quarta-feira, 6 de setembro de 2017

BICO – DOCE E O COMPRIMIDO



Na Praça do Passeio Público, um imponente hospital filantrópico foi fundado no ano de 1861 com fins de prestar assistência a uma população de cerca de 160.000 almas moradoras na capital cearense. Era a Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza que ao longo dos anos tornou-se, com a ajuda inestimável de Homens de Bem que compõem sua Irmandade Beneficente, uma modelar instituição de assistência à saúde, ensino e pesquisa do Ceará.

Na década de 70 do século passado, no movimentado ambulatório de ginecologia da Santa Casa de Misericórdia, uma jovem de 18 anos busca atendimento médico para o que seria uma emergência. A queixa era de dor cortante ao ato de urinar, que surgira há três dias. A história clínica sumária trazia pouca luz para se firmar uma hipótese diagnóstica razoável. O médico dispensou o exame ginecológico e solicitou exames que rapidamente poderiam elucidar as causas daquele incômodo: um hemograma completo, um sumário de urina e uma glicemia de jejum.

Os resultados dos exames evidenciaram: Hemograma completo dentro da normalidade; sumário de urina sem quaisquer sinais de infecção, mostrando, contudo, a maciça presença de glicose na amostra; e a glicemia de jejum apontando 350 mg/dl, valor bem acima da normalidade.
Conclusão: Tratava-se de um caso de Diabetes Melito.

“ – Quer dizer, doutor, que eu peguei essa tal de diabetes, mais um tipo de doença do mundo? “
“- Não é bem assim, senhorita “, resmungou o doutor.
“ – O diabetes vem de dentro da gente, resultando de um excedente de açúcar no sangue e não se trata, obviamente, de uma doença venérea como um esquentamento (gonorreia), uma crista de galo (HPV) ou um cancro duro (sífilis) ”

“ – Agora eu entendo – falou a cliente- o meu companheiro, mulherengo incorrigível, conhecido no Morro do Ouro, aqui vizinho, como Bico-Doce, já me apresentou a todas essas mazelas citadas pelo senhor, exceto esta tal do sangue doce”
“ -Só faltava essa, pois já cansei de tomar injeção de penicilina no ambulatório do enfermeiro Almeida, por conta das danações deste infeliz amante”

Desenhava-se ali o prelúdio para uma nova discussão no casebre dos dois, no vizinho Morro do Ouro, um furdunço medonho que quase sempre findava na delegacia do bairro.
 E assim seguia o calvário do mulherengo Bico-Doce, cada vez mais calado e esquisito, bebendo todas, diariamente, e chegando grogue ao barraco, vendo alucinações de bichos andando pelas paredes, noite adentro.

Em certa madrugada, na emergência da Santa Casa de Misericórdia, chega um Bico-Doce estropiado, conduzido pela sua jovem companheira diabética, ele mostrando uma convulsão generalizada atrás da outra, pletórico e vertendo espuma pela boca. Ela o encontrara, há pouco, no chão do barraco, já desacordado, tendo ao lado uma caixa vazia de veneno para matar ratos.

Meia hora depois, Bico-Doce, principiava sua jornada, encompridando o sono, numa fria mesa do necrotério, tendo ao lado uma solitária vela tremeluzindo e ao longe um galo anunciando um novo amanhecer.

“ Deixou a marca dos dentes dela no braço/pra depois mostrar pro delegado/se acaso ela for se queixar da surra que levou/por causa de um ciúme incontrolado/ele andava tristonho guardando um segredo/chegava e saia, comer não comia e só bebia/cadê a paz/tanto que deu pra pensar/que poderia haver outro amor/na vida do nego pra desassossego/e nada mais/seu delegado ouviu e dispensou/ninguém pode julgar coisas de amor/o povo ficou inteirado do acontecido/cada um dando sua opinião/ela acendeu muita vela/pediu proteção, o tempo passou/e ninguém descobriu/como foi que ele se transformou/uma noite , noite de samba/noite comum de novela/ele chegou pedindo um copo d’água/pra tomar um comprimido/depois cambaleando foi pro quarto e se deitou/era tarde demais quando ela percebeu/que ele se envenenou/seu delegado ouviu e mandou anotar/ sabendo que há coisas que ele não pode julgar/só ficou intrigado quando ela falou/que ele tinha mania de ouvir sem parar/um samba do Chico falando das coisas do dia a dia”    

Letra da música “ Comprimido”, composta por Paulinho da Viola.










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