terça-feira, 29 de novembro de 2016

UM PEQUENO DRAMA SUBURBANO



“Sempre que te pergunto/que quando, onde e como/tu sempre me reponde / talvez, talvez, talvez/ e assim passam os dias /e eu desesperando/e tu me contestando/ talvez, talvez, talvez/estás perdendo o tempo/pensando, pensando/pelo que mais tu queiras/até quando?
 até quando?”

Tradução livre de Quizás , Quizás , Quizás de  autoria de Osvaldo Farrés .

Nos idos dos anos 60 do século passado, vizinho a residência de Chico Barrão, habitava um casal de idosos sem filhos que possuía um bom acervo de música latina, especialmente, por conta da turnê de 

Nat King Cole realizada naquela região do quintal da América do Norte.
 Aprendeu o menino Chico num portunhol esquisito, muito bolero na voz de veludo do dito cantor americano. Ali naquela rua de casas simples, vez por outra passava alguns dias com aquele solitário casal uma jovem morena de olhos verdes de nome Flor de Lis. Cresceu o dito garoto e nas muitas voltas do mundo, mudou de endereço, ficando colado na lousa da memória aquele divino pedaço de chão e seus dramas cotidianos.

Um belo dia, já longe no tempo, recebeu Chico Barrão em seu local de trabalho a visita de uma nova cliente. Uma senhora de 70 anos, morena, ainda guardando uns belos traços num rosto riscado por profundas rugas, marcas indeléveis da vida, trajando um vestido curto, deixando à mostra belas pernas torneadas e uma mimosa joia emoldurando seu tornozelo esquerdo. Um charme dengoso, sem dúvida.

Na ficha de identificação da cliente constava o nome Flor de Lis de tal. O nome de seu pai chamou minha atenção, pois tratava-se de uma figura conhecida nos meios intelectuais e boêmios da cidade. Chico Barrão, com pouco tato e confirmando seu curto juízo passou a relatar para a senhora cliente, meio atordoada, um fato ocorrido em sua meninice: tarde da noite acordou na sala de sua residência, cuja porta abria diretamente na calçada, e pelo postigo de uma janela assistiu a uma cena insólita: a discussão de uma jovem de nome Flor de Lis com um senhor idoso vestindo elegante terno branco. 

Uma briga de casal que deveria ser observada apenas pela lua e as estrelas. Voltou o garoto para a rede ouvindo sentidos soluços dos dois pombinhos lá fora e caiu, enfim, nos braços de Morfeu.  Agora ao terminar o relato no escritório, súbito, Chico Barrão viu-se abraçado, rindo e chorando com aquela criatura que protagonizou toda a história.

 Falou-me que muito sofrera com aquele romance proibido com um homem casado e com idade de ser seu pai. A dita senhora só veio a ter certeza que não se tratava de uma alucinação minha quando detalhei traços de seu pai, um grande boêmio e seresteiro que eu conhecera em sua passagem pela região onde eu morava.  Como epílogo do imbróglio, Chico Barrão, constrangido e meio sem graça, devolveu o dinheiro daquela desastrada consulta. Bem feito!

“Foram teus olhos/que me deram o tema doce/ de minha canção/teus olhos verdes/ claros ,serenos/olhos que tem sido minha inspiração/aqueles olhos verdes/ de mirada serena/deixaram em minha alma/eterna sede de amar/anseios de carícia/ de beijos e ternuras/de todas as doçuras/que sabiam brindar/aqueles olhos verdes/serenos como um lago/em cujas quietas águas/ um dia me mirei/não sabem a tristeza/ que em minha alma tem deixado/aqueles olhos verdes/que eu nunca beijarei “         Tradução livre de “Aquellos ojos verdes”









segunda-feira, 28 de novembro de 2016

POLIFARMÁCIA E FELICIDADE









“A felicidade é como uma borboleta: quando a perseguimos, nos escapa; quando desistimos de persegui-la, pousa em nós “ (provérbio chinês).

 Numa ablução matinal rotineira, um idoso de 67 anos, em presença de Netuno, roga alguns mimos a Zeus: vida saudável para seus neurônios e que eles perseverem na criação de laços de amizades com seus circunvizinhos, estreitando sinapses. 

Que percorram novas sendas turbinados por fieis neurotransmissores   desbravando rotas até então virgens, pondo para girar a tal plasticidade cerebral.

Tendo ciência dos fenômenos de apoptose ou morte programada das células como fatos naturais esperados onde tudo que nasce, morre, o idoso senhor clama que se ande devagar com o andor, seguindo estritamente as normas traçadas pelo poetinha Vinicius de Moraes (1913- 1980):

“Tristeza não tem fim, felicidade  sim/a felicidade é como uma gota/ de orvalho numa pétala de flor/brilha tranquila /depois de leve oscila/ e cai como uma lágrima de amor/a felicidade do pobre parece/a grande ilusão do carnaval/a gente trabalha o ano inteiro/por um momento de sonho/pra fazer a fantasia/de rei ou de pirata ou jardineira/pra tudo se acabar na quarta-feira/tristeza não tem fim, felicidade sim/a felicidade é como uma pluma/ que o vento vai levando pelo ar q voa tão leve/ mas tem a vida breve / precisa que haja vento sem parar “.

Para os diletos companheiros da geração pós Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) todos na faixa de setenta anos, almeja-se juízo e redobrado cuidado com o delicado item saúde.

 Procurar manter o estoque da farmácia básica caseira e utilizar com parcimônia a aspirina infantil (para espantar infarto e AVC), estatina (para prevenir entupimento das artérias) ,
 betabloqueador ( para controlar angina e hipertensão ) , biguanida
 ( para manter o diabetes sobre controle) e um diurético 
( para sanar o edema ) .

 Claro, tudo isso, mantendo o calendário vacinal em dia.
Calma, nobres filhos de Hipócrates e senhores farmacêuticos, as várias modalidades de tais fármacos citadas existem em mancheias para aqueles clientes portadores de boa reserva financeira ou com uma aposentadoria privada polpuda prontas para segurar o tranco dos achaques.

Os multivitamínicos com sais minerais não foram esquecidos, mas seguindo recomendações de estudos recentes, estes devem ser consumidos com parcimônia, apenas em presença de deficiências confirmadas destes vitais elementos. 

No mais sugere - se curtir com calma esta bendita “segunda infância“ com sabedoria e fé em Deus, praticando exercícios físicos moderados e evitando bebidas alcoólicas e cigarros.  

Convém utilizar uma dieta mediterrânea e usufruir, se desejar, de uma salutar atividade laboral maneira e prazerosa.

Deve-se levar em conta uma proibição absoluta e perene a um crime grave sem direito a desculpa: vestir os ditos idosos com as famigeradas camisetas portando ridículos dizeres como “mulheres, cheguei! “ .


 Ave Maria!

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

ALOIS ALZHEIMER, UMA  SALUTAR LEMBRANÇA


Aloysius  ou Alois Alzheimer (1864 – 1915) nasceu em 14 de junho de 1864 na cidade bávara de Marktbreit na Alemanha .

O garoto Alois teve uma infância tranquila e sua educação primária deu-se  numa escola católica junto a seus irmãos .

 Aos 10 anos de idade foi encaminhado para Aschaffenburg onde ingressou no Instituto Real  Humanístico e sobressaiu-se em disciplinas como história , física e matemática ; e nas línguas : grega, latina e francesa .

Alois ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade Real de Friedrich Wilhelm de Berlim em 1883. Teve a ventura de conviver com figuras luminares da medicina da época como, Koch , Wirchow ,Waldeyer , Westphal  e Von Kolliker .

No inverno de 1886 Alois parte para realizar um curso avançado na Universidade de Tubingen
Em 1887, aos 23 anos de idade  Alois Alzheimer escreve sua tese de titulação: “Sobre as glândulas ceruminosas do ouvido “ .

 Em 18 de março de 1888 dá início a seu trabalho na Instituição para Enfermos Mentais e Epiléticos de Frankfurt. Em 1894 Alois contrai matrimônio com a viúva  Cecilie Wallerstein , nascida em1860 .

 O casal gerou três filhos: Gertrud, Hans e Marie. Alois em 1901 torna-se viúvo aos 36 anos  e segundo suas próprias palavras vive o ano mais triste de sua vida .

Este vendaval coincide com o encontro de Alois  com uma paciente , Auguste D., 52 anos, internada numa clínica psiquiátrica em Frankfurt .

Seu quadro clínico abrange: dificuldade para recordar fatos, erros ao cozinhar, passeios aleatórios e imotivados pela casa , além de descuido na higiene corporal.

Em 26 de novembro de 1901 Alois Alzheimer realiza uma entrevista clínica com a paciente hospitalizada, Auguste D. Seguem alguns excertos da anamnese:

- Qual o seu nome? Auguste
Qual o seu apelido? Auguste
 O nome do seu esposo? Auguste
 Em que ano estamos? 1800
 Em que mês estamos? o número 11
Você está casada? Não sei, a mulher vive no mesmo  piso .

Em abril de 1906 Alois recebe uma comunicação sobre a morte de Auguste D. em Frankfurt  e pede encarecidamente que lhe sejam enviados o prontuário médico  bem como o cérebro da Sra. Auguste . 

Assim foi feito e ele escrutina com profundidade todos os pormenores do material encaminhado onde no exame anatomopatológico  constam os seguintes dados:

Córtex cerebral bastante atrofiada, novelos neurofibrilares dentro dos neurônios  e depósitos proteicos na córtex .

Em 03 de novembro de 1906 num congresso em Tubingen ,  Alois Alzheimer  profere uma conferência sobre “ Uma enfermidade séria e característica da córtex cerebral “.

 Para desconforto e tristeza do conferencista aquilo que seria um momento histórico passou em brancas nuvens. Nenhum questionamento foi feito na ocasião.  Uma pena, pois os olhares estavam voltados  todos para a incipiente Psicanálise de Sigmund Freud  que iria desencadear um persistente barulho junto à comunidade médica mundial .

No ano de 1910, faz- se o lançamento da oitava edição do Handbook of Psychiatry de Emil Kraepelin que num capítulo sobre demência, coloca para o mundo científico pela vez primeira o termo Doença de Alzheimer. A partir de então este epônimo viajou pelo mundo.

Em dezembro de 1915, aos 51 anos de idade, morre Alois Alzheimer em Breslau . Que descanse em paz este grande benfeitor da humanidade e tendo a certeza que não iremos esquece– lo  jamais!

Ao longo de um século o interesse por um  melhor conhecimento desta doença neurológica crônica e progressiva tem seguido várias vertentes. As pesquisas visam buscar soluções não só para aliviar os sintomas da doença,  mas impedir seu avanço e até mesmo prevenir seu aparecimento . 

Medidas simples como uma dieta mediterrânea, exercícios físicos adequados, incluindo práticas laborais podem ter serventia na prevenção de futuros problemas. 

Um ponto basilar consta do controle medicamentoso de fatores de risco como colesterol elevado, hipertensão arterial sistêmica, diabetes e inflamação.

 A novel medicina genômica traz luzes com referência ao manuseio de genes defeituosos ligados à doença de Alzheimer, ou de seus produtos como os amiloides e a apolipoproteína E .

  O mundo inteiro espera com ansiedade o desenrolar dos acontecimentos torcendo para que a ciência encontre uma saída para que a “ segunda infância “ dos idosos seja permeada de saúde e prazer que a vida nos deve oferecer a todos .





domingo, 20 de novembro de 2016

                                                 O FINO HUMOR DE GÊNIOS

                                  

                                 


Para uma amiga : Cristiane

Em 2012 ao completar 70 anos, o matemático, físico teórico e cosmólogo britânico Stephen Hawking respondendo a uma interrogação acerca do maior mistério do universo  falou : “ As mulheres . Para mim elas são um completo mistério .”

Em recente aparição no Reino Unido, o gênio  Stephen sentenciou : “Não acredito que duremos outros mil anos sem sairmos do nosso frágil planeta . Por isso , lembrem-se de olhar para as estrelas e não para os pés .”

Alguém na plateia questionou a Stephen qual seria o efeito cosmológico da saída de Zayn Malik da boysband One Direction ?

Stephen, sem perder a classe e exercitando seu fino humor, respondeu: “Até que enfim uma questão importante. O meu conselho, neste caso, a qualquer fã desiludida com a saída dele é que estude física teórica porque um dia poderemos provar a existência de universos múltiplos...

Não seria de todo impossível que algures, fora do nosso universo esteja outro diferente. Talvez aí, neste universo, o Zayn possa ainda estar nos One Direction .”

Nas entrelinhas o gentil físico britânico sugere a necessidade de colonização de outros planetas e não o fim da existência da humanidade idêntico àquele do desastre acontecido no passado com os dinossauros.

 Acredita-se que o colapso do sol poderá acontecer daqui a 5 bilhões de anos. A expansão, a auto- organização, a complexidade, são formas pelas quais o próprio universo domestica o caos. 

A ordem e a desordem, o caos e o cosmos, a criação e a destruição, até o esperado Big- Crunch ainda levará muito tempo para acontecer. 

Até lá vamos aproveitar o íntimo contato com gênios daqui e de outros multiversos e nos deleitar com um tiquinho de pérolas  manufaturadas pelo poeta de Cuiabá, Manoel de Barros (1916 – 2014) :

“Só ouvindo o nada no ventre da noite me reinvento“
“Eu queria crescer para passarinho“
“Sapo é um pedaço do chão que pula“

“Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber que o esplendor da manhã não se abre com faca“
“Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma“

“No começo era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz : Eu escuto a cor dos passarinhos .

 A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor , mas para som. Então se criança muda a função de um verbo , ele delira . E pois . Em poesia que é a voz de fazer nascimentos  - O verbo tem que pegar delírio.”

“Hoje eu desenho o cheiro das árvores“
“Eu já disse quem sou Ele. Meu desnome é Andaleço . Andando devagar eu atraso o final do dia . 

Caminho por beiras de rios conchosos . Para as crianças da estrada eu sou o Homem do Saco. 

Carrego latas furadas, pregos, papéis usados ( Ouço arpejos de mim nas latas tortas ). Não tenho pretensões de conquistar a inglória perfeita . Os loucos me interpretam. 

A minha direção é a pessoa do vento . Meus rumos não tem termômetro. De tarde arborizo pássaros. De noite os sapos me pulam. Não tenho carne da água. Eu pertenço de andar atoamente.

Não tive estudamentos de tomos. Só conheço as ciências que analfabetam. Todas as coisas têm ser ?. Sou um sujeito remoto. Aromas de jacinto me infinitam. E estes ermos me somam .”

“Poesia é a infância da língua. Sei que meus desenhos verbais nada significam.

 Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho profundidades.”
Ponto final !


segunda-feira, 14 de novembro de 2016

                                                          UMA NUVEM PASSAGEIRA



Caminhando em busca de meu sustento, suado e bendito, cruzo com um pequeno exército de irmãos da natureza, filhos do Senhor, serpenteando o chão com o seu farnel de restos de folhas às costas. Paro com cuidado visando não atrapalhar aquelas formigas em sua faina diária.
 A toda hora esbarro com o milagre da vida e com o intrigante mistério da breve passagem do tempo. Nunca tive o desprazer de assistir o sol derramar áureas lágrimas no cair da tarde mergulhando majestoso no oceano a beijar Netuno; nem a lua se desfazer em lágrimas de prata quando o rei-sol em sua esplêndida carruagem, garboso acende tochas de fogo na terra.

“ Eu sou nuvem passageira/que com o vento se vai/eu sou como um cristal bonito /que se quebra quando cai/não adianta escrever meu nome numa pedra/pois essa pedra em pó vai se transformar/você não vê que a vida corre contra o tempo/sou um castelo de areia na beira do mar /a lua cheia me convida para um longo beijo/mas o relógio te cobra o dia de amanhã/estou sozinho , perdido e louco no meu leito/e a namorada analisada por sobre o divã/por isso agora o que eu quero é dançar na chuva/não quero nem saber de me fazer, vou me matar/eu vou deixar um dia a vida e a minha energia/sou um castelo de areia na beira do mar “                       Nuvem Passageira de autoria de Hermes Aquino .

Uma nuvem passageira, um piscar d’olhos, uma breve noite de sonho, o que importa é viver com o que temos às mãos no dia de hoje, o “ carpe diem “, pois no futuro, num momento qualquer a lua irá nos procurar e será uma busca em vão.


“ Oh! Tristeza me desculpe /estou de malas prontas/hoje a poesia veio ao meu encontro/já raiou o dia /vamos viajar/vamos indo de carona/na garupa leve/ do vento macio/que vem caminhando/desde muito longe/lá do fim do mar/vamos visitar a estrela da manhã raiada/que pensei perdida pela madrugada/mas que vai escondida/querendo brincar/senta nesta nuvem clara/minha poesia/anda se prepara/traz uma cantiga/vamos espalhando música no ar/olha quantas aves brancas/minha poesia/dançam nossa valsa/pelo céu que o dia/faz todo bordado/de raio de sol/oh! Poesia me ajude/vou colher avencas/lírios , rosas, dálias/pelos campos verdes/que você batiza/de jardins do céu/mas pode ficar tranquila/minha poesia/pois nós voltaremos/num clarão de lua/quando serenar/ou talvez quem sabe/no cavalo baio/ no alazão da noite/cujo o nome é raio/raio de luar”            Viagem de  autoria de Paulo César Pinheiro e João de Aquino.





sábado, 12 de novembro de 2016

VOCAÇÃO DE VIEIRA


Nos idos dos anos 50 do século passado, no Colégio Castelo Branco da Arquidiocese de Fortaleza, era adotada no ensino de Português a 
“Anthologia Nacional” de Fausto Barreto e Carlos de Laet ( Livraria Francisco Alves ,1931 ).

Na primeira página constava um lembrete do maior homem de letras do Ceará, José de Alencar (1829 – 1877):

“Todo homem, orador, escritor ou poeta, todo homem que usa da palavra, não como de um meio de comunicação de suas ideias, mas como de um instrumento de trabalho... deve estudar e conhecer a fundo a força e os recursos desse elemento de sua atividade “ .

A lição inicial do livro era de autoria do prosador maranhense João Francisco Lisboa (1812 -1863), uma crônica denominada “ Vocação de Vieira “ . O padre que nos ministrava a aula sempre repetia que sonhava que daquele grupo de jovens, pelo menos um fosse possuído por um “ estalo de Vieira “ .
 Sei que daquela incubadora do ensino foram gestados médicos, advogados, engenheiros, políticos, escritores, dentre outros.  Enfim, o milagre do saber!

“Não contava bem Antônio Vieira oito anos de idade, quando em 1615 teve de acompanhar sua família para a metrópole do Brasil. Da razão desta viagem não há cabal certeza; mas presume- se que 

Cristóvão Vieira Ravasco , seu pai , viera despachado a servir algum emprego , talvez o de secretário do Estado , que depois exerceu durante toda vida seu filho Bernardo Vieira Ravasco , irmão mais novo do padre.

Mal desembarcou na Bahia, começou este a estudar os primeiros rudimentos e humanidades, frequentando as escolas dos Jesuítas, que floresciam então ali, como em toda a parte, com grande aproveitamento da mocidade.

Mostrava- se Antônio Vieira assíduo e fervoroso nos estudos, e lidava deveras por avantajar –se aos demais seus condiscípulos; mas conta- se que nos primeiros tempos, apesar da natural vivacidade que desde os mais tenros anos manifestara, não poderia fazer grandes progressos, pelo não ajudar a memória rude e pesada, e toldada de espessa nuvem.

Era o estudante grande devoto da Virgem; e um dia que, ajoelhado ante a sua imagem, e cheio do pesar e abatimento que lhe causava aquela natural incapacidade, a implorava em fervorosa oração para que o ajudasse a vencer semelhante obstáculo, de repente sentiu como um estalo e dor aguda na cabeça, que lhe pareceu que ali acabaria a vida.

Era a Virgem que sem dúvida escutara e deferia a súplica ardente e generosa; e era o véu espesso, que trazia em tão indigna escuridão aquele juvenil engenho, que num momento se rasgava e desfazia para sempre.

Guiou dali Vieira para a escola com grande alvoroço, e sentiu- se tão outro do que fora até então, que logo animosamente pediu para argumentar com os mais sabedores e adiantados.

E a todos venceu e desbancou, com estranhável assombro do mestre que bem conheceu andava naquilo grande novidade.

Assim o referem pelo menos as crônicas da Ordem; e, se a anedota não é verdadeira , é pelo menos calculada para dar uma cor romanesca e maravilhosa aos primeiros lampejos deste engenho novel , que mais tarde havia deslumbrar o mundo pelo seu extraordinário fulgor “ .


                                                                                                                                                  ¹

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

UM PESADELO MEDONHO


Suando em bicas me alui da rede alva de Jaguaruana  em pleno breu da noite. De novo um medonho pesadelo: dois ursos brancos, um franzino (o pai) e um obeso  raivoso (o filho) , creio que , sem  muita certeza , oriundos da Sibéria ou do Alasca . 

Urravam abraçados ao som de tambores e trombetas, danados, lembrando a Guerra do Armagedon presente no livro bíblico do Apocalipse, que no versículo 16 diz: “ E ajuntaram-nos no lugar que em hebraico se chama Har- Magedon “ , localizado na terra de Canaã .
Já achei a explicação! Fui dormir com a vitrola Philco ligada num disco de Raul Seixas (1845- 1989), cantor, compositor e produtor musical, o “Maluco Beleza“ ou o “Pai do Rock Brasileiro“:

“ Ói , ói o trem , vem surgindo de trás das montanhas azuis , olha o trem/ói , ói o trem, vem trazendo de longe as cinzas do velho éon/ ói , já evém , fumegando , apitando , chamando os que sabem do trem /ói , é o trem, não precisa passagem nem mesmo bagagem no trem /quem vai chorar , quem vai sorrir ?/quem vai ficar , quem vai partir ?/pois o trem está chegando , tá chegando na estação/é o trem das sete horas , é o último do sertão , do sertão /ói , olhe o céu , já não é o mesmo céu que você conheceu , não é mais /vê ,ói que céu , é um céu carregado e rajado , suspenso no ar/vê é o sinal das trombetas , dos anjos e dos guardiões/ói , lá vem Deus , deslizando no céu entre brumas de mil megatons /ói , olhe o mal, vem de braços e abraços com o bem/ num romance astral / Amém !” .     

“O Trem da Sete” .

“Você me pergunta  /aonde eu quero chegar/se há tantos caminhos na vida/e pouca esperança no ar/e até a gaivota que voa /já tem seu caminho no ar/o caminho do fogo é a água/o caminho do barco é o porto /o do sangue é o chicote/o caminho do reto é o torto /o caminho do bruxo é a nuvem/o da nuvem é o espaço/o da luz é o túnel /o caminho da fera é o laço /o caminho da mão é o punhal/o do santo é o deserto /o do carro é o sinal /o do errado é o certo /o caminho do verde é o cinzento /o do amor é o destino /o do cesto é o cento /o caminho do velho é o menino /o da água é a sede/o caminho do frio é o inverno /o do peixe é a rede/o do pio é o inferno /o caminho do risco é o sucesso /o do acaso é a sorte /o da dor é o amigo /o caminho da vida é a morte “ .          “Caminhos”.


Tomo um suco de maracujá e caio novamente nos braços de Morfeu enquanto a carruagem do rei Hélios não aparece no horizonte!

sábado, 5 de novembro de 2016

DE NOVO O AMOR

Para Leila, com carinho




Meio século, quase uma vida e um amoroso reencontro. Como testemunho solitário, o luar a aspergir no dorso sereno do mar uma miríade de estrelas tremeluzentes.
 E você, prenhe de ternura  a me mostrar , cálida em voz baixa , repousando em meu peito cansado , a atemporalidade e a imensidão do poder do amor.

“Eu quisera subir muito alto, Senhor ,
Acima de minha cidade,
Acima do mundo, acima do tempo,

Quisera purificar meu olhar e ver tudo com teus olhos.
Eu veria então  o Universo , a Humanidade , a História , como o Pai os vê
Eu veria nesta prodigiosa transformação da matéria,
Neste perpétuo borbulhar de vida,

Teu grande Corpo que nasce sob o sopro do Espírito,
Eu veria a bela, a eterna Ideia de Amor de teu Pai, que se realiza progressivamente:
Tudo recapitular em ti as coisas do Céu e as da Terra.

E eu veria então que hoje como ontem, os mínimos elementos participam deste plano:
Cada homem em seu lugar,
Cada grupo,

E cada objeto.
Eu veria esta fábrica e aquele cinema,

A discussão da convenção coletiva de trabalho e a colocação do chafariz-da-beira-da-estrada,
Veria o preço do pão que se apregoa e a turma de moços que vai ao baile,

O gurizinho que nasce e o velho que morre,
Veria o menor fragmento de matéria  e a mínima palpitação da vida,
O amor e o ódio, o pecado e a graça.
Enlevado, eu compreenderia que aos meus olhos desenrola- se

A Grande Aventura do Amor começada na aurora do Mundo,
 A História Sagrada, que, segundo a promessa ,só na glória acabará,
Após  a ressureição da carne.

Quando te apresentares diante do Pai dizendo:
Está consumado, eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim.
Eu compreenderia que tudo está ligado,

Que tudo é um só e mesmo movimento de toda a humanidade e de todo o universo
Rumo a Trindade, em ti e por ti, Senhor.
Eu compreenderia que nada é profundo entre as coisas, as pessoas, os acontecimentos,

Mas que ao contrário, tudo é sagrado por Deus desde as origens,
E tudo deve ser consagrado pelo homem divinizado.
Eu compreenderia minha vida, imperceptível respiração neste Grande Corpo Total,
É um tesouro indispensável no projeto do Pai,
Então, caindo de joelhos, eu admiraria, Senhor, o mistério deste Mundo

Que, apesar dos inúmeros e medonhos aleijões do pecado
É uma longa palpitação do amor, rumo ao Amor Eterno.
Quisera subir muito alto, Senhor,
Acima do Mundo,
Acima do tempo,

Quisera purificar meus olhos e  ver tudo com teus olhos“


Deste modo, na varanda de minha pequena morada no Porto das Dunas, colada em Fortaleza , sorvi, uma vez mais, as belas verdades de um rico tesouro, o livro “Construir o Homem e o Mundo “ do padre francês Michel Quoist (1921-1997)que alimentou meus sonhos juvenis nos anos 60 do século passado . Revivi o mesmo êxtase, a mesma reverência pela beleza da vida!

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

          FRANÇOIS MAURICEAU E A ARTE DO PARTO


François Mauriceau (1637-1709) nasceu em Paris e tomou um lugar de realce entre os grandes mestres da obstetrícia na Europa do século XVII. Mauriceau era um cirurgião e obstetra  que formou sua base de conhecimentos médicos no notório  Hôtel- Dieu de Paris. Prestou assistência a milhares de partos, incluindo o de membros da real corte francesa. Publicou  no ano de 1668 o célebre  

“ Traité des Maladies des Femmes Grosses et Accouchées “ que foi traduzido em diversos idiomas , como o  holandês , inglês , alemão e italiano . Foi pioneiro no estudo da conformação da bacia feminina, mostrando que o parto em mulher de bacia ampla, transcorria de modo fácil e sem afastamento dos ossos pélvicos. Condenou com veemência tanto a versão interna como a operação cesariana, considerando esta uma  cirurgia marcada pela fatalidade , invariavelmente . 

Apenas admitia a cesárea post- mortem.  Um outro grande obstetra da mesma época, Burton , não comungava com tal procedimento de Mauriceau  e verberava: “ Negar-se a salvar a uma pessoa quando está em seu poder fazê-lo é facilitar a morte,e neste caso  a morte de duas pessoas é imperdoável “

Mauriceau elaborou uma manobra para facilitar a  expulsão da cabeça do feto num parto de nádegas , conhecido como “parto das complicações crescentes “ e que até hoje tem sua serventia : o parteiro coloca as extremidades dos dedos indicador e médio  a nível dos malares do feto forçando deste modo sua expulsão pelo canal do parto .

Em contrário à posição de seus predecessores considerava os lóquios ( líquido sanguíneo e seroso) no puerpério como uma secreção análoga à supuração de uma ferida. 

Mauriceau tornou-se um estudioso numa patologia hemorrágica da gestação, a placenta prévia, que carreava um elevado índice de mortalidade materna e fetal por desatada sangria. O destino colocou no caminho de Mauriceau a assistência ao parto de sua irmã, com um severo quadro de hemorragia genital  e que findou com o óbito da  infeliz parturiente em consequência de anemia aguda . Mesmo nos dias hodiernos tal patologia continua ceifando vidas ao redor do mundo.

Em 1670 em Paris, François Mauriceau protagonizou um infeliz episódio com um obstetra inglês, Hugh Chamberlen , que à época  detinha o exclusivo uso do fórceps . Com astúcia, Mauriceau ofereceu como prova para comprar por 10.000 libras o segredo de tal instrumento, uma parturiente portadora de grave anomalia de bacia e que estava em transe de parto há três dias. A despeito de tentar aplicar várias vezes o fórceps, o epílogo deu-se com a morte da  paciente e do seu concepto . 

Deste modo a transação não foi efetivada. Mauriceau exultou do insucesso e em forma de chacota pregava aos quatro ventos que “Chamberlen se havia equivocado em julgar encontrar tanta facilidade para partejar as mulheres as mulheres em Paris como havia encontrado em Londres “ .

François Mauriceau morreu no dia 17 de outubro de 1709.
A despeito de tudo, o fórceps firmou-se como um instrumento que representa um prolongamento das mãos do parteiro e até os dias atuais ajuda na resolução de partos difíceis que exigem perícia em seu epílogo, com evidentes benefícios para o binômio materno e fetal.