domingo, 15 de março de 2015

POESIA X MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
“ Morena , minha morena / tire a roupa da janela / vendo a roupa sem a dona / eu penso na dona sem ela  “ .                                                                                              
  
                     Adaptação de Tom Zé  .

O homem quando escutou  a voz íntima que lhe falava em silêncio lapidou a poesia e o canto para dar corpo à sua emoção . A poesia em seus primórdios na Grécia e na Roma Antiga  tratava-se de uma comunicação feita por um indivíduo ou por um couro de vozes  acompanhados de  um instrumento  musical , como por exemplo uma lira ( poesia lírica ) . Na Idade Média os trovadores disseminaram as Cantigas de Gesta  evocando as epopeias nacionais ( poesia épica )  . Ao longo do tempo a poesia foi se distanciando  da música e apenas na modernidade novamente os poetas cederam suas obras para serem  musicadas . Com isso ambas as partes saíram  auferindo louros  .
“ Minh’alma , de sonhar-te , anda perdida / meus olhos andam cegos de te ver / não és sequer a razão do meu viver / pois que tu és já toda minha vida / não vejo nada assim enlouquecida / passo no mundo , meu amor , a ler / no misterioso livro do teu ser / a mesma história tantas vezes lida ! / “ tudo no mundo é frágil , tudo passa “ / quando me dizem isso , toda a graça / de uma boca divina , fala em mim/ e ,  olhos postos em ti , digo de rastros / ah! Podem voar mundos , morrer astros / que tu és como um deus : princípio e fim ... “ .
Raimundo Fagner ( 1949 ) colocou melodia neste poema da graciosa portuguesa Florbela Espanca ( 1894 - 1930  ) que  partiu no dia de seu aniversário , aos 36 anos  ,  num raio de lua rumo ao infinito .
Quanto a música “ Canteiros “ que gerou polêmica e processo , Fagner adaptou partes de um longo poema  -  Marcha – de Cecília Meireles( 1901 – 1964 )   : “ Quando penso no teu rosto / fecho os olhos de saudade / tenho visto muita coisa / menos a felicidade / soltam – me meus dedos ristes / dos sonhos claros que invento / nem aquilo que imagino / já me dá contentamento “ .
O restante da composição de “ Canteiros “ insere partes da canção “  Hora do Almoço “ de Antônio Carlos Belchior ( 1946 )  e de “ Águas de Março “ de Tom Jobim ( 1927 – 1994 )  . Pode – se inferir que a emenda deu maior musicalidade ao trabalho de Cecília Meireles   .  No final do  drama e da trama  ,  tudo deu certo .
“ Esta cova em que estás com palmo medida / é a conta menor que tiraste em vida / é de bom tamanho , nem largo nem fundo / é a parte que te cabe neste latifúndio / não é cova grande , é cova medida / é a terra que querias ver dividida / é uma cova grande pra teu pouco defunto / mas estarás mais ancho que estavas no mundo / é uma cova grande pra teu defunto parco / porém mais que no mundo te sentirás largo / é uma cova grande pra tua carne pouca / mas a terra dada , não se abre a boca / é a conta menor que tiraste em vida / é a parte que te cabe deste latifúndio / é a terra que querias ver dividida / estarás mais ancho que estavas no mundo / mas a terra dada , não se abre a boca “ .
Chico Buarque (1944)  colocou uma bela melodia neste poema agreste  de João Cabral de Melo Neto ( 1920 – 1999 ) . A realidade descrita em “ Funeral de Um Lavrador “ ainda se mantém de pé nos vetustos grotões deste Brasil imenso em extensão e em  injustiça social , esperando ao deus – dará um milagre que nunca chega .
A presença de uma bela poesia e de uma música adequada não garantem sucesso junto ao público ouvinte  .  Um exemplo  : “ O Bicho Homem “ de Francisco Carvalho com música de Fagner .
“ Que bicho é o homem , de onde ele veio , para onde ele vai? / de onde veio para onde vai ? / onde é que entra , de onde é que sai ? / que raio lhe acende a chama da fúria / o que é que sobra da cesta básica de sua penúria / que bicho é o homem , de que se enfeita , que mão o ampara / no chão de enigmas em que se deita / que bicho é o homem / que mama no seio da reminiscência / e que embala a morte em seu devaneio / que bicho é esse que carrega o fardo de uma dor  medonha / que sucumbe o fardo mas ainda sonha ? / que bicho vagueia na treva hedionda / que pantera esguia será mais veloz / do que a própria sombra ? / o homem que tece as malhas da lei / que bicho é o homem / que transforma em pêssego as fezes do rei ? / que bicho é esse que ama e desama / que afaga e magoa / e que às vezes lembra um anjo em pessoa ?/  o homem que vai para a eternidade num saco de lixo / que bicho é o homem de salário fixo ?/ que bicho é o homem que trapaceia , que às vezes pensa / que é mais brilhante do que a papa- ceia ? / que bicho é esse que escreve as vogais das cinzas do pai ? / de onde ele veio e para onde ele vai ?/ que bicho é o homem que se interroga léguas de volúpia / sonhos e utopias tudo se evapora / que bicho é o homem de argila e colosso / que lavra e semeia / mas só colhe insônias em lavoura alheia ?/ os rastos do homem no vento ou na água / são rastros de fera / mas que bicho é esse que se dilacera ?/ o homem suplica , os deuses concedem / que bicho é o homem / que sempre regressa  às praias do Éden ?/ que bicho é o homem que escreve poemas /na aurora agônica / e depois acende a fogueira atômica ?/  que homem te oferta um ramo de rimas / e à sombra dos mortos , semeia gemidos / por sete Hiroximas ? / que bicho te espreita aos olhos dos becos / onde cães insones mastigam as sombras dos antigos donos ?/ que bicho é o homem que rasteja e voa / que se ergue e cai / de onde ele veio e para onde vai?/ que bicho é o homem , de onde ele veio e para onde ele vai ?/ onde é que entra  de é que sai ?/ “ .
O poeta cearense Francisco Carvalho ( 1927 – 2013) , um maiores bardos de nossa literatura emprestou ao cancioneiro popular um belo e filosófico poema sobre o bicho – homem que musicado por Raimundo Fagner não recebeu do público ouvinte o devido aconchego  , mostrando que nem sempre existe uma combinação perfeita entre poesia e canção .


Gilberto Gil  , Caetano Veloso , Tom Jobim , Antônio Maria , Dolores Duran , Orestes Barbosa , Tito  Madi  , Chico Buarque , Jorge Bem , Djavan , Gonzaguinha , Almir Sater , Milton Nascimento , Renato Teixeira ,Paulinho da Viola , Luiz Melodia , Luiz Vieira , Noel Rosa , Cartola ,  Chiquinha Gonzaga , Ari Barroso , Lamartine Babo , Adoniran Barbosa , Paulo Vanzolini , Lenine , Ivan Lins , Roberto Carlos , Erasmo Carlos , Humberto Teixeira , Ednardo , Belchior , Raimundo Fagner , Zé Ramalho , Dorival Caymmi ,  Nelson Cavaquinho , Carlos Cachaça  e muitos outros elaboram poesias e músicas a um só tempo , verdadeiras pérolas de nossa Música Popular Brasileira .
Frases poéticas não faltam como exemplos vivos da riqueza oriunda  dos poetas do morro e do asfalto que ornam nosso cancioneiro popular  :
“ Tire o seu sorriso do caminho , que eu quero passar com a minha dor “ . Nelson Cavaquinho
“ E a lua furando nosso zinco , salpicava de estrelas nosso chão e tu pisavas nos astros distraída “  . Orestes Barbosa
“ Quem acha , vive se perdendo , da dor tão cruel de uma saudade “ . Noel Rosa
“ Das lembranças que eu trago na vida , você é a saudade que eu gosto de ter “ . Roberto Carlos
“ Voltar quase sempre é partir para um outro lugar “ . Paulinho da Viola
“ Quem de dentro de si não sai , vai morrer sem amar ninguém “ . Vinícius de Moraes
“ Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é “ . Caetano Veloso
“ Existirmos , a que será que se destina ? . Caetano Veloso
“  Queixo –me às rosas , mas que bobagem ,as rosas não falam , simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti “ . Cartola
“ Confete , pedacinho colorido de saudade “ . David Nasser e Jota Junior
“ Ando devagar porque já tive pressa e levo este sorriso porque já chorei demais “ . Almir Sater e Renato Teixeira
“ O amor da gente é como um grão . Uma semente de ilusão , tem que morrer pra germinar “ . Gilberto Gil
“ Perigo é ter você perto dos olhos , mas longe do coração “ . Nico Resende e Paulinho Lima
“ Você é isto : parto de ternura , lágrima que é pura , paz do meu amor “ . Luiz Vieira
“ Saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu “ . Chico Buarque
E para finalizar  , “ Paratodos “ ,  de um menestrel que melhor representa o tradicional e o novo na Música Popular Brasileira e  que compôs uma obra rica e complexa , abrangendo a poesia do morro e do asfalto ou o erudito e o popular de braços dados   : Chico Buarque .


“ Paratodos “
“ O meu pai  era paulista / meu avô , pernambucano / o meu bisavô, mineiro / meu tataravô, baiano / meu maestro soberano / foi Antônio Brasileiro / foi Antônio Brasileiro / quem soprou esta toada / que cobri de redondilhas / pra seguir minha jornada / e com a vista enevoada/ ver o inferno e maravilhas / nestas tortuosas trilhas / a viola me redime / creia , ilustre cavalheiro / contra fel , moléstia , crime /use Dorival Caymmi / vá de Jackson do Pandeiro / vi cidades , vi dinheiro / bandoleiros , vi hospícios / moças feito passarinho / avoando de edifícios / fume Ari , cheire Vinícius / beba Nelson Cavaquinho / para um coração mesquinho /contra a solidão agreste / Luiz Gonzaga é tiro certo / Pixinguinha é inconteste / tome Noel , Cartola ,Orestes / Caetano e João Gilberto /viva Erasmo , Bem , Roberto , Gil e Hermeto , palmas para /todos os instrumentistas / salve Edu , Bituca , Nara /Gal , Betânia , Rita , Clara , Evoé , jovens à vista / o meu pai era paulista / meu avô , pernambucano / o meu bisavô , mineiro /meu tataravô , baiano / vou na estrada há muitos anos / sou um artista brasileiro “ .

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