sexta-feira, 29 de setembro de 2017

PERGUNTAS SEM RESPOSTAS EM METAFÍSICA
Para Rosali Lemos




“ Há metafísica bastante em não pensar em nada.
Que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que ideia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
De minha janela (mas elas não têm cortinas).
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a saber o que é o sol
E a pensar muitas coisas cheia de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada.
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica? Que metafísica tem aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que não o sabem?
“ Constituição íntima das cousas”
“ Sentido único do Universo”...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos ramos
Das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido único nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta a dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina ...
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores árvores e montes
E o luar e as flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?)
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora”
Fernando Pessoa (1888-1935) , Poesia de Alberto Caeiro.

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

ANTELÓQUIO DA CRESTOMATIA DE RADAGÁSIO TABORDA


Para a Dra. Lenna Torquato



“ Crestomatia”, o modesto livrinho que sai hoje a lume, antes de tudo, que lhe façamos a apresentação ao colendo professorado, à mocidade estudiosa de nossa terra... Mister se faz, não obstante, que à seleção dos excertos presida critério são, norteado rigorosamente pelas normas e preceitos dos grandes mestres da pedagogia moderna: caso contrário, fora entregar às mãos inexpertas dos jovens educandos, flores de estilo quiçá viçosas, mas que ocultam, aqui e acolá, entre as pétalas perfumadas, venenos a cuja peçonha maléfica, os benefícios talvez advindos, puramente intelectuais, não lograriam contrabalançar...
E, forrado a essas palavras explicativas, enfeixamo-las, cordialmente protestando: Soli Deo Honor et Gloria.
Porto Alegre, 3 de outubro de 1931.
Radagasio Taborda.
A Crestomatia era adotada nos melhores colégios no Ceará nas décadas de 40 e 50 do século passado. Segue um soneto do poeta satírico, mineiro de Barbacena, Padre Correa de Almeida (1820-1905) denominado “Degeneração” e dedicado aos políticos do seu tempo, inserido na página 291 da Crestomatia:
“Dos homens de civismo a pura raça
No torrão brasileiro degenera;
A uberdade tornou-se tão escassa
Que o terreno parece que não gera.
Por mais irrigação que se lhe faça,
Os frutos, já não há, como os houvera;
A lavoura de outrora hoje é fumaça,
Cultivada fazenda hoje é tapera.
A indústria nacional é quase nula,
E é só de cavalheiro a que regula,
Consistindo nas trocas e baldrocas.
A terra, enfim, não é como dantes;
Depois de produzir muitos gigantes,
Produz agora lesmas e minhocas “
A velha temática oitocentista do soneto áspero do Padre Correa de Andrade, dedicado a políticos de antanho, cabe como uma luva, às nobres figuras planaltinas hodiernas, verdadeiras lesmas e minhocas, afeitas a carregarem malas, às caladas da noite, que evidenciam materiais peçonhentos e nada educativos, envergonhando a todos, e solapando o sonho de milhares de brasileiros.
Um dia a casa cai!

domingo, 24 de setembro de 2017

MAIS UM MADRIGAL


O acanhado Bar do Souza, instalado rente ao muro lateral do Cemitério São João Batista, em Fortaleza, acolhia, na década de 60, um pequeno grupo de boêmios – Chico Barrão, Carlinhos do seu Misael e Luizinho - que em meio a rodadas de Cuba Libre, fazia gemer, plangente, um pinho adocicando cantigas de amor. Vigorava a época de ouro do rádio onde despontavam figuras exponenciais como, Francisco Alves, Carlos Galhardo, Sílvio Caldas, Orlando Silva e Nelson Gonçalves. Quando o rosto redondo da lua avultava o pleno domínio da noite, espargindo o embornal cheio de prata sobre a superfície terreal, um integrante daquele grupo de notívagos, lança um repto: saltar o muro baixo do vizinho Campo-Santo e fazer um madrigal no jazigo de uma jovem que há pouco ali chegara, para “viver” o resto de seus dias e noites, sempre iguais, sem luzes nem trevas, rumo à poeira das estrelas neste intrigante multiverso.
O restante do grupo, numa cumplicidade muda, mandou um tímido olhar em direção ao cemitério. Um pinguço na mesa vizinha cortou o silêncio: - Topo na hora. Só preciso saber a história da moça recém-admitida naquele mundo de silêncio e paz, para ofertar a ela minha solidariedade.
Pois não. Era uma jovem de dezoito anos, morena, bem fornida de carnes, gostosa feito paçoca moída em mão de pilão, fatais olhos negros, tímida e sonhadora. Iniciara um idílio com um dos componentes daquele grupo de boêmios ali presente, nas missas de domingo à tarde na Igreja da Piedade. Durou pouco a aventura, por conta da intervenção dos pais da garota que não viam um futuro promissor para um rapaz cabeludo, taciturno, notívago e que tirava prosa com humildes empregadas domésticas do bairro de Joaquim Távora e adjacências.
A gentil garota depois de carpir um luto maneiro, engrenou novo romance, desta feita com um homem mais maduro e funcionário do Banco do Brasil, à época, um cobiçado partido. De novo rolou uma fita de curta metragem, como uma chanchada da Atlântida, pois logo descobriu-se que o dito galã era casado e pai de dois filhos menores. Uma verdadeira mala sem alça.
A família daquela musa juvenil providenciou sua transferência, incontinenti, para um colégio interno, dirigido por freiras francesas, em Petrópolis, longe do assédio dos abutres caboclos.
Na véspera da viagem, acertaram-se os derradeiros detalhes, tudo tim- tim por tim- tim, de mão beijada e aos pés da cruz ... A cativante donzela ficaria reclusa por três anos e depois voltaria, triunfante, às terras alencarinas para seguir seu fado. Era prego batido e ponta virada.
No dia da viagem para Petrópolis, a moça não acordou na hora aprazada, deixando o avião da FAB à sua espera no velho Aeroporto Pinto Martins. De casa, ela só se aluiu rumo ao Cemitério São João Batista, a despeito do alvoroço desesperado de seus pais a lhe beijarem dos pés à cabeça, implorando para que acordasse. Nada feito, pois o sono nos braços de Morfeu, induzido pela ingestão proposital de “ chumbinho” fizera o efeito desejado.
Era a confirmação da fria estatística mostrando a auto- agressão como segunda causa de morte entre jovens daquela idade. Mais uma tragédia anunciada sob as ordens de Cupido.
O primeiro namorado da jovem e o pinguço, saltaram o muro daquele Campo Santo, para, ao lado de flores perfumadas e jarros em desalinho, principiarem um madrigal, aquebrantando o tênue vidro da paz reinante naquele recanto sagrado:
“Noite alta, céu risonho/a quietude é quase um sonho/o luar cai sobre a mata/qual uma chuva de prata/de raríssimo esplendor/só tu dormes, não escutas, o teu cantor/revelando à lua airosa/a história dolorosa desse amor/lua/manda tua luz prateada /despertar a minha amada/quero matar os meus desejos/ sufocá-la com os meus beijos/canto/ e a mulher que eu amo tanto/ não escuta, está dormindo/ canto e por fim/nem a lua tem pena de mim/pois ao ver que quem te chama sou eu/ entre a neblina se escondeu/lá no alto a lua esquiva/está no céu tão pensativa/as estrelas tão serenas/qual dilúvio de falenas/andam tontas ao luar/todo o astral ficou silente/para escutar/o teu nome entre as endechas/e as dolorosas queixas ao luar”
Dali partiram os dois incautos transgressores, devidamente acompanhados de uma dama de vestido branco esvoaçante e dos pios de uma “ rasga- mortalha” bailando agourenta sobre suas cabeças ocas.
Composição musical “ Noite Cheia de Estrelas” de autoria de Cândido das Neves (1899-1943).

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

PRIMAVERA



“ Quero apenas cinco coisas...
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser ... sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues me olhando”
Pablo Neruda (1904- 1973)
As estações como símbolos universais representam o nascimento, crescimento, morte e renascimento, como ciclos regulares da natureza e da vida humana.
A primavera é associada à deusa Afrodite ou Vênus, na mitologia romana; ao deus Hermes ou Mercúrio na mitologia romana; e, à Flora, deusa das flores.
As flores simbolizam a primavera, época em que a maioria delas desabrocha; representam, também, a brevidade da existência com o ser humano que desabrocha, cresce e depois cai, como uma flor. Brancas, as flores remetem à perfeição, à pureza e à inocência. Vermelhas, são símbolos do coração apaixonado e do amor físico. Os espinhos representam as dores de amor.
“ Se você encontrara Rosa
E a malvada perguntar por mim
Diz a ela que a saudade ainda é
A flor do meu jardim
As Hortênsias, Margaridas, Magnólias
Foram flores que murcharam
No canteiro do meu peito
Mas a Rosa, mas a Rosa
É o meu amor perfeito”
Composição de Ataulfo Alves (1909 – 1969) e Wilson Batista (1913 - 1968)
“ A sorrir você me apareceu
E as flores que você me deu
Guardei no cofre da recordação
Porém depois você partiu
Pra muito longe e não voltou
E a saudade que ficou
Não quis abandonar meu coração
A minha vida se resume
Oh! Dama das camélias
Em duas flores sem perfume
Oh! Dama das camélias”
Composição de Alcyr Pires Vermelho (1906 - 1994)
O fecho dessa história faz-se com a magia do poeta Vinícius de Moraes (1913- 1980):
“Entre as prendas com que a natureza/ alegrou este mundo onde há tanta tristeza/a beleza das flores realça em primeiro lugar/é um milagre de aroma florido/ mais lindo que todas as graças do céu/e até mesmo do mar/ olhem bem para a rosa/ não há mais formosa/ é flor dos amantes/é rosa- mulher/ que em perfume e nobreza / vem antes do Cravo/ e do Lírio e da Hortência/ e da Dália e do bom Crisântemo/ e do puro e gentil malmequer/ e reparem no Cravo/ escravo da Rosa/ que é a flor mais cheirosa de enfeite sutil/ e no Lírio que causa o delírio da Rosa/ o martírio da alma da Rosa/ que é a flor mais vaidosa e mais prosa/ entre as flores do nosso Brasil/abram alas pra Dália garbosa da cor mais vistosa/ do grande jardim da existência das flores/ tão cheias de cores gentis/e também para a Hortência inocente/ a flor mais contente/ no azul do seu corpo macio e feliz/satisfeita da vida/ vem a Margarida/ que é a flor preferida dos que tem paixão/e agora é a vez da Papoula vermelha/ a que dá tanto mel pras abelhas/e alegra este mundo tão triste/ no amor que é o meu coração/ e agora que temos o bom Crisântemo/ seu nome cantamos em verso e em prosa/porém que não tem a beleza da Rosa/ que é uma prosa não só uma flor/uma Rosa é uma rosa, é uma rosa/ é a mulher rescendendo de amor”

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

O CEARÁ NÃO TEM DISSO NÃO?



Furacões e terremotos, representam medonhos desastres naturais que volta e meia, por conta de pressões exageradas, tendo a origem em placas tectônicas, ceifam inocentes almas humanas e destroem, impiedosamente, cidades por onde passam.
Trata-se de maldade da natureza? De forma nenhuma!
A natureza “ não dá a mínima bola “ para o bicho-homem. Ela, em sua plenitude, imensidão e complexidade, não é boa nem má. Apenas existe, e ponto final!
Em Pindorama, no Ceará, neste período seco do ano, sopra uma brisa festeira, a levantar poeira, derrubando pé de pau envelhecido, jogando areia miúda nos olhos da negrada, trazendo à memória o mesmo incômodo causado por um inseto, “ o lacerdinha”, que promovia uma ardência nos olhos das pessoas, ali pelos anos 60 do século passado. Quando a tal ventania alcança a “ Esquina do Pecado” localizada na Praça do Ferreira, em Fortaleza, levanta, fescenino, as saias das estudantes que desfilam por aquele logradouro, para deleite do canelau que bate ponto por aquela redondeza.
Os furacões e terremotos, a despeito de acarretarem sérios danos, logo passam e a um custo, excessivamente, elevado, permitem a reparação dos danos infligidos.
Pindorama desconhece tais desastres naturais, por situar-se distante das temíveis placas tectônicas, aquelas cascas de tartaruga que delimitam o chão da terra. Em contrapartida, convive com mazelas, verdadeiras calamidades provocadas por gente graúda de colarinho branco em conluio, nas caladas da noite, com representantes do povo, infelizes desprovidos de qualquer resquício de moralidade. Impõe-se ao país pesadas perdas, mais elevadas até que aquelas provocadas por furacões ou terremotos, deixando Pindorama próxima de um rotundo colapso geral.
Parece repetitivo e banal, mas, ou se passa à jato o país a limpo, ou a derrocada vai ser fatal.
Em 1955, o pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999) relata num poema regionalista, a dura peleja de um nordestino em “ Morte e Vida Severina”, uma verdade até hoje, encarnada e esculpida. Em seguida, excertos da poesia:
“ O meu nome é Severino/não tenho outro de pia/como há muitos Severinos/que é santo de romaria/deram então de me chamar/Severino de Maria.../somos muitos Severinos/iguais em tudo na vida/ morremos de morte iguais em tudo na vida: /na mesma cabeça grande/que a custo se equilibra/no mesmo ventre crescido/sobre as mesmas pernas finas/e iguais também porque o sangue/que usamos tem pouca tinta/e se somos Severinos/iguais em tudo na vida/morremos de morte igual/mesma morte Severina:/que é a morte de que se morre/de velhice antes dos trinta/de emboscada antes dos vinte/de fome um pouco por dia/( de fraqueza e de doença/ é que a morte Severina/ ataca em qualquer idade/e até gente não nascida)...”
Contando carneirinhos enquanto o sono não chega .
"O homem acha o Cosmos infinitamente grande/e o micróbio infinitamente pequeno /e ele,naturalmente, /julga - se do tamanho natural.../mas, para Deus, é diferente:/cada ser, para Ele, é um universo próprio. /E, a Seus olhos, o bacilo de Koch, /a estrela Sírios e o Prefeito de Três Vassouras /são todos infinitamente do mesmo tamanho " (Mario Quintana - 1906- 1994)
"A medida do espaço somos nós ,homens /baterias de cozinha e jazz-band/ estrelas, pássaros, satélites perdidos/aquele cabide no recinto de meu quarto/com toda aquela minha preguiça dependurada nele.../o espaço, que seria dele sem nós? /mas o que enche, mesmo,toda a sua infinitude /é o poema! /- por mais leve,mais breve, por mínimo que seja..."( Mário Quintana- 1906-1994).


segunda-feira, 18 de setembro de 2017

SERMÃO DE SANTO ANTÔNIO, 1642



“ O maior jogo de um reino, a mais pesada carga de uma república são os imoderados tributos. Se queremos que sejam leves, se queremos que sejam suaves, repartam-se com todos. Não há tributo mais pesado que o da morte, e, contudo, todos o pagam, e ninguém se queixa, porque é um tributo de todos. Se uns homens morrerem e outros não, que levará em paciência esta rigorosa pensão da imortalidade? Mas a mesma razão que a estende, a facilita, porque não há privilégios, não há queixosos. Imitem as resoluções políticas o governo natural do Criador: “O que faz nascer o seu sol sobre bons e maus, e vir chuva sobre justos e injustos “. Se amanhece o sol, a todos aquenta, e se chove o céu, a todos molha. Se toda a luz cair a uma parte e toda a tempestade a outra, quem o sofrerá? ” (Sermão de Santo Antônio, 1642), de autoria do Padre Antônio Vieira (1608- 1697).

Em Pindorama nesses ásperos tempos, onde imperam a mediocridade, a falsidade e a corrupção desenfreada, promovida por “ brucutus, índios, carinhas de anjos e ministros chorões” apostando todas as fichas que nenhuma prova obtida pela justiça terá força suficiente para alcançar as “excelsas figuras parlamentares”, tudo é possível. Prevalecerá, por fim, a impunidade e a confiança na memória curta de um povo pacato e parvo. A solução, simples e cristalina, se apresenta pronta nos afiados dentes dos vampiros planaltinos: a criação de novos impostos, pois a massa bovinamente ruminará, silenciosamente, a falcatrua.
“ Se o sol não aquenta a todos e a chuva a todos não molha “, um dia a corda irá, fatalmente, arrebentar!

“ Você tem palacete reluzente/tem joias e criados à vontade/sem ter nenhuma herança nem parente/só anda de automóvel na cidade/e o povo já pergunta com maldade:/onde está a honestidade?/onde está a honestidade?/o seu dinheiro nasce de repente/e embora não se saiba se é verdade/ você acha nas ruas diariamente/anéis, dinheiro e até felicidade/vassoura dos salões da sociedade/que varre o que encontrar em sua frente/promove festivais de caridade/em nome de qualquer defunto ausente/e o povo já pergunta com maldade:/onde está a honestidade?/onde está a honestidade?” (Noel Rosa – 1910-1937).



quinta-feira, 14 de setembro de 2017

XADREZ X XADREZ EM PINDORAMA



No pedregoso e irregular chão da existência humana, cinco elementos simbolizam as formas benfazejas das habilidades clássicas: a cítara, o livro, a pintura, a espada e o xadrez.
A cítara que emite o doce lenitivo da música, expressando a excelsa elevação do espírito humano.
O livro que traduz a riqueza do saber mundano e acadêmico numa verdadeira linguagem universal.
A pintura que expressa a beleza e a sensibilidade do gênio artístico, jorrando entre pinceis e cores.
A espada que imprime a marca da defesa e o poder da lâmina aplacando de forma cruenta, o mal pela raiz.
O xadrez que simboliza o cultivo da perspicácia, da inteligência, na arte da estratégia, amplamente empregada em tempos de guerra ou de paz.
Em Pindorama, nos tormentosos dias de hoje, que modorrentos se arrastam, quando deveriam passar à jato, o xadrez que vigora, infelizmente, tem outro sentido, mostrando o cárcere, a masmorra, empregado para conter o malfadado crime que medra, como metástases de um medonho cancro, nas esferas Executiva, Legislativa e Judiciária, no triste torrão verde-amarelo.
Já ecoam nos nossos ouvidos os estertores de uma nação em agonia, misturados com o rufar agourento dos tambores da Batalha do Armagedom. Tardiamente, o bicho-homem irá entender que de nada servem os falaciosos “postulados de Gerson, Loures e Geddel”, frente à cristalina verdade de que “Deus mira as mãos limpas, não as cheias”.
Cocorote, um drama humano



Cocorote, um bairro da periferia de Fortaleza, onde militares americanos construíram uma pista de pouso por ocasião da Segunda Grande Guerra Mundial (1939-1945 ).Cocorote , correm histórias que se trata de um neologismo daquela época para coco-rote (rota do Cocó) , assim como biruta (by-rote )aquele dispositivo que indica a direção do vento, e baitola (bitola ) que seria uma forma americanizada de dizer bitola, pronunciada por um certo engenheiro gringo da estrada de ferro. Boas dúvidas para serem dirimidas por filósofos de botequim ou por estudiosos de nossa língua portuguesa.
Mas como eu ia dizendo , no bairro do Cocorote , corria o ano de 1969, nas cercanias do Bar do Avião, quando altas horas da noite, deu-se um acidente de lambreta. Um jovem beijando o chão , rogava por socorro. Do nada apareceu uma visagem, um indivíduo maltrapilho que, de pronto , retirou a blusa para improvisar um torniquete em volta da perna direita da vítima que sangrava de modo abundante. Aquele estrambotico " doutor" saiu caminhando devagar rumo ao Hospício de Parangaba, o hospital mais próximo daquele acidente, levando o motoqueiro junto , meio grogue. Deixou o mesmo, atônito, no portão de entrada daquele nosocomio e meteu o pé na carreira sendo engolido pelo breu da noite. Um sonolento psiquiatra acudiu aquela pobre criatura prestando assistência e felicitando o cliente, pois o 
providencial torniquete na perna , salvara-lhe a vida . Uma semana depois, o motoqueiro retorna ao Hospício de Parangaba, para deixar um mimo para o psiquiatra que o socorrera na ocasião: uma caneta Parker 51. O médico agradeceu o presente e levou o cliente até um cômodo conhecido como isolamento. Ali, sob contenção, estava aquele anjo maltrapilho, agora portando um olhar baço, despido de qualquer forma de vida.
O psiquiatra lhe explicou que aquele indivíduo era um interno, ex - médico, que há anos morava no hospital e que havia empreendido fuga na noite do acidente de lambreta. Fora encontrado naquela ocasião correndo e dizendo disparates.
Um aziago dia , já distante no tempo, perdera a razão para sempre, aquele pobre doutor , ao dirigir um gordini nas imediações da Escola de Aprendizes Marinheiros, em companhia da esposa e de dois filhos gêmeos, seu veículo fora arrastado por uma locomotiva. Apenas ele escapara com vida, mas dali em diante, perdera completamente a razão e mínimo gosto pelo sal da vida.
É o quebra - cabeça da vida expondo a nudez dos dramas da condição humana.

domingo, 10 de setembro de 2017

POEMA ENVELHECIDO 


DE JOSÉ DIRCEU VASCONCELOS


“Quero doar meus poemas,
Encontrarei quem os queira?
Já vejo pelos brancos entremeados nos meus poemas!
Estariam envelhecendo?
A força do teu amor, parece esmaecido, no papiro,
Que já escrito ao fogo, para lhe dar vida eterna.
Poemas arquejando entre linhas,
Palavras e versos repetitivos, como a quererem melhor
Compreensão!
As letras já trêmulas, esbarram entre si sem controle.
Vejo rugas, quando as palavras se contraem.
O andar das frases cambaleantes,
Mal inicio os versículos, sinto-os sem forças para chegar
Ao final!
E, quando termino, o cansado poema, me vem a ideia de
Aposentá-los!
E o amor, ainda juvenil, vem a exigir a desaposentadoria!
Ah! Sempre o amor, que não envelhece, obrigando-me a
Transformar o ponto final, em reticência”
“Poema Envelhecido” da lavra do metapoeta José Dirceu Vasconcelos, da nobre linhagem de Hipócrates, um verdadeiro mago esculpido em rimas e versos, e um eterno menino enamorado, cearense filho de Sobral.

sexta-feira, 8 de setembro de 2017





Na presença majestosa dela, plena, pálida e silenciosa , a lua , pedindo a companhia de Omar Khayyam (1048-1131), astrônomo, matemático, filósofo e poeta hedonista, na areia do Porto das Dunas :
" posto que ignoramos o que te reserva o amanhã, esforça - te por ser feliz hoje. Colhe um cântaro de vinho , senta - te à luz da lua e bebe pensando em que amanhã talvez a lua te busque em vão " 
" rápidos fogem nossos dias como a água dos rios e os ventos do deserto. No entanto, dois dias me deixam indiferente : o que passou ontem e o que virá amanhã " 
" o mundo imenso : um grão de poeira no espaço. Toda a ciência do homem : palavras. Os povos, os animais e as flores dos sete climas : sombras. O fruto de tua meditação : nada ". Carpe Diem!

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

BICO – DOCE E O COMPRIMIDO



Na Praça do Passeio Público, um imponente hospital filantrópico foi fundado no ano de 1861 com fins de prestar assistência a uma população de cerca de 160.000 almas moradoras na capital cearense. Era a Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza que ao longo dos anos tornou-se, com a ajuda inestimável de Homens de Bem que compõem sua Irmandade Beneficente, uma modelar instituição de assistência à saúde, ensino e pesquisa do Ceará.

Na década de 70 do século passado, no movimentado ambulatório de ginecologia da Santa Casa de Misericórdia, uma jovem de 18 anos busca atendimento médico para o que seria uma emergência. A queixa era de dor cortante ao ato de urinar, que surgira há três dias. A história clínica sumária trazia pouca luz para se firmar uma hipótese diagnóstica razoável. O médico dispensou o exame ginecológico e solicitou exames que rapidamente poderiam elucidar as causas daquele incômodo: um hemograma completo, um sumário de urina e uma glicemia de jejum.

Os resultados dos exames evidenciaram: Hemograma completo dentro da normalidade; sumário de urina sem quaisquer sinais de infecção, mostrando, contudo, a maciça presença de glicose na amostra; e a glicemia de jejum apontando 350 mg/dl, valor bem acima da normalidade.
Conclusão: Tratava-se de um caso de Diabetes Melito.

“ – Quer dizer, doutor, que eu peguei essa tal de diabetes, mais um tipo de doença do mundo? “
“- Não é bem assim, senhorita “, resmungou o doutor.
“ – O diabetes vem de dentro da gente, resultando de um excedente de açúcar no sangue e não se trata, obviamente, de uma doença venérea como um esquentamento (gonorreia), uma crista de galo (HPV) ou um cancro duro (sífilis) ”

“ – Agora eu entendo – falou a cliente- o meu companheiro, mulherengo incorrigível, conhecido no Morro do Ouro, aqui vizinho, como Bico-Doce, já me apresentou a todas essas mazelas citadas pelo senhor, exceto esta tal do sangue doce”
“ -Só faltava essa, pois já cansei de tomar injeção de penicilina no ambulatório do enfermeiro Almeida, por conta das danações deste infeliz amante”

Desenhava-se ali o prelúdio para uma nova discussão no casebre dos dois, no vizinho Morro do Ouro, um furdunço medonho que quase sempre findava na delegacia do bairro.
 E assim seguia o calvário do mulherengo Bico-Doce, cada vez mais calado e esquisito, bebendo todas, diariamente, e chegando grogue ao barraco, vendo alucinações de bichos andando pelas paredes, noite adentro.

Em certa madrugada, na emergência da Santa Casa de Misericórdia, chega um Bico-Doce estropiado, conduzido pela sua jovem companheira diabética, ele mostrando uma convulsão generalizada atrás da outra, pletórico e vertendo espuma pela boca. Ela o encontrara, há pouco, no chão do barraco, já desacordado, tendo ao lado uma caixa vazia de veneno para matar ratos.

Meia hora depois, Bico-Doce, principiava sua jornada, encompridando o sono, numa fria mesa do necrotério, tendo ao lado uma solitária vela tremeluzindo e ao longe um galo anunciando um novo amanhecer.

“ Deixou a marca dos dentes dela no braço/pra depois mostrar pro delegado/se acaso ela for se queixar da surra que levou/por causa de um ciúme incontrolado/ele andava tristonho guardando um segredo/chegava e saia, comer não comia e só bebia/cadê a paz/tanto que deu pra pensar/que poderia haver outro amor/na vida do nego pra desassossego/e nada mais/seu delegado ouviu e dispensou/ninguém pode julgar coisas de amor/o povo ficou inteirado do acontecido/cada um dando sua opinião/ela acendeu muita vela/pediu proteção, o tempo passou/e ninguém descobriu/como foi que ele se transformou/uma noite , noite de samba/noite comum de novela/ele chegou pedindo um copo d’água/pra tomar um comprimido/depois cambaleando foi pro quarto e se deitou/era tarde demais quando ela percebeu/que ele se envenenou/seu delegado ouviu e mandou anotar/ sabendo que há coisas que ele não pode julgar/só ficou intrigado quando ela falou/que ele tinha mania de ouvir sem parar/um samba do Chico falando das coisas do dia a dia”    

Letra da música “ Comprimido”, composta por Paulinho da Viola.










segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Um Caso Enigmático




O tradicional estabelecimento de saúde localizado na praça da Lagoinha, em Fortaleza acolhia gente vinda dos mais variados rincões do Ceará. Corria o ano de 1976 e uma jovem morena,com corpo de uma escultura grega antiga, buscou atendimento ginecológico naquele hospital.
Queria se submeter a uma cirurgia, mas para isso precisaria de tempo ou de alguém com um bom ouvido /coração para entender o caso. O esculápio dentuça e com cara de menino, deixou a cliente palrar a vontade. Ela contou que nascera de um parto domiciliar numa pequena cidade do sertão central do estado e ali vivera sua infância e adolescência até migrar ,inicialmente, para Fortaleza, de onde sumiu no oco do mundo em busca de novos ares na velha Europa. Ganhara bastante dinheiro e fama na eletrizante vida noturna de Paris, cantando e bailando, feito um mimoso beija - flor do agreste nordestino.


Queria agora realizar um sonho, ou melhor, uma cirurgia para transformar sua genitalia externa masculina em feminina. Já fizera num passado recente, um bem sucedido implante de silicone, turbinando as mamas,mas faltava um complemento definitivo, a retirada do pênis e a confecção de uma vagina. O doutor amorteceu o tranco e pressentiu que aquela parada deveria ser resolvida por gente graúda. Ele iniciou sua fala , engolindo cuspe seco, lamentando o impedimento ético vigente nas leis brasileiras diante do problema de mudança de sexo.
O contra - argumento da jovem foi perturbador e belicoso,num mutismo para ser ouvido à distância : mostrou uma bolsa recheada de notas verdes.

O certo é que uma equipe médica dispôs -se a resolver aquela parada e assim a cirurgia realizou - se em outro nosocomio. O jovem médico ficou de fora da peleja, mas em compensação participou do desfecho daquela refrega : sessenta dias depois da cirurgia, a bela jovem morena da cor de sapoti, cearense/francesa convidou toda a equipe , incluindo o médico com cara de menino, para um jantar de agradecimento em seu apartamento de cobertura na emergente avenida Beira -Mar.
Após várias rodadas de uísque escocês com tira - gosto de lagosta grelhada, surge a pergunta fatal :

Quem seria o candidato sortudo a passar uma " noite de brigadeiro " com aquela dama, para conferir " in loco " , o resultado da cirurgia ?
O jovem cirurgião com cara de menino , declinou, educadamente, do convite, posto que, não participara do ato cirúrgico e, de imediato, escapuliu escada abaixo, feito um bólido.

O cirurgião chefe da equipe alegou de forma veemente, um impedimento por motivo de saúde, pois era portador de grave cardiopatia isquêmica, com mais pontes no peito que a bela Veneza na Itália.
Sobrou a bola pingando, redonda, para o imberbe anestesista que levantou - se de um solavanco, alegando que deixara em casa um filho de um mês e a esposa com uma grave depressão puerperal. E como ele, infiel, consertaria um resguardo quebrado daquela maneira?

Todos os doutores deixaram a arena antes do apito final do árbitro sem atropelar o código de Hipócrates.
Ganharam , contudo, de quebra, a indigesta companhia de um fogo medonho nas entranhas até chegarem em casa , de farol baixo e orelhas murchas.
Hermafrodita : divindade grega híbrida, resultante de um caso de adultério consumado entre Hermes e Afrodite. Uma ninfa chamada Salmacida ao ver um jovem banhar - se num lago , rogou aos deuses que unissem seu corpo ao daquele mancebo. Com o pedido aceito, dali surgiu a figura dupla homem- mulher , o hermafrodita. Depois houve a separação e por isso até hoje um procura a sua outra metade.
A moderna medicina contando com a ajuda de uma equipe multidisciplinar e com uma abordagem holística põe fim ao sofrimento destes filhos de Zeus .

" De que adianta estudar filosofia se não para melhorar o seu pensamento sobre as questões importantes do dia a dia ? " ( Ludwig Wittgenstein )
EM MINHA CASA DE PRAIA.

Em minha casa de praia , agora à tardinha com a rede a balouçar na varanda sob o trinado de uma rolinha caldo-de- feijão num ninho acima de minha cabeça.
" Eu não amava que botassem data na minha existência. A gente usava mais era encher o tempo. Nossa data maior era o quando. O quando mandava em nós. A gente era o que quisesse ser só usando esse advérbio. Assim , por exemplo,tem hora que eu sou quando uma árvore e podia apreciar melhor os passarinhos. Ou : tem hora que eu sou quando uma pedra. E sendo uma pedra eu posso conviver com os lagartos e os musgos. Assim: tem hora eu sou quando um rio. E as garças me beijam e me abençoam " ( Manoel de Barros - 1916- 2014 ).
" A maior riqueza do homem é sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitem como sou - eu não aceito. Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc etc. Perdoai , mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas " ( Manoel de Barros - 1916- 2014).