um pedacinho assim/ a água , um pinguinho assim/ o tanque , um tanquinho assim/ a roupa , um montão assim/ para lavar a roupa da minha sinhá / para lavar a roupa da minha sinhá /  quintal , um quintalzinho assim / a corda , uma  cordinha assim/ o sol , um solzinho assim/  a roupa , um montão assim/ para secar a roupa da minha sinhá / para secar a roupa da minha sinhá / a sala , uma salinha assim / a mesa , uma mesinha assim / o ferro , um ferrinho assim/ a roupa um montão assim/ para passar a roupa da minha sinhá / para passar a roupa da minha sinhá /  trabalho , um tantão assim / cansaço é bastante sim / a roupa , um montão assim / dinheiro , um tiquinho assim / para lavar a roupa da minha sinhá / para lavar a roupa da minha sinhá “ .


Monsueto  empreendeu uma viagem definitiva  em 1973 em decorrência de um câncer no  fígado , mas continua por aí morando na filosofia com picardia e bom humor . Junto com  Zé Keti  ( 1921 – 1999 ) , Nelson Cavaquinho ( 1911 – 1986 ) , Cartola ( 1908 – 1980 )  e Carlos Cachaça  ( 1902 – 1999 )  , forma um seleto grupo de poetas do morro e filósofos do cotidiano de nossa rica  Música Popular brasileira .

domingo, 22 de março de 2015

HUMILDADE NO REINO BRASILIS
Faz pouco  , assessores de uma autoridade política pátria  sugeriram que a mesma se cobrisse de humildade na lida com seus súditos aqui  no Reino Brasilis . Tudo por conta de um grave descompasso entre intenção e gesto  presente no grave momento que vivemos por essas bandas  . Deve-se  , contudo ,  levar em conta que  uma virtude de tal magnitude como a humildade não  se compra num “ pegue – pague “ qualquer da vida como por exemplo , um sabão em pó ou uma  miúda aspirina .
As virtudes tratam – se  de uma disposição adquirida , e deste modo , não se nasce virtuoso como não se nasce sábio e sim , néscio . Para tal exige- se esforço  , tempo e disposição vera  pois esse  atributo não cai do céu feito chuva ou meteoro . Na virtude da humildade o bicho – homem não se sente inferior aos seus semelhantes   e portanto aqui  não há que se confundir com servilismo  ou baixeza . Muito pelo contrário  , representa  um fiel sinal de grandeza . E  não se esbarra  por aí  no meio político da  terrinha  nossa  com a frequência  mínima desejada .  A bendita humildade anda de mãos dadas ao vento  com a tolerância que equivale a deixar fazer aquilo que se poderia impedir ou  punir . A convivência com o contrário exige maturidade e deve se abrir um combate de ideias sem o uso de força ou coerção  . Não é proibido proibir  , apenas é proibido proibir o que deve ser protegido  , como a liberdade de expressão  e de consciência  , o livre choque dos argumentos ( Comte – Sponville , A . ) .
Nestes tempos bicudos praticar as virtudes cardeais como a  coragem , a temperança , a justiça  e a prudência facilitariam nosso caminhar neste mundo vário , complexo e perigoso do século XXI .
Billy Blanco ( 1924 - 2011 ) ,  paraense , arquiteto e  músico da primeira leva de compositores da Bossa Nova  manda uns recados certeiros como  a “ Banca do Distinto “ e “ Se a Gente Grande Soubesse “  bem pertinentes para o atual momento que vivemos , estes ásperos tempos   de  intolerância :
“ Não fala com pobre , não dá mão a preto / não carrega embrulho / pra que tanta pose , doutor / pra que  esse orgulho / a bruxa que é cega esbarra na gente /e a vida estanca / o enfarte lhe pega , doutor / e acaba esta banca / a vaidade é assim , põe o bobo no alto / e retira a escada / mas fica por perto esperando sentada / mais cedo ou mais tarde ele acaba no chão / mais alto o coqueiro , maior é o tombo do coco afinal / todo mundo é igual quando a vida termina / com terra por cima e na horizontal “ .


“ Se a gente grande soubesse / o que consegue a voz mansa / como ela cai feito prece / e vira flor , num coração de criança / a gente grande que tira / o meu brinquedo da mão / tira do músico a lira / interrompendo a canção / de tanto não que eu escuto / o não eu vivo a dizer / eu não sossego um minuto / é natural / eu não  parei de viver / a gente apenas repete / tudo que escuta e que vê / pois gente grande eu queria / ser um dia todo igualzinho a você “ .
Para findar, recorremos ao “ poetinha “ Vinicius de Moraes ( 1913- 1980 ) com o seu conceito musical de “ Testamento “ :
“ Você que só ganha pra juntar / o que é que há, diz pra mim , o que é que há ? / você vai ver um dia / em que fria você vai entrar / por cima uma laje / embaixo a escuridão / é fogo , irmão ! , é fogo , irmão ! /
- Pois é  , amigo , como se dizia antigamente , o buraco é mais em baixo .. E você com todo o seu baú  , vai ficar por lá na mais total solidão , pensando à beça que não levou nada do que juntou : só seu terno de cerimônia . Que  fossa , hein , meu chapa , que fossa ...
“ Você que não para pra pensar / que o tempo é curto e não para de passar / você vai ver um dia , que remorso / como é bom parar/ ver um sol se por /ou ver o sol raiar /e desligar , e desligar /
- Mas  você , que esperança ... Bolsa  , títulos , capital de giro , public relations ( e tome gravata ) , protocolos , comendas , caviar , champanhe ( e tome gravata ) , o amor sem paixão , o corpo sem alma , o pensamento sem espírito ( e tome gravata ) e lá um belo dia , o enfarte ; ou , pior ainda , o psiquiatra .
“ Você que só faz usufruir / e tem mulher pra usar ou pra exibir / você vai ver um dia / em que toca você foi bulir / a mulher foi feita / pro amor e pro perdão / cai nessa não , cai nessa não /
- Você ,  por exemplo , está aí com a boneca do seu  lado, linda e chiquérrima , crente que é amo e senhor do material . É  , amigo , mas ela anda longe , perdida num mundo lírico e confuso , cheio de canções , aventura e magia . E você nem sequer toca a sua alma . É  , as mulheres são muito estranhas , muito estranhas ! .
“ Você que não gosta de gostar / pra não sofrer , não sorrir e não chorar /você vai ver um dia / em que fria você vai entrar / por cima uma laje / embaixo a escuridão / é fogo , irmão ! . É fogo , irmão! “ /.

domingo, 15 de março de 2015

UMA LIÇÃO DE ESPÍRITO ALTANEIRO
Um dia histórico este 15 de março de 2015 , onde uma grande nação em crise , cedo abriu os olhos e derramou-se pelas ruas com o rosto lambuzado de verde e amarelo , não para encobrir a identidade mas para realçar um  sentimento de orgulho nacional . No lugar do ódio  , o perdão ; no lugar do medo , a ousadia ; no lugar do desânimo a juvenil e benfazeja alegria dos bons  .
Sem tumulto  ,  nem deboche , um mar de cidadãos pacíficos cobriu de pétalas de amor  o chão deste amado  Brasil
 , aturdido e sonolento .
Avisamos de antemão que nós brasileiros  NÂO QUEREMOS : terceiro turno ; execução sumária de “ Marias Antonietas “ ; tingir de vermelho nossa bandeira verde e amarela ; martelos e foices em nosso brasão ; desemprego ; inflação ; corrupção ;  cascatas de impostos ; saúde / educação sem norte ; intimidação do judiciário ; executivo e legislativo sob persistente suspeição de improbidade ; fomento do governo a ditaduras torpes da América Latina ; o desmantelamento da gigante Petrobrás . QUEREMOS ordem e paz para  construirmos  uma nação rica , igualitária e justa .
Este 15 de março de 2015 pode representar um marco no renascimento da nação brasileira rumo a uma democracia plena caso seus  dirigentes demonstrem maturidade e amor pátrio , pois assim não ocorrendo  estaremos no começo do fim , ou sendo mais claro, palmilhando  um caminho  sem volta  rumo ao caos e a anarquia .
POESIA X MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
“ Morena , minha morena / tire a roupa da janela / vendo a roupa sem a dona / eu penso na dona sem ela  “ .                                                                                              
  
                     Adaptação de Tom Zé  .

O homem quando escutou  a voz íntima que lhe falava em silêncio lapidou a poesia e o canto para dar corpo à sua emoção . A poesia em seus primórdios na Grécia e na Roma Antiga  tratava-se de uma comunicação feita por um indivíduo ou por um couro de vozes  acompanhados de  um instrumento  musical , como por exemplo uma lira ( poesia lírica ) . Na Idade Média os trovadores disseminaram as Cantigas de Gesta  evocando as epopeias nacionais ( poesia épica )  . Ao longo do tempo a poesia foi se distanciando  da música e apenas na modernidade novamente os poetas cederam suas obras para serem  musicadas . Com isso ambas as partes saíram  auferindo louros  .
“ Minh’alma , de sonhar-te , anda perdida / meus olhos andam cegos de te ver / não és sequer a razão do meu viver / pois que tu és já toda minha vida / não vejo nada assim enlouquecida / passo no mundo , meu amor , a ler / no misterioso livro do teu ser / a mesma história tantas vezes lida ! / “ tudo no mundo é frágil , tudo passa “ / quando me dizem isso , toda a graça / de uma boca divina , fala em mim/ e ,  olhos postos em ti , digo de rastros / ah! Podem voar mundos , morrer astros / que tu és como um deus : princípio e fim ... “ .
Raimundo Fagner ( 1949 ) colocou melodia neste poema da graciosa portuguesa Florbela Espanca ( 1894 - 1930  ) que  partiu no dia de seu aniversário , aos 36 anos  ,  num raio de lua rumo ao infinito .
Quanto a música “ Canteiros “ que gerou polêmica e processo , Fagner adaptou partes de um longo poema  -  Marcha – de Cecília Meireles( 1901 – 1964 )   : “ Quando penso no teu rosto / fecho os olhos de saudade / tenho visto muita coisa / menos a felicidade / soltam – me meus dedos ristes / dos sonhos claros que invento / nem aquilo que imagino / já me dá contentamento “ .
O restante da composição de “ Canteiros “ insere partes da canção “  Hora do Almoço “ de Antônio Carlos Belchior ( 1946 )  e de “ Águas de Março “ de Tom Jobim ( 1927 – 1994 )  . Pode – se inferir que a emenda deu maior musicalidade ao trabalho de Cecília Meireles   .  No final do  drama e da trama  ,  tudo deu certo .
“ Esta cova em que estás com palmo medida / é a conta menor que tiraste em vida / é de bom tamanho , nem largo nem fundo / é a parte que te cabe neste latifúndio / não é cova grande , é cova medida / é a terra que querias ver dividida / é uma cova grande pra teu pouco defunto / mas estarás mais ancho que estavas no mundo / é uma cova grande pra teu defunto parco / porém mais que no mundo te sentirás largo / é uma cova grande pra tua carne pouca / mas a terra dada , não se abre a boca / é a conta menor que tiraste em vida / é a parte que te cabe deste latifúndio / é a terra que querias ver dividida / estarás mais ancho que estavas no mundo / mas a terra dada , não se abre a boca “ .
Chico Buarque (1944)  colocou uma bela melodia neste poema agreste  de João Cabral de Melo Neto ( 1920 – 1999 ) . A realidade descrita em “ Funeral de Um Lavrador “ ainda se mantém de pé nos vetustos grotões deste Brasil imenso em extensão e em  injustiça social , esperando ao deus – dará um milagre que nunca chega .
A presença de uma bela poesia e de uma música adequada não garantem sucesso junto ao público ouvinte  .  Um exemplo  : “ O Bicho Homem “ de Francisco Carvalho com música de Fagner .
“ Que bicho é o homem , de onde ele veio , para onde ele vai? / de onde veio para onde vai ? / onde é que entra , de onde é que sai ? / que raio lhe acende a chama da fúria / o que é que sobra da cesta básica de sua penúria / que bicho é o homem , de que se enfeita , que mão o ampara / no chão de enigmas em que se deita / que bicho é o homem / que mama no seio da reminiscência / e que embala a morte em seu devaneio / que bicho é esse que carrega o fardo de uma dor  medonha / que sucumbe o fardo mas ainda sonha ? / que bicho vagueia na treva hedionda / que pantera esguia será mais veloz / do que a própria sombra ? / o homem que tece as malhas da lei / que bicho é o homem / que transforma em pêssego as fezes do rei ? / que bicho é esse que ama e desama / que afaga e magoa / e que às vezes lembra um anjo em pessoa ?/  o homem que vai para a eternidade num saco de lixo / que bicho é o homem de salário fixo ?/ que bicho é o homem que trapaceia , que às vezes pensa / que é mais brilhante do que a papa- ceia ? / que bicho é esse que escreve as vogais das cinzas do pai ? / de onde ele veio e para onde ele vai ?/ que bicho é o homem que se interroga léguas de volúpia / sonhos e utopias tudo se evapora / que bicho é o homem de argila e colosso / que lavra e semeia / mas só colhe insônias em lavoura alheia ?/ os rastos do homem no vento ou na água / são rastros de fera / mas que bicho é esse que se dilacera ?/ o homem suplica , os deuses concedem / que bicho é o homem / que sempre regressa  às praias do Éden ?/ que bicho é o homem que escreve poemas /na aurora agônica / e depois acende a fogueira atômica ?/  que homem te oferta um ramo de rimas / e à sombra dos mortos , semeia gemidos / por sete Hiroximas ? / que bicho te espreita aos olhos dos becos / onde cães insones mastigam as sombras dos antigos donos ?/ que bicho é o homem que rasteja e voa / que se ergue e cai / de onde ele veio e para onde vai?/ que bicho é o homem , de onde ele veio e para onde ele vai ?/ onde é que entra  de é que sai ?/ “ .
O poeta cearense Francisco Carvalho ( 1927 – 2013) , um maiores bardos de nossa literatura emprestou ao cancioneiro popular um belo e filosófico poema sobre o bicho – homem que musicado por Raimundo Fagner não recebeu do público ouvinte o devido aconchego  , mostrando que nem sempre existe uma combinação perfeita entre poesia e canção .


Gilberto Gil  , Caetano Veloso , Tom Jobim , Antônio Maria , Dolores Duran , Orestes Barbosa , Tito  Madi  , Chico Buarque , Jorge Bem , Djavan , Gonzaguinha , Almir Sater , Milton Nascimento , Renato Teixeira ,Paulinho da Viola , Luiz Melodia , Luiz Vieira , Noel Rosa , Cartola ,  Chiquinha Gonzaga , Ari Barroso , Lamartine Babo , Adoniran Barbosa , Paulo Vanzolini , Lenine , Ivan Lins , Roberto Carlos , Erasmo Carlos , Humberto Teixeira , Ednardo , Belchior , Raimundo Fagner , Zé Ramalho , Dorival Caymmi ,  Nelson Cavaquinho , Carlos Cachaça  e muitos outros elaboram poesias e músicas a um só tempo , verdadeiras pérolas de nossa Música Popular Brasileira .
Frases poéticas não faltam como exemplos vivos da riqueza oriunda  dos poetas do morro e do asfalto que ornam nosso cancioneiro popular  :
“ Tire o seu sorriso do caminho , que eu quero passar com a minha dor “ . Nelson Cavaquinho
“ E a lua furando nosso zinco , salpicava de estrelas nosso chão e tu pisavas nos astros distraída “  . Orestes Barbosa
“ Quem acha , vive se perdendo , da dor tão cruel de uma saudade “ . Noel Rosa
“ Das lembranças que eu trago na vida , você é a saudade que eu gosto de ter “ . Roberto Carlos
“ Voltar quase sempre é partir para um outro lugar “ . Paulinho da Viola
“ Quem de dentro de si não sai , vai morrer sem amar ninguém “ . Vinícius de Moraes
“ Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é “ . Caetano Veloso
“ Existirmos , a que será que se destina ? . Caetano Veloso
“  Queixo –me às rosas , mas que bobagem ,as rosas não falam , simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti “ . Cartola
“ Confete , pedacinho colorido de saudade “ . David Nasser e Jota Junior
“ Ando devagar porque já tive pressa e levo este sorriso porque já chorei demais “ . Almir Sater e Renato Teixeira
“ O amor da gente é como um grão . Uma semente de ilusão , tem que morrer pra germinar “ . Gilberto Gil
“ Perigo é ter você perto dos olhos , mas longe do coração “ . Nico Resende e Paulinho Lima
“ Você é isto : parto de ternura , lágrima que é pura , paz do meu amor “ . Luiz Vieira
“ Saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu “ . Chico Buarque
E para finalizar  , “ Paratodos “ ,  de um menestrel que melhor representa o tradicional e o novo na Música Popular Brasileira e  que compôs uma obra rica e complexa , abrangendo a poesia do morro e do asfalto ou o erudito e o popular de braços dados   : Chico Buarque .


“ Paratodos “
“ O meu pai  era paulista / meu avô , pernambucano / o meu bisavô, mineiro / meu tataravô, baiano / meu maestro soberano / foi Antônio Brasileiro / foi Antônio Brasileiro / quem soprou esta toada / que cobri de redondilhas / pra seguir minha jornada / e com a vista enevoada/ ver o inferno e maravilhas / nestas tortuosas trilhas / a viola me redime / creia , ilustre cavalheiro / contra fel , moléstia , crime /use Dorival Caymmi / vá de Jackson do Pandeiro / vi cidades , vi dinheiro / bandoleiros , vi hospícios / moças feito passarinho / avoando de edifícios / fume Ari , cheire Vinícius / beba Nelson Cavaquinho / para um coração mesquinho /contra a solidão agreste / Luiz Gonzaga é tiro certo / Pixinguinha é inconteste / tome Noel , Cartola ,Orestes / Caetano e João Gilberto /viva Erasmo , Bem , Roberto , Gil e Hermeto , palmas para /todos os instrumentistas / salve Edu , Bituca , Nara /Gal , Betânia , Rita , Clara , Evoé , jovens à vista / o meu pai era paulista / meu avô , pernambucano / o meu bisavô , mineiro /meu tataravô , baiano / vou na estrada há muitos anos / sou um artista brasileiro “ .

quinta-feira, 12 de março de 2015

Ó ABRE ALAS PARA CHIQUINHA GONZAGA

Na última metade do século XIX  ,  o Brasil se abria a mudanças político- econômicas substanciais  necessárias a fundação de um grande país . Chiquinha Gonzaga tinha consciência plena de viver numa sociedade recém- saída da mancha negra da escravidão e com rígidos padrões morais para as mulheres  , consideradas objetos de cama e mesa dos seus patrões , o macho dominador . Era a vigência do milenar  patriarcado em seus estertores  . Chiquinha  , feminista de primeira fornada , virou aquele mundo de ponta- cabeça servindo de molde a  figuras que apareceriam ao longo do tempo  como Leila Diniz  , Elis Regina , Maysa Matarazzo ,  Patrícia Galvão ( Pagu ) , Olga Benário ,Adalgisa Neri , Ana Montenegro , Lota de Macedo Soares , Rose Marie Muraro  e tantas outras . O mundo  absolutista dos machos nunca mais teve  sossego , para o sossego  da humanidade  ! .
Francisca Edwiges Neves Gonzaga ( 1847 – 1935 ) , pianista , compositora , maestrina , abolicionista e republicana  , nasceu na cidade do Rio de Janeiro , no dia 17 de outubro de 1847 . Seu pai  , José Basileu Neves Gonzaga  , militar do Exército Brasileiro , era  parente de  Luis Alves de Lima e Silva , o futuro Duque de Caxias  . Sua mãe  , Rosa Maria Lima ,  filha de escravos  e pobre foi rejeitada pela família do militar . Assim  , Francisca Edwiges  nasceu bastarda , longe do pai que se encontrava trabalhando  em Pernambuco . De retorno ao Rio de Janeiro em 1848  , José Basileu conheceu a filha e assumiu enfim  a paternidade . Posteriormente  deu de presente mais três rebentos para  Rosa Maria  .
A garota Francisca Edwiges teve um primor de educação  , de igual forma  a uma integrante da corte portuguesa ,  com incursões em idiomas vários  , artes e música .  Para isso existiam o Cônego Trindade e o maestro Lobo que atapetavam o gracioso caminho de  Francisca  rumo a glória . Aos 11 anos de idade a garota precoce apresentou uma peça ao piano  , de sua autoria , uma loa ao Menino Jesus . Aos 16 anos casou- se com Jacinto Ribeiro do  Amaral , Militar da Marinha , um belo jovem de 24 anos . Agora  ,  presumia  – se ,erroneamente  , que seriam dois senhores ( o pai e  o marido ) para dominarem a inquieta dama .  Corria o ano de 1863  .  No ano seguinte nasceu João Gualberto que representaria uma agradável  companhia e um  porto seguro  para Francisca para toda a vida  .  Em 1865 apareceu  um segundo rebento  ,  Maria do Patrocínio  .  Neste mesmo ano estourou a desigual e infame  Guerra do Paraguai , palco de uma carnificina brutal .  Chiquinha Gonzaga teve que acompanhar o marido num  navio de guerra  até a foz do rio Paraguai  . Sem o insubstituível companheiro  piano , ela conseguiu como prêmio de consolação   um nada aristocrático  violão para acalentar seus dias naquele ambiente avaro  . O cônjuge  Jacinto colocou a companheira contra as cordas  do ringue  : “ -  Ou a música ou o casamento “ .  Resposta curta e fatal de Francisca  : - “ Senhor meu marido , eu não entendo a vida sem harmonia “ . Deixa claro a percepção de harmonia conjugal e na música  .  Na ocasião  , grávida de mais um filho , Hilário , a inquieta Chiquinha foi condenada pela família e declarada morta “ ad  aeternum “  . Partiu a jovem  alma penada  para uma vida  dura mas  independente , rompendo os grilhões que a prenderiam , se ficasse , pelo resto de seus dias,   levando consigo o filho mais  velho , João Gualberto . Cometera ela  uma grave transgressão social para uma época machista e impiedosa .
Como uma flor amorosa  , Chiquinha  foi acolhida no circuito da boemia no Rio de Janeiro por Joaquim Antônio da Silva Callado  , um flautista professor do Imperial Conservatório de Música .  Em 1869  a polca “ Querida por todos “ lhe foi ofertada pelo prestimoso  Callado .  O coração alado de Chiquinha  , contudo ,  já estava nas mãos do jovem engenheiro João Batista de Carvalho Jr . Passaram a viver juntos e  tiveram uma filha , Alice Maria em 1876 . O caso toma um rumo torto por conta de infidelidade do parceiro  , fogueteiro e chegado a um rabo de saia . Uma vez mais Chiquinha parte acompanhada apenas do filho João Gualberto para as peripécias do  mundo . Ministra aulas de piano  , português , francês , matemática , geografia e teatro para sua sustentação básica pois apenas a boemia não enche a  barriga de ninguém .
Aos 29 anos a compositora Chiquinha abre alas com o seu primeiro sucesso a polca “ Atraente“ e a seguir puxa outros sucessos como Desalento , Não insistas , Rapariga ! e Sedutor , tudo isso no ano de 1877 .
Já no século XX , na década de 70 o compositor Hermínio Bello de Carvalho põe letra na polca  “ Atraente “ de Chiquinha Gonzaga . Se viva estivesse a autora aprovaria a letra coquete  :
“ Rebola bola e atraente , vai / esmigalhando os corações com o pé / e no seu passo apressadinho /tão miúdo , atrevidinho /vai sujando o meu caminho / desfolhando o mau – me  - quer  / se bem me quer seja se quer ou não / bem reticente , ela só faz calar / ela é tão falsa e renitente , que até atrai só o seu pensar / como é danada , perigosa , vaidosa / desastrosa , escandalosa  e decorosa / rancorosa , incestuosa e tão nervosa / e bota tudo em polvorosa / quando chega belicosa / bota tudo pra perder / amour , amour / tu jour amour , trè bien /  mas joga fora esta conversa vã /não vem jogar fla- flu no meu Maracanã/ não sou Juju balangandã / meu coração porém , diz que não vai / suportar esta maldita inenarrável solidão /se assim for  , ela vai ter que esbodegar / e te ver despinguelar numa desilusão “ .
João Batista Fernandes Laje , um jovem mancebo português de 16 anos  , amante de música  e Chiquinha Gonzaga com 52 anos iniciaram um puro romance livresco  que durou até o findar dos dias da querida maestrina aos 87anos de idade . Uma bela mulher  , sensível , um fruto sazonado , despida de falsos pudores e  que derrubou com picareta  , falsos mitos acerca do tema  amor x idade . O tempo é feitura dos  deuses ; a medida do tempo sim é coisa do bicho – homem .
“  Formar uma paixão de duas paixões . Fundir em um direito dois direitos . Forjar um leito nobre de dois leitos e atar a uma ambição duas ambições . Juntar em um sonhar duas ilusões . Somar em um só amor dois corações . Juntar em um laço duas divisas e duas miradas fundir em um só olhar . Dois prantos enlaçar em uma só lágrima . Duas canções prender em um só canto. Isto representa unir- se verdadeiramente em amor sem as  rocas do tempo   e o demais  é nada ! “ . Parabéns  , Chiquinha e Joãozinho , heróis agem assim .
Antes de se despedir desta vida  , além de inundar o mundo de amor , Chiquinha Gonzaga recheou a terra com centenas  de canções , levou ao Palácio do Governo a Música Popular Brasileira , lutou pela Abolição dos Escravos , pela Proclamação da República  e fundou a Sociedade Brasileira de Autores  Teatrais . Sempre será exaltada pela autoria da primeira marcha carnavalesca “ O´Abre Alas “ de 1899 :
“ Ó abre alas / que eu quero passar / ó abre alas / que eu quero passar / eu sou da lira / não posso  negar / eu sou da lira / não posso negar / Rosa de Ouro / é quem vai ganhar ” .
No dia 28 de fevereiro de  1935 , no Rio de Janeiro  na véspera de um  carnaval , Chiquinha Gonzaga alçou voo rumo as estrelas , abrindo alas para uma eternidade gozosa , livre e sem preconceitos .


segunda-feira, 9 de março de 2015

Crestomatia - Estouro da Boiada

 O termo Crestomatia do grego  , khrestos , “ útil “ e mathein , “ saber “ , aplica – se a uma coletânea de textos literários destinados  ao ensino escorreito da língua pátria  . Em 1850 surgiu  uma Crestomatia Arcaica em Portugal ,  de autoria de Inocêncio Francisco da Silva , um calhamaço de 756 páginas  que logo tomaria ares de  um clássico .
 O insigne  professor  gaúcho Radagasio Taborda lançou em 1931 uma  Crestomatia que serviu nas três décadas seguintes aos alunos do ensino fundamental em escolas públicas e privadas da nação brasileira  . Hoje presta- se como uma  relíquia para bibliófilos e especialmente  para aqueles saudosistas  que sorveram suas  lições , às vezes , truncadas por palavras desconhecidas pelos petizes em seus primeiros contatos com clássicos da literatura brasileira e portuguesa  .
Para um bom início  , no lugar de prefácio ou prólogo na apresentação da distinta  obra , estampava-se  o estrambótico  “ Antilóquio “ , servindo de  batismo para os  alunos . A lição inicial “ O campônio e o passaredo “ assinalava como autor , Dom Antônio de Almeida Lustosa ( 1886 – 1974 )  , Arcebispo  da Arquidiocese  de Fortaleza ( 1941 – 1963 )  . Outras páginas da Crestomatia davam abrigo ao insigne  religioso e intelectual  . No  brasão de armas de Dom Antônio  consta : “ Guarda- me como a pupila dos olhos , esconde –me à sombra de tuas asas , longe dos ímpios que me oprimem , dos inimigos mortais que me cercam “ .  Tal gentil – homem encontra- se em seu repouso eterno na Catedral Metropolitana de  Fortaleza .
 Numa das passagens da Crestomatia  , Rui Barbosa ( 1849 – 1923)  , o grande jurista , jornalista , político , orador e diplomata baiano , discorre  , de forma elegante , sobre “ O estouro da boiada “ :
“  Já vistes o estouro da boiada ? . Vai o gado sua estrada mansamente , rota segura e limpa , chã e larga , batida e tranquila , ao tom monótono dos eias ! dos vaqueiros . Caem as patas no chão em bulha compassada . Na vaga doçura dos olhos dilatados , transluz a inconsciente resignação das alimárias , oscilantes as cabeças , pendentes à margem dos perigalhos , as aspas no ar em silva rasteira sobre o dorso da manada . Dir-se-ia a paciência em marcha abstrata de si mesma, ao tilintar dos chocalhos , em pachorrenta andadura , espertada automaticamente pela vara dos boiadeiros .Eis senão quando ,não se atina porque , a um acidente mínimo , um bicho inofensivo que passa a fugir , o grito de um pássaro na capoeira , estalido de uma rama no arvoredo , se sobressalta uma das reses ,  abala , desfecha a correr , e após ela se arremessa em doida arrancada , atropeladamente , o gado todo . Nada mais o reprime . Nem brados , nem aguilhadas o detêm , nem tropeços , voltas ou barrancos por davante . E lá vai , incessantemente , o pânico em desfilada , como se os demônios o tangessem , léguas e léguas , até que , exausto o alento ,esmorece e cessa afinal a carreira , como começou , pela cessação de seu impulso “ .
A descrição deste fenômeno da natureza que ocorre com  animais , de origem obscura , tem sido assunto para a pena de vários escritores como  Euclides da Cunha e João Ubaldo Ribeiro e logo , por analogia transpôs –se para a saga do bicho- homem . Os caminhantes tranquilos desenhando as veredas de uma  vida ,  podem  , súbito ,  por conta de uma gota d’agua saírem em disparada , derrubando obstáculos , agindo de forma grotesca e inconsciente , abrindo caminhos para implantar revoluções .O Brasil  atualmente  vive um grave  momento onde  Instituições da República como o Senado e a Câmara Federal perderam a sua credibilidade perante a sociedade civil em meio a graves indícios de desenfreada corrupção . Assim se evidencia de maneira clara um gatilho ou a gota d’agua que podem dar azo ao famigerado e imprevisível estouro da  boiada .  A se creditar que Deus seja brasileiro chegou a hora Dele  fazer as pazes com o Seu sofrido  povo  , caso contrário , uma  nova noite brumosa  irá se instalar por essas bandas , dando sequência  ao iniciante  estouro da boiada . Como sempre  , detecta – se o princípio do evento rumoroso ( a famigerada Lista Parlamentar de Janot ) , contudo , o epílogo do estouro da boiada  faz- se imprevisível mesmo ao olhar mais apurado  de experientes  futurólogos . Tomara que o braço da justiça alcance a tempo todos os tartufos dos podres poderes da nação  agonizante .
A natureza chora e ri lá fora neste domingo de bonança com Fortaleza banhada em tom cinza. Para bater  o centro seguem dois aperitivos maneiros da safra do compositor/ cantor / filósofo / místico  Zé  Ramalho  para amenizar este pesado  clima político  reinante :
“  Vocês que fazem parte dessa massa / que passa nos projetos do futuro / é duro tanto ter que caminhar / e dar muito mais do que receber / e ter que demonstrar sua coragem / à margem do que possa parecer / e ver que toda essa engrenagem / já sente a ferrugem lhe comer / ê , ô , ô , vida de gado / povo marcado / ê , povo feliz ! / lá fora faz um tempo confortável / a vigilância cuida do normal / os automóveis ouvem a noticia / os homens a publicam no jornal / e correm através da madrugada / a única velhice que chegou / demoram- se na beira da estrada / e passam a contar o que sobrou /  o povo foge da ignorância / apesar de viver tão perto dela / e sonham com melhores tempos idos / contemplam esta vida numa tela / esperam nova possibilidade / de verem esse mundo se acabar / a arca de Noé , o dirigível / não voam , nem se pode flutuar / “ .
“ Um país que crianças elimina / que não ouve o clamor dos esquecidos / onde nunca os humildes são ouvidos / e uma elite sem deus é que domina / que permite um estupro em cada esquina / e a certeza da dúvida infeliz / onde quem tem razão baixa a cerviz / e massacram – se o negro e a mulher / pode ser o país de quem quiser / mas não é com certeza o meu país / um país onde as leis são descartáveis / por ausência de códigos corretos / com quarenta milhões de analfabetos / e maior multidão de miseráveis / um país onde homens confiáveis / não tem voz, não tem vez , nem diretriz / mas corruptos tem voz e vez e bis / e o respaldo de estímulo incomum / pode ser o país de qualquer um / mas não é com certeza o meu país / um país que perdeu a identidade / sepultou o idioma português / aprendeu a falar pornofonês / aderindo à global vulgaridade / um país que não tem capacidade /de saber o que pensa e o que diz /que não pode esconder a cicatriz / de um povo de bem que vive mal / pode ser o país do carnaval / mas não é com certeza o meu país /um país que seus índios discrimina /e as ciências e as artes não respeita / um país que ainda morre de maleita / por atraso geral da medicina / um país onde escola não ensina / e hospital não dispõe de raio X / onde as gentes do morro é feliz / se tem água de chuva e luz do sol / pode ser o país do futebol / mas não é com certeza o meu país / um país que é doente e não se cura / quer ficar sempre no terceiro mundo / que do poço fatal chegou ao fundo /sem saber emergir da noite escura / um país que engoliu a compostura / atendendo a políticos sutis / que dividem o país em mil brasis / pra melhor assaltar de ponta a ponta / pode ser o país do faz- de- conta / mas não é com certeza o meu país / tô vendo tudo , tô vendo tudo / mas , fico calado , faz- de - conta que sou mudo “ .


quinta-feira, 5 de março de 2015

Elza e Garrincha, Uma Tempestade de Amor

“ Se há um deus que regula o futebol , esse deus é sobretudo irônico e farsante , e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos , nos estádios . Mas como é também um deus cruel , tirou do estonteante Garrincha a faculdade de perceber sua condição de agente divino . Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas . O pior é que as tristezas voltam , e não há outro Garrincha disponível . Precisa- se de um novo , que nos alimente o sonho .”     Carlos Drummond de Andrade .
Mané Garrincha  , o anjo das pernas tortas , a alegria do povo , um  “ Carlitos “ das canchas brasileiras , um herói dos gramados e  no mundo real um personagem  típico das tragédias gregas , daqueles que a vida abate como gado ,  sem dó nem piedade . O futebol em sua época representava pura  arte , um inocente lazer  onde a diversão se achava acima dos cifrões dos grandes  negócios . Hoje o esporte  bretão , amiúde , comandado por vampiros  , põe em campo jovens moicanos tatuados , desdentados , com pernas de vidros , a maltratar  a “ moça gorducha “ afeita a só saltitar com um afago generoso   e craques  esses , apenas  nas  perigosas baladas  da noite .  É a arte da guerra que engoliu o futebol –  arte para sempre .  Os times de agora se enfrentam em arenas idênticas as da Roma  Antiga , com torcidas  organizadas , um ninho de  verdugos que só se fartam com  o  “sangue dos manos “ . Decadência  pura e irreversível  ! .

Manoel Francisco dos Santos  , Mané Garrincha , veio ao mundo praticar peripécias no dia 28 de outubro de 1933 , no distrito de Pau Grande ,município de Macaé , no Rio de Janeiro . Filho de uma humilde família de 15 irmãos  . Teve estudo formal precário e  incompleto . Integrou aos 14 anos o elenco do time amador Esporte Clube Pau  Grande . Levado por um “ olheiro “ realizou testes no Botafogo de Futebol e Regatas fazendo de cara  umas graças com um marcador de grande porte , o zagueiro da seleção brasileira , Nilton Santos , um “ João “ de vergonha . Praticamente jogou sua vida inteira no clube da estrela solitária e no selecionado  brasileiro , onde sagrou-se campeão em 1956 ( na Suécia ) e bicampeão  em 1960 ( no México ) .  Cedo Garrincha casou-se com Nair que lhe  presenteou com 9 filhas . Em 1968 ajustou- se a um novo matrimônio  , desta feita  com a cantora  Elza Soares  . Do enlace apareceu  Garrinchinha , que veio a falecer com a idade de 9 anos ,  afogado em um  acidente automobilístico . Ulf Lindberg , nascido em 1959 , tem com  pai , Garrincha e como mãe , uma sueca , sendo  fruto de um fugaz relacionamento amoroso  ocorrido durante uma excursão  do Botafogo  por aquelas plagas .  Um outro filho de Garrincha faleceu em Portugal em 1992  , também de forma trágica em decorrência de um acidente automobilístico . Garrincha  envolveu- se em séria   encrenca por conta da morte de sua sogra , mãe de Nair , sua primeira esposa  num acidente em um  veículo dirigido por ele . Uma tragédia edipiana a perseguir o pobre  e genial atleta .
Um Garrincha com excesso de peso  , problemas crônicos no joelho , dependente de bebida alcoólica , sem um acompanhamento psicológico adequado foi  despencando  num  abismo medonho    , atuando  em clubes de menor expressão até finalizar como  um urso  de circo  sendo  mostrado em picadeiros mambembes . Num melancólico final de tarde chegou a vestir  o uniforme coral do Ferroviário Atlético Clube  ,  em Fortaleza , no vetusto  Estádio Presidente Vargas , num jogo caça- níquel , prostrado  com as mãos na cintura,  cabisbaixo caçando com os olhos tristes um passado glorioso que lhe fugira por entre as pernas tortas  e para sempre .
“ Sua ilusão entra em campo no estádio vazio / uma torcida de sonhos aplaude-o talvez / o velho atleta recorda as jogadas felizes / mata a saudade no peito driblando a emoção / hoje outros craques repetem as suas jogadas / ainda na rede balança seu último gol/ mas pela vida impedido  parou / e para sempre o jogo acabou / suas pernas cansadas correram pro nada / e o time do tempo ganhou / cadê você , cadê você , você passou / o que era doce , o que não era se acabou / cadê você , cadê você , você passou / no vídeo tape do sonho , a história gravou / ergue os seus braços e corre outra vez no gramado / vai tabelando o seu sonho e lembrando o passado / no campeonato da recordação faz distintivo do seu coração / que as jornadas da vida , são bolas de sonho / que o craque do tempo , chutou .”
Elza da Conceição Soares nasceu em 23 de junho de  1930 , na favela Moça bonita no Rio de Janeiro . Filha do operário Avelino Gomes Soares e da lavadeira Rosária Maria da  Conceição . Curtiu uma infância pobre  , mas  feliz de uma criança de morro , inclusive trabalhando cedo equilibrando latas d’água na cabeça . Aos 13 anos obrigada pelo pai contraiu matrimônio com um jogador de cartas de nome Alaúrdes  Soares  , dez anos mais velho que ela . Aos 14 anos de idade foi mãe de um menino que cedo morreu de desnutrição  . O segundo filho logo a seguir  também faleceu  pelo mesmo motivo : fome . Outros filhos em série foram colocados  pelo jovem casal  naquele mundo hostil e  pobre .
Aos 15 anos pesando menos de 40 quilos  , Elza  compareceu a um programa de auditório na Rádio Tupi , “  Calouros em Desfile “  , comandado pelo compositor Ary Barroso , aquele da “ Aquarela do Brasil “ . Ao ser chamada ao palco causou alvoroço aquela figura miúda e desnutrida  .
Ary : - O que você  veio fazer aqui ?
Elza  :  – Seu Ary , acho que aqui a gente canta , né ?
Ary : -  E quem disse que você canta ?
Elza : - Eu canto
E mandou ver  : “ Se quiser fumar , eu fumo , se quiser beber , eu bebo / não me interessa  mais a ninguém / se o meu passado foi lama / hoje quem me difama / viveu na lama também / comendo a mesma comida / bebendo a minha  bebida / respirando o mesmo ar / e hoje , por ciúme ou por despeito / acha – se com o direito de querer me humilhar / quem foste tu ?/ quem és tu ? / não és nada / se na vida fui errada /tu foste errado também/ se eu errei , se pequei / não importa / se a esta hora estou morta / pra mim , morreste também ! “
Ary  : -  De que planeta você veio , garota ?
Elza  : - Do planeta fome !
Ary  , boquiaberto  : - Senhoras e senhores , neste exato momento nasce uma estrela !
Elza  , radiante , retornou  para o seu barraco no morro , de taxi , com o dinheiro do prêmio maior do programa . Tirara  a primeira nota dez naquela vida de  aridez de  deserto .
Em  1958 , Alaúrdes sucumbiu a uma fulminante  tuberculose , a peste vestida de branco . A então jovem  viúva Elza deixa aos cuidados da mãe seus filhos e parte para cantar em boates e bares da noite afinando a voz para voos mais longos . O inicio do sucesso veio com a gravação de “ Se acaso você chegasse “ de Lupicínio Rodrigues .  Depois foram se sucedendo um sucesso após o  outro . Eram os tempos de bonança até que enfim batendo a sua  porta .
Elza e Garrincha viveram por mais de uma década um tempestuoso romance acompanhado pela mídia como uma tragédia novelesca  . Por esta época as glórias do  “ anjo das pernas  tortas “ já se perdiam no tempo . Em meio a sucessivas internações por problemas gerados pelo excesso de bebidas alcoólicas  , o jogo da vida  foi encerrado precocemente para o pobre Mané em 20 de janeiro de 1983 , aos  49 anos de  idade . Elza segue ainda hoje seu caminho sofrido “ cantando para não enlouquecer “ . Uma brava guerreira que perdeu sérios embates para a vida  mas ao fim tornou-se vitoriosa , como “ A grande dama da Música Popular Brasileira”  . Um exemplo de coragem e perseverança .

“  Sorri / quando a dor te torturar /e a saudade atormentar / os teus dias tristonhos , vazios / sorri / quando tudo terminar /quando nada mais restar /do teu sonho encantador / sorri / quando o sol perder a luz / e sentires uma cruz /nos teus ombros cansados , doridos / sorri / vai  mentindo a tua dor / e ao notar que tu sorris / todo mundo irá supor /  que és feliz “ .