segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019


Neste chuvoso domingo do pé de cachimbo, no Porto das Dunas , cedinho da manhã, na beira da praia, nenhuma vivalma desponta. Ao longo do tempo já achei no chão rente às espumas : relógio, celular , é até, seixo rolado com inscrição do tipo " Te amo , Maria " . Agora , bem aos meus pés, descubro uma solitária e gentil companheira - um filhote vivo de tartaruga verde da espécie aruanã. 
Ficamos a papear por alguns momentos , nos descobrindo . Depois , encaminhei - a de volta ao seu destino, o mar com seus perigos e mistérios aos cuidados de Netuno.
" As mãos nos ensinam a não ser egoístas.
A boca nos ensina a agradecer com palavras e canções.
O nariz nos ensina a aprender com o nosso ambiente.
Os olhos nos ensinam a demonstrar compaixão e sinceridade.
Os ouvidos nos ensinam a manter nosso equilíbrio.
Todas as nossas partes dão e recebem. Elas funcionam com base em um princípio de reciprocidade inerente ao próprio caráter.
Se nossos sentidos são tão nobres, não deveríamos sê - lo também? ".
( Tao, Meditações Diárias - Deng Ming - Dao).

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Pensares sobre a Arte / Ciência de Hipócrates
A milenar arte da cura repousa sobre os ombros de gigantes .

"Para ser grande , sê inteiro : nada 
Teu exagera ou exclui
Sê todo em cada coisa
Põe quanto és
No mínimo que fazes
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive" ( Fernando Pessoa - 1888 - 1935 ).

Poeticamente , o grande filho de Hipócrates, Prof. Dr. Celmo Celeno  Porto , graduado em medicina no ano de 1958, pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, no livro Carta aos Estudantes de Medicina , profetiza :
"Para ser médico, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui
( Nem o consciente, nem o inconsciente
Nem o racional, nem o emocional )
Sê todo em cada caso
Põe quanto és
No mínimo que fazes
( Seja o exame clínico ou um transplante cardíaco)
Assim em cada paciente a medicina toda
Brilha, porque alta vive ."
Ouçamos Sir W. Osler ( 1849 - 1919 ):
" A arte da medicina é para ser aprendida somente pela experiência. Não por herança, nem por revelação. Aprenda a ver , aprenda a ouvir , aprenda a sentir , aprenda a cheirar, e saiba que somente pela prática poderá se tornar um especialista ."
" Os quatro pontos de um compasso do estudante de medicina são: inspeção, palpação, percussão e ausculta. "
E a Telemedicina ? ? É outro assunto !
Ponto final.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Bonito para Chover
Para a poeta Jandira Cardoso

São Pedro acordou nesta manhã plúmbea na Bela Desposada do Sol , trabalhando pesado . Carrancudo , arrastando imensos móveis e mexendo nervoso , nas luzes celestes num pisca - pisca de pirilampos. Lágrimas benditas escoando das nuvens , clamando para que eu, novamente , busque nos braços de minha longínqua infância , um banho de bica na Praça Rogério Fróes. Tempo para soltar meu veleiro de papel que segue bamboleando, na coxia murmurando cânticos d'águas, rumo ao seu fadário.
"Os que nascemos no bochorno cearense aprendemos a amar - te o cântico, ó mãe das searas fecundas e dos lares bonançosos. Refrigério das estradas combustas e das rechãs estioladas. Embrião da alegria e da paz. Unção misericordiosa do Ceará.
És uma romanza de amor. O Solo, o Solo cearense, que a canícula estorrica e inflama , é teu enamorado eterno. Quanto mais foges, mais ele te deseja e mais arde , mais se calcina e mais se inferniza, no desespero de tua ausência. Estala na sede de teu beijo. Combure - se tantalizado . Anseia por ti, chispa revérberos de ódio, porque o fogo de suas entranhas exige o sedativo do teu bálsamo, a maciez do teu afago, a pianíssima ternura glacial de tuas gotas. E,- pobre enamorado - repulsa de sobre si os últimos lampejos da vida. E transforma sua face num lutuoso painel de catacumbas.
Mas, quando vens, e desces, noiva simbólica, tamborilando o rumor de tuas bátegas, o Solo recebe a carícia dos teus ósculos. Embebe - os, sôfrego. Transfigura - se. E opera- se, neste encontro, o milagre sempiterno do amor. Do Amor que dá entusiasmo e dá frutos. Do Amor que perpetua, na face da terra, o FIAT genesíaco da criação.
A natureza , nesse encontro , representa o grande tálamo nupcial - teu e do Solo...
Renova , todos os anos , ó Chuva , esse milagre bíblico do amor...
Apieda - te do nosso Solo , que , quanto mais foges, mais se contorce e mais arde , mais se estiola e calcina , mais definha e mais se enfermiza , desesperado e trágico, na sede infinita do teu beijo.
Volta , de novo , ó Chuva , sobretudo agora, e faze reacender- se em nossos lares o círio votivo da Esperança ".
Oração À Chuva : excertos da mimosa crônica da autoria de João Perboyre e Silva ( 1905 - 1965 ) , membro da Academia Cearense de Letras, ocupante da Cadeira n. 33 e presidente da Associação Cearense de Imprensa.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019


"Depois que Narciso morreu , contou Oscar Wilde, todas as flores à beira da água ficaram desoladas e pediram ao rio algumas gotas de água para chorar.
- Ah - disse o rio - , se todas as minhas gotas d'água fossem lágrimas, eu não as teria suficientemente para chorar a morte de Narciso. Porque eu o amava .
- Como não o amá - lo ? - disseram então as flores. - Ele era tão belo !
- Ele era belo? - perguntou o rio.
- E quem poderia saber melhor do que você? - disseram as flores. - A cada dia ele se debruçava por cima da margem e contemplava sua beleza nas suas águas.
- Mas não era por isso que eu o amava - disse o rio.
- E, então, por que ?
- Porque, quando ele se debruçava, eu podia ver a beleza das minhas águas nos olhos dele ."
O Amor do Rio , do livro Contos Filosóficos do Mundo Inteiro , da autoria de Jean - Claude Carriére.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019


"No dia brancamente nublado entristeço quase a medo
E ponho - me a meditar nos problemas que finjo ...
Se o homem fosse , como deveria ser,
Não um animal doente , mas o mais perfeito dos animais,
Animal direto e não indireto,
Devia ser outra a sua forma de encontrar um sentido às coisas,
Outra e verdadeira.
Devia haver adquirido um sentido do conjunto;
Um sentido, como ver e ouvir , do total das coisas
E não, como temos, uma ideia do total das coisas.
E assim - veríamos - não teríamos noção de conjunto ou de total.
Porque o sentido de total ou de conjunto não seria de um total ou de um conjunto
Mas da verdadeira Natureza talvez nem todo nem partes.
O único mistério do Universo é o mais e não o menos.
Percebemos demais as coisas - eis o erro e a dúvida.
O que existe transcende para baixo o que julgamos que existe.
A Realidade é apenas real e não pensada.
O Universo não é uma ideia minha.
A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos.
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.
Assim como falham as palavras quando queremos exprimir qualquer pensamento,
Assim falham os pensamentos quando queremos pensar qualquer realidade.
Mas , como a essência do pensamento não é ser dita, mas ser pensada ,
Assim é a essência da realidade o existir , não o ser pensada.
Assim tudo o que existe, simplesmente existe.
O resto é uma espécie de sono que temos.
Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença.
O espelho reflete certo; não erra porque não pensa.
Pensar é essencialmente errar.
Errar é essencialmente estar cego e surdo.
Essas verdades não são perfeitas porque são ditas,
E antes de ditas, pensadas:
Mas no fundo o que está certo é elas negarem - se a si próprias
Na negação oposta de afirmarem qualquer coisa.
A única afirmação é ser.
E ser o oposto é o que não queria de mim..."
Poema da autoria de Alberto Caeiro ( Fernando Pessoa) : 1888 - 1935.
Foto que ilustra o texto : Rio Pacoti encontrando o Atlântico Oceano no Porto das Dunas.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019




Na boca da noite o pintor celestial anunciando com cores de várias matizes o próximo repouso do Rei - sol. Ouço n'alma o badalar do sino da Igreja do Coração de Jesus chamando para a Ave Maria na minha já distante infância.
" Cai a tarde tristonha e serena
Em macio e suave langor
Despertando no meu coração 
A saudade do primeiro amor.
Um gemido se esvai lá no espaço 
Nesta hora de lenta agonia
Quando o sino saudoso murmura 
Badaladas da Ave Maria.
Sinos que tangem com mágoa dorida
Recordando os sonhos da aurora da vida
Trazem ao coração paz e harmonia 
Na prece da Ave Maria.
No alto do campanário 
Uma cruz simboliza o passado 
De um amor que já morreu
Deixando um coração amargurado "
Ave Maria , composição de Erotides de Campos ( 1896 - 1945 )

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019


Encontro do Rio Pacoti com o Atlântico Oceano, no Porto das Dunas, neste fim de tarde de sábado. A palavra deve vestir - se como uma deusa , e erguer - se como um pássaro:
"O Rio nasce
Toda a vida.
Dá - se 
Ao mar a alma vivida .
A água amadurecida,
A face
Ida.
O Rio sempre renasce
A morte é vida. "
Poema "Alongo- me " da autoria de Guimarães Rosa ( 1908 - 1967 )

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

O Comprimido
Para o boêmio Clayrton Weyne

Na Praça do Passeio Público, um imponente hospital filantrópico foi fundado no ano de 1861 com fins de prestar assistência a uma população estimada em cerca de 16 mil almas moradoras na capital cearense. Era a Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza que ao longo dos anos tornou - se , com a inestimável ajuda de" Homens de Bem "que compõem sua Irmandade Beneficente , uma modelar instituição de assistência à saúde, ensino e pesquisa do Ceará.
Na década de 70 do século passado , no movimentado ambulatório de ginecologia daquele nosocômio , uma jovem de 18 anos busca atendimento médico para o que seria uma emergência. A queixa era de dor cortante ao urinar que surgira há 3 dias. A história clínica sumária pouca luz trazia para se firmar uma hipótese diagnóstica plausível.
O médico dispensou o exame ginecológico e solicitou alguns exames laboratoriais : hemograma completo , sumário de urina e glicemia .
Os resultados dos exames mostraram : hemograma dentro da normalidade , sumário de urina sem sinais de infecção e revelando , contudo , a maciça presença de glicose na amostra ; e a glicemia apontando para 350 mg/dl, valor bem acima da normalidade.
Conclusão diagnóstica: Diabetes Melito.
" - Quer dizer , doutor , que eu contrai esta tal de diabetes , pelo visto , mais uma doença do mundo ?"
" - O diabetes vem de dentro da gente , resultante de um excedente de açúcar no sangue e não se trata, obviamente ,de uma doença venérea, como um esquentamento ( gonorréia) , uma cristã de galo ( HPV ) , ou um cancro duro ( sífilis) , falou o esculápio".
" - Agora eu entendo , verberou a cliente - o meu companheiro , mulherengo incorrigível, conhecido no Morro do Ouro , aqui vizinho , como Bico - Doce , já me apresentou a todas essas mazelas citadas pelo senhor, exceto, está tal do sangue doce "
" Só faltava essa, pois cansei de tomar injeção de penicilina no ambulatório do enfermeiro Almeida , por conta das travessuras deste amante infeliz"
Desenhava - se ali o prelúdio para uma nova discussão no casebre dos dois , no vizinho Curral , um furdunço medonho que , quase sempre, findava na delegacia do bairro.
E assim seguia o calvário do pinguço Bico - Doce , cada vez mais calado e esquisito, bebendo todas , diariamente , e chegando grogue ao barraco , vendo alucinações de bichos subindo pelas paredes , noite adentro.
Em certa madrugada , na Emergência da Santa Casa de Misericórdia, chega um Bico - Doce estropiado , conduzido pela sua jovem companheira diabética, ele mostrando uma convulsão generalizada atrás da outra, pletórico e vertendo espuma pela boca. Ela o encontrara, há pouco, no chão do barraco , já desacordado, tendo ao lado uma caixa vazia de veneno para matar ratos.
Meia hora depois , Bico - Doce , principiava sua jornada para o além, encompridando o sono , numa fria mesa do necrotério, tendo ao lado uma solitária vela tremeluzindo e ao longe um galo anunciando um novo alvorecer.
" Deixou a marca dos dentes dela no braço/pra depois mostrar pro delegado/ se acaso ela for se queixar da surra que levou/por causa de um ciúme incontrolado/ele andava tristonho guardando um segredo/ chegava e saia , comer não comia e só bebia /cadê a paz/tanto que deu pra pensar/ que poderia haver outro amor/ na vida do nego pra desassossego/ e nada mais /seu delegado ouviu e dispensou/ninguém pode julgar coisas de amor/O povo ficou inteirado do acontecido/cada um dando sua opinião/ela acendeu muita vela/pediu proteção, o tempo passou/ e ninguém descobriu/ como foi que ele se transformou/ uma noite, noite de samba/noite comum de novela /ele chegou pedindo um copo d'água/pra tomar um comprimido/depois cambaleando foi pro quarto e se deitou/era tarde demais quando ela percebeu/que ele se envenenou/seu delegado ouviu e mandou anotar/sabendo que há coisas que pode julgar/só ficou intrigado quando ela falou/que ele tinha a mania de ouvir sem parar/um samba do Chico falando das coisas do dia a dia "
Letra da música " Comprimido " , composta pelo poeta e cantor Paulinho da Viola .
Rosa e JK

"Guimarães Rosa, desassombrado no sertão poético, cauteloso em prosa protocolar, foi contemporâneo de Juscelino na Escola de Medicina de BH. Presidente , JK pediu a seu auxiliar João Milton Prates que localizasse o escritor por telefone : ele próprio queria comunicar ao amigo sua promoção a ministro do Itamaraty. 
Rosa fez um apelo ao assessor: - um momentinho só: tenho de vestir o paletó para falar com o presidente ."
Excerto do livro Diário da Tarde , da autoria do mineiro Paulo Mendes Campos ( 1922 - 1991 ).
Como mudou em Pindorama, o respeito com as pessoas nos dias de hoje !
Minas Gerais ao longo dos séculos garimpou muitas pérolas da linhagem de Guimarães Rosa, JK , Paulo Mendes Campos , Fernando Sabino , Otto Lara Resende, Carlos Drummond de Andrade, Adélia Prado, Rubem Fonseca , Affonso Romano de Sant'anna, e Darcy Ribeiro, dentre outros.
Pindorama nos atribulados tempos atuais , mostra acúmulo de " rejeitos " com potencial risco para a saúde da nação como um todo.. O esgarçamento de partes da barragem da livre e salutar convivência põe em xeque a sobrevivência de Pindorama.
Não convém fazer rasos remendos na "barragem decrépita ", corroída nas últimas décadas, mas sim, reconstruir tudo aplicando novos saberes , caso contrário, o desastre será fatal.
Acorda Pindorama !


São Pedro abriu as torneiras , de vez , trazendo bênçãos ao meu querido Ceará:
" Perto de muita água, tudo é feliz "
" A água ... grita a qualquer pancada que lhe dão "
"Felicidade se acha é só em horinhas de descuido " ( Guimarães Rosa - 1908 - 1967 ).
 — em Sao Carlos - Centro de Diagnostico Por Imagem.