quinta-feira, 29 de junho de 2017

PARECE QUE FOI ONTEM: UMA TRISTE HISTÓRIA SEM NOMES




Numa república de bananas localizada na América Latrina, no início da década de sessenta do século passado, ao abrigo da escuridão da noite, um ser híbrido de senador e latifundiário paulistano, preside uma seção extraordinária no Congresso, com o fito de declarar a vacância do cargo de presidente da República, em carta lida por um líder que no futuro quase assumiria o cargo de maior representatividade da nação, não fora uma mortal diverticulite. Após a sessão no Congresso, apagaram-se as luzes e fecharam-se, literalmente, as portas daquela casa de mãe – Joana. O fantoche civil que tomou conta do pedaço, eterno presidente das interinidades, ganhou um retrato jocoso do médico e garimpeiro de palavras, habitante das Gerais: “ – É um modess – no melhor lugar, nos piores dias, para evitar derramamento de sangue”. Perfeito!

O legítimo presidente empreendeu providencial fuga para uma outra republiqueta próxima, pois seguro morreu de velho. Agora sob o comando de um general oriundo das caatingas nordestinas, muita água rolaria por baixo da ponte frágil da democracia local. Um jornalista careca e gaiato, junto com uma patota de alcoolistas lançou um tabloide nanico e na capa sugeriu a figura do tal general nordestino para Miss Brasil. Claro, incontinenti, foi empastelado o novel pasquim que tinha como legenda: “ Todo homem tem o direito de torcer pelo Vasco na arquibancada do Flamengo”. Estavam enganados e brincando com fogo de arcabuz.

Passaram-se quase cinquenta anos da dita aventura rocambolesca na perdida república de bananas da triste América Latrina. O cenário hoje desenha-se apocalíptico e muito próximo ao daquela época: políticos malandros, falsos, corruptos, que se aproveitam no breu das noites para dilapidar todo o patrimônio nacional, mancomunados com a escória do empresariado nativo. Acreditam eles, piamente, que o braço curto de uma justiça – cega, surda, muda e manca - não os alcança e que seus podres irmãos do parlamento não os trairão jamais, respeitando os rígidos códigos da camorra.

No corpo desta história aparecem almas que poderiam ser identificadas como: Raniere Mazzilli, João Goulart, Tancredo Neves, Humberto de Alencar Castelo Branco, Millôr Fernandes e Guimarães Rosa. As figuras maléficas do presente não serão citadas nesta crônica por absoluta falta de espaço e pela sua clara insignificância.


E o povo? A solução definitiva só pode vir da sociedade civil organizada. “ Coxinhas e Mortadelas “, mãos à obra, se é que ainda resta um fiapo de tempo!

terça-feira, 27 de junho de 2017

GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA: UMA DURA REALIDADE




Uma bela mulher de cabelos azuis da cor do mar e portando um largo sorriso juvenil adentrou, iluminando o sisudo consultório de um velho parteiro de aldeia.

“- Vim iniciar um pré-natal. E trouxe meu primeiro filho para participar deste momento sublime”. Calvin, era o nome do pimpolho, um cãozinho da raça pinscher miniatura, quieto e atento a toda conversa, muito bem aconchegado ao morno colo “ materno”.

Após o preenchimento do Cartão da Gestante com rigorosa anamnese, o doutor avisou que precisaria examinar a novel cliente. De pronto, ela pediu licença para chamar o seu companheiro que ficara na sala de espera, trabalhando freneticamente num computador de mão.

“ – Aí vozão! Tudo em cima? “

Na maior informalidade do mundo, o jovem com um coque preso no alto da cabeça e pejado de dragões espalhados pelo pescoço e membros superiores deu início a um papo surreal mostrando surpresa pela infinidade de lápis, canetas, borrachas e papéis espalhados em cima da mesa de trabalho do esculápio e, inacreditável, sem nenhum sinal de vida inteligente conectado na Web. Apenas um pequeno aparelho de som gemia maneiro um chorinho de Pixinguinha.

O velho parteiro falou de sua alegria ao participar junto desta família híbrida e jovial, exato naquele momento fundamental da vinculação pré-natal: a primeira ultrassonografia com a visualização do concepto e a ausculta dos batimentos cardíacos fetais. Calvin, agora nos braços do “pai” ensaiou um breve momento de ciúme com uma mistura de grunhidos e choro baixo. Uma pândega!

Em seu meio século de labuta em três turnos, aquele parteiro já vivenciara (quase) todo tipo de situação no consultório.

 “- Vamos aprender juntos, caros amigos, nesta longa jornada de nove meses, às vezes, navegando em mar tranquilo e em outras ocasiões enfrentando fortes tempestades. Não importa, estaremos trabalhando no acompanhamento psicológico da gravidez, na consecução do parto e na enriquecedora relação de pais e filhos na construção de sua autonomia, uma dinâmica de alteridade, transformadora da família”. Pregou, paternalmente, o velho homem de jaleco branco rezando para que aquela família ali à sua frente entendesse e aceitasse o tipo de assistência pré-natal por ele ofertada.

“ A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera que a gravidez na adolescência ocorre entre dez e dezenove anos, e as que engravidam com catorze anos ou menos são especialmente vulneráveis e mais expostas à morbimortalidade. Cerca de dezesseis milhões de adolescentes entre quinze e dezenove anos, e cerca de um milhão com menos de quinze anos dão à luz a cada ano – 95 % dos casos se dão em países menos desenvolvidos “ (Maldonado, M.T., 2017)

Ainda cabem sonhos diante daquela situação não planejada de uma gravidez na adolescência? O “poetinha” Vinícius de Moraes com larga experiência no ramo do amor, destila sua opinião em versos:

“ Filhos...Filhos?/ melhor não tê-los !/mas se não os temos/como sabe-los?/se não os temos/que de consulta/quanto silêncio/como os queremos !/banho de mar/diz que é um porrete.../cônjuge voa/transpõe o espaço/engole água/fica salgada/se iodifica/depois, que boa/que morenaço/que a esposa fica !/resultado: filho/e então começa/a aporrinhação :/cocô está branco/cocô está preto/bebe amoníaco/comeu botão/filhos ? filhos ?/melhor não tê-los/noites de insônia/cãs prematuras/prantos convulsos/Meu Deus, salvai-o!/ filhos são demo/melhor não tê-los.../mas se não temos/como sabê-los ?/como saber/que macieza/ nos seus cabelos/que cheiro morno/na sua carne/que gosto doce/na sua boca !/chupam gilete/bebem xampu/ateiam fogo/no quarteirão/porém, que coisa/que coisa louca/que coisa linda/que os filhos são!”       

Poema Enjoadinho de Vinícius de Moraes (1913- 1980).


domingo, 25 de junho de 2017

HOMENS- GABIRUS DO PLANALTO CENTRAL





“ Napoleão Bonaparte era de pequena estatura. O mesmo se diz do Apóstolo São Paulo e de muitos outros homens notáveis, quer pela ciência, quer pelo valor bélico, quer pela Santidade. Tem razão o prelóquio: “ O homem não se mede a palmo”.

Qual seria então o critério para se poder dizer que um homem é mais do que outro? Um será grande pela estatura e pequeno pela cultura científica. Um será grande como artista e pequeno pelo seu valor moral. Um será grande pelo seu gênio bélico e pequeno entre os literatos.

Dizer que um homem é grande realmente não é fácil. Bossuet, ao começar a oração fúnebre diante do ataúde de Luiz XIV, cognominado o Grande – não teve a coragem de chama-lo de grande: “ – Grande? Grande só é Deus “. Em face da morte, a grandeza humana se reduz tanto que perde o seu significado.

De Bonaparte se conta que, certa vez, quis pendurar um quadro na parede, mas não alcançou o prego. Acudiu um oficial que estava perto: “ – Permita-me pendurá-lo, pois eu sou maior do que V. Majestade”.

“- Maior não – respondeu o Imperador: - Podes ser mais alto do que eu; maior não”.

Grandeza real é somente a da virtude”.

Crônica de D. Antônio de Almeida Lustosa (1886- 1974), extraída do livro Respingando, da Imprensa Universitária do Ceará (1958).

No ano de 1991 a mídia brasileira colocou em manchete um trabalhador rural do Nordeste brasileiro portando 1,35 metro de altura. Foi denominado de “homem- gabiru”. Certos tipos de ratos do Nordeste são conhecidos como” gabirus”. O nanismo daquele nordestino não era genético, e sim, nutricional, promovido pela carência alimentar crônica, fruto de um sofrível cardápio à base de mingau de água com farinha, e carne apenas oriunda de tatu, teju e rato do mato. Assim viviam milhões de sertanejos famintos. Nada que políticas governamentais bem urdidas não resolvessem.

Hoje perambulam feito zumbis no Planalto Central, verdadeiras ratazanas e homens-gabirus diferentes daqueles descritos pela mídia dos anos 90.

 Agora, mostram-se, quase todos, de estatura elevada, bem corados, sorridentes, malandros, bem longe do “nanismo nutricional” ; e sim, com o pérfido “ nanismo moral “ fruto da desbragada corrupção espalhada como metástase, irmanamente dividida entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Faltam a estas “pestes” as grandezas da virtude!
Um povo que elege corruptos não é vítima, é cúmplice! O que se precisa providenciar?
 Plantar a jato ratoeiras a granel!





sexta-feira, 23 de junho de 2017

 SOBRE TELÔMEROS, EM DOIS DEDOS DE PROSA
Para o Dr. Marcus Bessa




Nascer, crescer, amadurecer, reproduzir, envelhecer e morrer, representam passos inevitáveis no breve piscar de olhos da terreal jornada humana. O belicoso, intolerante e imprevisível século XXI acolhe cada vez mais indivíduos de cabelos grisalhos. Comenta-se que “ quarenta anos é a velhice dos jovens, e que, cinquenta é a juventude da velhice”.

O envelhecimento é o maior fator de risco para o desenvolvimento de doenças. Entendendo as causas moleculares do envelhecimento podemos tentar prorrogar o tempo de vida saudável de uma pessoa. Considera-se o envelhecimento como um processo progressivo, intrínseco, multifatorial e irreversível que com o tempo ocorre em todo ser vivo a consequência da interação entre a genética do indivíduo e seu meio ambiente.  Credita-se a fatores genéticos/herdados (30%) e fatores ambientais/hábitos de vida (70%) como responsáveis pelo envelhecimento humano.

Para alguns estudiosos, a partir do momento seguinte à conjugação do espermatozoide com o óvulo, a ampulheta do tempo e o inexorável relógio da vida, passam a desenhar, pausadamente, os contornos da velhice. Alguns especialistas em envelhecimento apregoam a seguinte distinção de idades:

“ Velhos-jovens” (60 a 74 anos); “velhos” (75 a 84 anos); e, “velhos- idosos” (maiores de 85 anos).

 O bicho-homem envelhece cada um a seu próprio ritmo, uns de forma célere e outros mais lentamente. No entendimento de George Bray “ os genes carregam o revólver e o meio ambiente puxa o gatilho”.

Nesta intrincada história de genética e envelhecimento surgem os telômeros, uns segmentos de DNA localizados nas extremidades dos cromossomos, comparados às pontas de um cadarço de sapatos, que ao longo do tempo vão encurtando e se desgastando. Os telômeros tornam possível que as células se dividam sem perder informação genética, além do que protegem, estabilizam e previnem aderências entre os extremos das moléculas de DNA lineares. Em 1990 graças aos estudos de Carol W. Greider e Calvin Harley estabeleceu-se a relação entre telômeros e envelhecimento. Quanto mais curtos os telômeros, maior a probabilidade de degenerescência rápida, trazendo a reboque um rosário de achaques como doenças cardíacas, neurológicas, pulmonares, endócrinas, reumatológicas e câncer.
Umas enzimas, chamadas telomerases, que recriam novos terminais nas extremidades dos cromossomos, ajudam na reversão do encurtamento dos telômeros. Estudos sobre tais enzimas proporcionaram o Prêmio Nobel de Medicina em 1990 para os pesquisadores Jack W. Szostak , Elisabeth H. Blackburn e Carol W. Greider.

O mundo científico volta seus olhos para escrutinar melhor as funções dos telômeros e das telomerases com vistas a aplicações nas áreas da saúde do envelhecimento humano.

Resta aguardar e seguir, por enquanto, conferindo aos que vivenciam tal estágio da vida, regras básicas acessíveis a todos: acolhimento, segurança, boa alimentação, exercícios físicos adequados, controle do estresse, sono reparador, boa socialização, criação de novos hábitos, inclusive, laborais, e fugir das desagradáveis companhias do álcool, tabaco, refrigerante, gorduras saturadas e pesticidas agrícolas, dentre outras.

 Por enquanto, intervenções farmacológicas para serem aplicadas na assistência ao envelhecimento humano saudável, encontram-se sob a ótica de estudos, como a utilização de rapamicina , resveratrol, everolimus e metformina.


quarta-feira, 21 de junho de 2017



JACK, JÁ QUE SOU DO PANDEIRO
Para o Dr. Marigelbio Lucena




“ Xô, xô, xô, xô/casaca de couro/cantando as duas na telha/parece uma arapuá/cheio de vara e algodão/o ninho de uma casaca/não parece ninho, não/parece mais uns parceiros/dos “ pajaús“ do sertão/em riba do pé de turco/tem um ninho de graveto/tem garrancho de jurema/tem pau branco , tem pau preto/tem lenha que dá pra facho/tem vara que dá pra espeto/uma grita, outra responde/uma baixa, outra também/parece mulher pilando/ pro mode fazer xerém/subindo e descendo as asas /como os seios do meu bem/eu nunca vi desafio/mais bonito, mais igual/duas casacas de couro/quando começam a cantar/parece dois violeiros/num galope à beira-mar”
“ Eu só boto bebop no meu samba/quando o Tio Sam tocar um bandolim/quando ele pegar/num pandeiro e num zabumba/quando ele aprender/que o samba não é rumba/aí eu vou misturar/Miami com Copacabana/chiclete eu misturo com banana/e o meu samba vai ficar assim/turururi bop-bebop-bebop/ eu quero ver a confusão/turururi bop-bebop-bebop/oha aí o samba-rock, meu irmão/é, mas em compensação/eu quero ver o boogie-woogie/de pandeiro e violão/eu quero ver o Tio Sam/de frigideira/numa batucada brasileira”
José Gomes Filho (Jackson do Pandeiro), nasceu no dia 31 de agosto de 1919 em Alagoa Grande, no Estado da Paraíba, no Nordeste brasileiro. Cantor, instrumentista e compositor que se tornou conhecido como Rei do Ritmo. Passeava, à vontade, em baião, xaxado, xote, coco, arrasta-pé, quadrilha, marcha e frevo. Sua mãe, com o nome artístico de Flora Mourão, folclorista e cantadora de coco, iniciou-o na arte musical. Aos sete anos, o garoto José Gomes tocava zabumba acompanhando a mãe em apresentações em sua cidade natal. Mudou-se com a família, aos 13 anos de idade para a cidade de Campina Grande na Paraíba, já órfão de pai. Trabalhou, ainda menor de idade em uma padaria, ajudando a compor um apertado orçamento familiar. Aos 17 anos, largou este emprego e caiu nos braços das rodas de samba atuando como baterista e ritmista em casas noturnas de Campina Grande. O próximo pouso de José Gomes foi a cidade de João Pessoa, na Paraíba, fazendo o circuito de boates e cabarés, ótimas escolas para artistas principiantes em busca de fama. Ao se transferir para Pernambuco apareceu, em definitivo o nome artístico de Jackson do Pandeiro, quando atuava na rádio Jornal do Comércio. Desde criança, José Gomes portava o apelido de Jack, por conta de um personagem do cinema mudo americano de nome Jack Perrin. De Jack para Jackson foi um pulo, pela melhor sonoridade auferida. Apenas em 1953 Jackson do Pandeiro conseguiu gravar seu primeiro disco 78 rpm, com as músicas “Sebastiana”, de Rosil Cavalcanti; e, “Limoeiro” de Edgar Ferreira. Em 1956 Jackson do Pandeiro casou-se com Almira Castilho de Albuquerque, ex-professora e funcionária da Rádio Jornal do Comércio com quem formou uma dupla em apresentações, que se caracterizava por trocarem “umbigadas” em pleno palco. Um rosário de sucessos brotou, a partir de então, na vida de Jackson do Pandeiro: “ Mulher do Aníbal”; “Um a Um”; ”Canto da Ema”; “ Chiclete com Banana”; Boi da Cara Preta”; “ Vou Gargalhar”, dentre outros. Já trabalhando no eixo Rio- São Paulo, Jackson do Pandeiro, onde ajudou na difusão da música nordestina ao lado de Luiz Gonzaga, “O Rei do Baião” e Marinês e sua Gente , “ A Rainha do Baião”, assistiu o seu sucesso minguar com os furacões da Bossa – Nova de Tom e Vinícius; da Jovem- Guarda de Roberto e Erasmo; e, da Tropicália dos baianos, Gil, Caetano e Gal. Esta mesma turma da pesada , citada acima, na década de 70, tratou de fazer renascer a figura de Jackson do Pandeiro , gravando alguns de seus maiores sucessos .
Em 10 de julho de 1982, em Brasília, para onde fora realizar um show, Jackson do Pandeiro sofreu um Acidente Vascular Cerebral, vindo a falecer logo em seguida. No dia 11 de julho de 1982 o cantor foi enterrado no Cemitério do Caju, na cidade do Rio de Janeiro. Posteriormente, seus restos mortais foram transladados para sua terra natal, Alagoa Grande, na Paraíba.
O cantor e compositor pernambucano Lenine (1959 -) prestou singela homenagem a Jackson do Pandeiro com a música Jack Soul Brasileiro:
“ Jack Soul Brasileiro/e que som do pandeiro/é certeiro e tem direção/já que subi nesse ringue/e o país do swing/é o país da contradição/eu canto pro rei da levada/na lei da embolada/na língua da percussão/a dança mugango dengo/a ginga do mamulengo/charme dessa nação/quem foi?/ que fez o samba embolar?/ quem foi?/que fez o coco sambar?/quem foi?/que fez a ema gemer na boa?/quem foi?/que fez do coco um cocar?/quem foi?/que deixou um oco no lugar?/quem foi?/quem foi?/que fez o sapo cantor da lagoa?/e diz aí Tião!/diga Tião! Oi! foste? fui! compraste? Comprei! pagaste? paguei!/me diz quanto foi?/foi 500 reais/me diz quanto foi?/Jack Soul Brasileiro/do tempero, do batuque/do truque, do picadeiro/e do padeiro e do repique/do pique e do funk rock/do toque da platinela/do samba na passarela/despencando na ladeira/na zoeira da banguela/eu só ponho bebop no meu samba/quando o Tio Sam pegar no tamborim/quando ele pegar no pandeiro e no zabumba/quando ele aprender que o samba não é rumba/aí eu vou misturar/Miami com Copacabana/chiclete eu misturo com banana/ e o meu samba/vai ficar assim/ ah! Ema gemeu/ah! Ema gemeu! Ah! Ema gemeu! eu digo deixe/que digam/que pensem/que falem/eu digo/deixa isso pra lá/vem pra cá/o que que tem?/tô fazendo nada/você também/não faz mal bater um papo/ assim gostoso com alguém”
Ponto final !

sábado, 17 de junho de 2017

A HEMOPTISE E O COMEDOR DE GILETE




“ Morrem quatro por minuto nesta América Latina.../não conto os que morrem velhos, só os que a fome extermina/ não conto os  mortos de faca  nem os mortos de polícia/conto os que morrem de febre e os que morrem de tísica/conto os que morrem de bouba, de tifo, de verminose/conto os que morrem de crupe, de cancro e esquistossomose/mas todos esses defuntos, morrem de fato é de fome/quer a chamemos de febre ou de qualquer outro nome/morrem de fome e miséria quatro homens por minuto/embora enriqueçam outros que deles não sabem muito”

 Ferreira Gullar (1930-2016)

Surgia feito uma visagem, sentado com as costas na parede, abraçando uma humilde mala de madeira. Alto, esquálido, com uma mão amparando a cabeça e olhar petrificado lambendo tristemente o chão. Súbito, um fio de sangue escorre pela boca da pobre criatura. A maioria dos transeuntes olha de rabo de olho e passa adiante. Chico Barrão, um petiz curioso e de coração mole, morador da casa defronte onde se desenrola aquela patética cena, vai oferecer uma cristã ajuda. O pobre homem pede ao garoto que se afaste, pois ele é um portador de tuberculose pulmonar, a temível Peste Branca. O inocente, caça avexado no bolso da calça faroeste uma cédula que serviria para comprar um almanaque do Tarzan na banca da esquina e entrega o óbolo, satisfeito, ao doente. O homem, agradecendo, em um pinote se ergue e some rápido no bulício da vida. O pai do garoto, olhando da porta de casa, não teve tempo de advertir o filho incauto. Conhece a soez atitude recorrente daquele adulto. Ele mesmo com uma gilete produzia um corte superficial na língua para promover uma falsa hemoptise. Deste modo alimentava sua família numerosa às custas da piedade e inocência alheias. No cruel embate pela sobrevivência o homem pode se brutalizar a esse ponto.

“ Eu um dia cansado que estava da fome que eu tinha/eu não tinha nada, que fome que eu tinha/que seca danada no meu Ceará/eu peguei e juntei um restinho de coisas que eu tinha/duas calças velhas e uma violinha/e num pau-de-arara toquei para cá/e de noite eu ficava na praia de Copacabana/zanzando na praia de Copacabana/cantando o xaxado para as moças olhar/Virgem Santa! Que a fome era tanta que nem voz eu tinha.../zanzando na praia pra lá e pra cá/foi então que eu resolvi comer gilete.../ tinha um compadre meu lá de Quixeramobim que ganhou um dinheirão/comendo gilete na praia de Copacabana/eu não sei não, mas acho que ele comeu tanta, mas tanta, que quando eu cheguei lá/aquela gente toda estava com indigestão de tanto ver o cabra comer gilete/uma vez eu disse assim para um moço que vinha passando:

“Ô decente, vosmecê não deixa eu comer uma giletezinha para vosmecê ver?/” tu não te manca pau-de-arara?/” só uma, que eu ainda não comi nadinha hoje”/você enche , hem?”/aquilo me deixou tão aperreado que se não fosse o amor que eu tinha na minha violinha/eu tinha arrebentado ela na cabeça daquele...filho de uma égua/puxa vida, não tinha uma vida pior do que a minha/que vida danada que fome que eu tinha/mais fome que eu tinha no meu Ceará/quando eu via toda aquela gente num come-que-come/eu juro que tinha saudade da fome/da fome que eu tinha no meu Ceará/e aí eu pegava e cantava e dançava o xaxado/e só conseguia porque no xaxado/ a gente só pode mesmo se arrastar/ Virgem Santa! A fome era tanta que mais parecia/que mesmo xaxando meu corpo subia/igual se tivesse querendo voar/às vezes a fome era tanta que volta e meia/a gente arrumava uma briguinha/para ver se pegava a boia lá do xadrez/eita quentinho bom no estômago! /com perdão da palavra, a gente devolvia tudo depois/ que a boia já vinha estragada/mas enquanto ela ficava quentinha lá dentro , que felicidade !/não, mas as coisas agora estão melhorando. Tem uma dona lá no Leblon que gosta muito de ver é eu comer caco de vidro/com isso eu já juntei uns quinhentos mil réis / quando juntar um pouco mais, vou-me embora, volto para meu Ceará! /vou voltar para o meu Ceará/porque lá tenho um nome/aqui não sou nada, sou só Zé-com-fome/sou só Pau-de-Arara, nem sei mais cantar/vou picar minha mula/vou antes que tudo arrebente/porque tô achando que o tempo tá quente/pior do que anda não pode ficar”
 
Canção de Carlos Lyra (1939-) e Vinícius de Moraes (1913- 1980)               


quinta-feira, 15 de junho de 2017

                                                                 A PESTE





Acredita-se que o homem não deve olhar de frente nem para a morte nem para o sol. Convém, contudo, ter em mente, sempre, a nua verdade contida num dos livros sapienciais, como o Eclesiastes: “ Há um tempo de nascer e um tempo de morrer”.

Ao longo da história da humanidade vários males pontuaram como verdadeiras tragédias trazendo consigo uma elevada mortandade. É o caso da peste, também conhecida como peste negra, peste bubônica ou peste pneumônica, uma séria moléstia causada pela bactéria Yersinia pestis, transmitida pela picada da pulga de roedores (Rattus rattus).

A peste bubônica é a forma mais comum da doença (90% dos casos). Os sintomas aparecem em cerca de 2 a 6 dias após a picada de uma pulga, com um quadro de febre elevada, dor de cabeça e diminuição do apetite. Em seguida os gânglios linfáticos aparecem intumescidos e dolorosos (bubões) podendo progredir a um abscesso. Outras formas, ditas septicêmica e pneumônica são menos frequentes. O diagnóstico pode ser feito através de exame de sangue, escarro ou proveniente de material extraído do bubão. No tratamento farmacológico utilizam-se antibióticos convencionais como estreptomicina, gentamicina, tetraciclina ou doxiciclina. A taxa de sucesso gira em torno de 90%.

Nos dias hodiernos esta doença faz-se pouco comum e a mortalidade em indivíduos afetados pela peste é extremamente baixa por conta da eficácia dos antibióticos empregados, dentre outros fatores.

Faz pouco, a Secretaria de Saúde do Estado do Ceará (Sesa) emitiu um alerta para notificação imediata em caso de peste bubônica, contemplando cerca de 42 municípios, dentre os 184 que compõem a rede estadual. O último caso registrado de peste no Ceará deu-se no ano de 2005, na cidade de Pedra Branca. As áreas que merecem uma maior vigilância são: Chapada do Araripe, Serra de Baturité, Serra do Macaco, Uruburetama, Pedra Branca, e Ibiapaba.

Pelo menos três grandes pandemias de peste bubônica assolaram a humanidade:
 Primeira Pandemia ou Peste de Justiniano: ocorrida em torno dos anos de 541 a 543, durante o reinado de Justiniano I (527- 565) aparecida na Ásia e estendida ao Mediterrâneo. Não se sabe ao certo o número real de vítimas desta catástrofe, conquanto alguns estimem em cerca de 25.000.000 de pessoas.
 Segunda Pandemia ou Peste Negra: teve origem na China e chegou à Europa através de portos da Espanha, França e Itália entre os anos de 1347 e 1348. Em certas localidades chegou a dizimar cerca de 75% da população. Estima-se que entre 25 e 75 milhões de pessoas tenham sido mortas pela peste nessa ocasião, o que representa algo como 1/3 de toda a população da época.

 Giovanni Boccaccio deixou registrado através de uma magistral obra denominada Decameron (do grego antigo, deca=dez, e, hemeron= dias ou jornada) uma história de 100 contos envolvendo sete mulheres e três homens que se abrigam em uma vila isolada de Florença , impingindo fuga da peste negra que afligia a cidade. Segundo uma tradição simbólica, as sete moças representam as Quatro Virtudes Cardinais (Justiça, Prudência, Fortaleza e Temperança) e as Três Virtudes Teologais (Fé, Esperança e Caridade). Os três homens representam a Divisão da Alma em Partes (Ira, Razão e Luxúria).

Terceira Pandemia: Teve origem na China, em Yunnan, em 1891, onde em poucos meses, causou 180.000 mortes em Cantão e Hong Kong. Nesta ocasião o cientista Alexandre Yersin descobriu o bacilo causador da peste, denominado Yersinia pestis, em sua homenagem. O tratamento, contudo, só viria a acontecer com a utilização de antibióticos por volta da segunda metade do século XX.

O escritor e filósofo existencialista argelino Albert Camus (1913- 1960) escreveu em 1947 um livro A Peste que conta a história de trabalhadores que descobrem a solidariedade em meio a um surto de peste bubônica ocorrida na cidade de Oran na Argélia.

“ No Ceará, as populações, historicamente, sempre foram submetidas a condições sociais extremamente precárias. O homem, nesta situação, fica submetido, sem proteção alguma, a elementos adversos, sem as mínimas condições de defesa. Prova disso são as grandes tragédias que tornam a história do Ceará marcada por repetidas situações de seca- fome- miséria- epidemia – sofrimento - e dor” (José Policarpo Barbosa, História da Saúde Pública do Ceará, 1994).

Na história de doenças que visitaram, vez por outra, o sofrido chão cearense, desde o período colonial, constam os males seguintes: varíola, sarampo, malária, sífilis, hanseníase, tuberculose, disenteria, tifo, cólera e peste bubônica. Tomara que a peste bubônica citada neste alerta da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará, passe ao largo poupando vidas, evitando agravos à saúde da população e entrando no rol das mazelas, definitivamente, extintas de nossos arraiais.







quarta-feira, 14 de junho de 2017

UMA FÁBULA SOBRE CORVOS E UM BRUCUTU


Um colegiado de corvos foi instalado com fins de julgar um parvo brucutu por supostos distúrbios de comportamento, não condizentes com as leis de um certo burgo perdido nos confins do mundo. A despeito de um rosário de provas contra o tal brucutu, comprometedores à beça, o veredito foi dado a favor do brucutu, inocentado, assim, por excesso de provas. Ridículo!

Opa! Os termos “à beça”, “ à bessa”, “ Abessa”, são citados de diversas maneiras por vários filólogos. O cearense e acadêmico Raimundo Magalhães Junior (1907- 1981) no Dicionário de Provérbios, Locuções, Curiosidades Verbais, Frases Feitas, Etimologias Pitorescas e Citações (1974), nas páginas 10 e 11 explica desse modo:

“À bessa” representa o mesmo que abundantemente, com fartura, de maneira copiosa. A origem do dito é atribuída às qualidades de argumentador do jurista alagoano Gumercindo Bessa (1859- 1913), advogado dos acreanos que não queriam que o território do Acre fosse incorporado ao Estado do Amazonas... Gumercindo apresentara argumentos tão esmagadores e tão numerosos, que logo se tornou figura respeitada nos meios forenses. Conta-se que certa vez um cidadão procurou o Presidente Rodrigues Alves para pleitear determinados favores e com a tal eloquência expôs suas ideias que o ilustre estadista teria observado: - O senhor tem argumento à Bessa... Com o tempo a maiúscula de Bessa desapareceu”

O certo é que o resultado do julgamento do brucutu em pauta, trouxe um mundo de incertezas e quase” ninguém entendeu patavina”

Opa! De onde vem a palavra “patavina”? Segundo Deonísio Silva em seu livro “ A Vida íntima das Frases “ na página 151, patavina origina-se de Padova nome dado àqueles nascidos em Pádua, em latim, pataviua, logo transformado em patavina que significa não entender nada.
No final, o tal imbróglio deste inusitado julgamento pode terminar como” um tiro que saiu pela culatra”

Opa! Culatra vem de parte posterior da arma (cullata): um tiro para trás, ou contra a própria pessoa, ou seja, no próprio brucutu da história.

As coisas andam feias nestas ignotas terras e povo precisa entender “ tintim por tintim” o que está a ocorrer.

Opa! Tintim significa o tilintar de moedas. Tintim por tintim: explicar detalhadamente. Na fábula acima descrita, o som característico de moedas se chocando foi algo medonho.

“ Causa finita est”

domingo, 11 de junho de 2017



ANÕES LILIPUTIANOS


Um alerta que serve para todos! Quatro energúmenos, anões liliputianos, de becas negras como o breu da noite, uns trânsfugas, vagueiam abraçados e ébrios de doentia vaidade por conta da incrível façanha de terem passado um quinau numa pobre gente de um burgo situado no cafundó- do- judas. 
Todos os integrantes deste vil quarteto medem menos de quinze centímetros de altura como aqueles seres descritos na clássica obra de Jonathan Swift (1667-1745) “As Viagens de Gulliver”. Neste livro de aventuras, Lemuel Gulliver, um cirurgião londrino consegue escapar de um naufrágio nadando até uma exótica ilha chamada de Liliput, habitada por pigmeus. Ali o tal doutor vive dramas cruéis, de onde consegue sair com vida em busca de mais três mirabolantes viagens.
Voltando ao que interessa, no tal burgo no cafundó- do- judas, recomenda-se cuidados extras aos seus cidadãos para que evitem, inadvertidamente, pisotearem o tal quarteto de anões. Estes julgam-se deuses, portanto, imortais e seguem normas ou leis, por eles mesmos elaboradas, que se prestam, apenas, para alimentar suas gigantescas fogueiras de vaidades. Uma luta, enfim, dantesca, desigual, mas que vale a pena enfrentar, aqueles que almejam liberdade e decência.
Vaidade das vaidades, tudo é vaidade... (Eclesiastes,1,2)

sexta-feira, 9 de junho de 2017

CONSELHOS DE ASCLÉPIO A SEU FILHO




Asclépio ou Esculápio representa um personagem mitológico de quem Hesíodo dá conta e que ganha vida nos poemas de Homero na categoria de herói. Aos poucos se eleva à categoria de um deus protetor da Saúde e iniciador da Medicina. Considera-se filho do deus Apolo e da mortal Coronis. Conta-se que Coronis enquanto grávida de Apolo teve um romance com o arcádio Isquis. A deusa Diana castigou Coronis matando-a com uma flechada em sua mansão em Lakéria. Quando o corpo da infiel criatura estava sobre a pira, Apolo extraiu do seu ventre o pequeno Asclépio que, incontinenti, foi entregue ao centauro Quíron. No monte Pelión o centauro educou o garoto nas artes da caça, na ciência das plantas curativas, na arte da medicina e na proeza de ressuscitar os mortos, como nos casos de Glauco, Tíndaro e Hipólito. O deus Júpiter lançou um raio contra Asclépio, matando-o. Consideram-se filhos de Asclépio: Higéia (deusa da saúde); Panacéia (deusa do tratamento); Macaon (pai da cirurgia); Telésforo(responsável pela convalescença); Podalírio( pai da medicina interna). Epione era a esposa de Asclépio e respondia por aplacar a dor.
 Seguem abaixo os Conselhos de Asclépio a seu filho em uma de suas múltiplas versões:
Queres ser médico, meu filho?
É aspiração própria de uma alma generosa, de um espírito ávido de ciência. Desejas que os homens te tomem por um Deus que alivie os seus males e lhes afugenta os temores?
Pensaste bem no que vai ser tua vida? Terás de renunciar à vida privada: enquanto que a maioria das pessoas podem, terminado o seu trabalho, isolar-se dos aborrecimentos, a tua porta estará sempre aberta a todos; a qualquer hora do dia ou da noite virão te perturbar o teu descanso, os teus prazeres, as tuas meditações; já não terás horas para dedicar à tua família, às tuas amizades; ao estudo; em suma, já não te pertencerás.
Os pobres, acostumados a padecer, não te chamarão senão em caso de urgência; mas os ricos, tratar-te-ão como um escravo encarregado de remediar os seus excessos: ou porque têm uma indigestão ou porque estão gripados. Farão com que te acordem a toda pressa assim que sintam a menor inquietude, pois estimam muitíssimo a sua própria pessoa. Terás de mostrar interesse pelos detalhes mais vulgares da sua existência, decidir se devem comer carne ou peixe, se devem andar deste ou daquele modo. Não poderás ir ao teatro nem estar doente; terás de estar sempre pronto para acudir teu amo assim que este te chame.
Eras rigoroso nas escolhas dos teus amigos: procuravas o contato de homens de talento, de artistas e de espíritos dedicados; no futuro não poderás banir os enfadonhos, os pouco favorecidos em inteligência, os desprezíveis. O malfeitor terá tanto direito aos teus cuidados como o homem honesto; prolongarás vidas nefastas e o segredo da tua profissão proibir-te-á de impedir crimes de que serás testemunha.
Tens fé no teu trabalho para conquistar reputação; tem sempre presente que não te julgarão pelas tuas qualidades e ciência, mas sim pelas casualidades do destino, pela qualidade dos teus fatos, pelo aspecto da tua casa, pelo número de teus criados, pela atenção que dedicas às tagarelices e gostos da tua clientela. Uns desconfiarão de ti por usares barba, outros por vires de longe, outros por acreditares nos deuses, outros por não acreditares neles.
Aprecias a simplicidade; terás de adotar a atitude de um adivinho. És ativo, sabes quanto vale o tempo; não poderás, contudo, manifestar fastígio nem impaciência: terás que suportar relatos que começam no início dos tempos para explicar-lhes simples cólicas e os ociosos consultar-te-ão pelo simples prazer de tagarelar. Serás o cano de despejo da sua imensa ostentação.
Sentes paixão pela verdade, mas não poderás dizê-la. Terás que ocultar a alguns a gravidade dos seus males e a outros a sua insignificância pois isso aborrecê-los-ia. Terás de guardar segredos que te são confiados ou permitir passar por burlado, ignorante ou cúmplice. Apesar da medicina ser uma ciência obscura, que os esforços dos seus fiéis vão iluminando de século para século, não te será permitido duvidar nunca, sob pena de perderes todo o crédito. Se não afirmares conhecer a natureza de uma doença ou possuir um remédio infalível para a curar, o vulgo consultará charlatões que vendem a mentira de que necessita.
Não contes com agradecimentos: quando o doente se cura esta é devida à sua robustez, se morre, serás tu quem o matou. Enquanto está em perigo trata-te como um Deus, suplica-te, promete-te, enche-te de lisonja; mas assim que convalesce já o estorvas e quando se tratar de pagar os cuidados que lhe concedeste, enfada-se e denigre-te. Quanto mais egoístas são os homens mais solicitudes exigem.
Não contes com este ofício tão penoso para enriquecer. Dizem a ti: é um sacerdócio, e não será decente que obtenhas lucro como faz um comerciante qualquer. Prepara-te se sentes agrado pela beleza: verás do mais feio e repugnante que há na espécie humana e todos os teus sentidos serão maltratados. Terás de encostar o teu ouvido ao suor de troncos sujos, respirar o odor de míseros lares e o perfume excessivamente forte das pessoas, palpar tumores, curar chagas verdes de pus, examinar urinas, pesquisar catarros, fixar a tua vista e olfato em imundícies, meter o dedo em muitos sítios. Quantas vezes, em dias bonitos, queimado do sol e perfumado, ao sair de um banquete ou de uma peça de Sófocles, te chamarão a ver um homem que, incomodado por dores abdominais, te apresentará um bacio nauseabundo, dizendo-te satisfeito: felizmente tive a precaução de conservá-lo. Lembra-te então que poderá ser de interesse aquela dejeção.
Até mesmo a beleza das mulheres, consolo dos homens, se desvanecerá para ti. Vê-las ás pelas manhãs desgrenhadas, desencantadas, desprovidas das suas belas cores, esquecendo sobre os móveis parte dos seus atrativos. Deixarão de ser deusas para se converterem em pobres seres afligidos por males sem alívio. Sentirás por elas menos desejo do que compaixão. Quantas vezes te assustarás por ver um crocodilo adormecido ao fundo da fonte dos prazeres!
O teu ofício será para ti uma túnica de Neso. Na rua, nos banquetes, no teatro, na tua casa mesmo, os desconhecidos, os teus amigos, os teus parentes falar-te-ão dos seus males para te pedirem um remédio. O mundo parecer-te-á um grande hospital, uma assembleia de indivíduos queixosos. A tua vida decorrerá sob a sombra da morte, entre a dor dos corpos e das almas, da aflição e da hipocrisia que paira sobre a cabeceira dos agonizantes.
Ser-te-á difícil conservar uma visão agradável do mundo. Descobrirás tanta fealdade debaixo das mais belas aparências que toda a confiança na vida se desvanecerá e todo o prazer será envenenado. A raça humana é um Prometeu dilacerado por abutres.
Ver-te-á só nas tuas tristezas, nos teus estudos, nomeio do egoísmo humano. Nem sequer encontrarás apoio entre os médicos que te fazem guerras surdas por interesses ou por orgulho. A consciência de aliviar males amparar-te-á nas tuas fadigas; mas duvidarás se é correto fazer com que continuem em vida homens atacados por doenças incuráveis ou crianças enfermas que nenhuma possibilidade tem de ser felizes e que transmitirão a sua triste vida a esforços, tiveres prolongado a existência de alguns anciãos ou de crianças defeituosas, virá uma guerra que destruirá o mais são e robusto de seus concidadãos. Então serás encarregado de separar os débeis dos fortes para salvar os débeis e enviar os fortes para a morte.
Pensa bem em tudo isto enquanto estás a tempo de o fazer. Mas, se, indiferente à sorte, aos prazeres e à ingratidão, se, mesmo sabendo que ficarás só entre as feras humanas, tens um espírito suficientemente estoico para se satisfazer com o dever cumprido sem ilusões , se tu julgas suficientemente pago com a palavra de uma mãe , com um rosto que sorri porque já não sofre, com a paz de um moribundo a quem ocultas a chegada da morte, se anseias por conhecer o Homem e penetrar toda a tragédia da sua existência. FAZ-TE MÉDICO, MEU FILHO “




segunda-feira, 5 de junho de 2017

TRAGÉDIAS DA VIDA COTIDIANA

Para o Dr. Luiz Carvalho Nogueira



O chamado era para se dirigir ao Bloco 200 do vetusto hospital- escola localizado numa praça do centro de Fortaleza nos idos de 70 do século passado. O jovem médico -plantonista puxou para si uma cadeira ao lado do leito da nova paciente. Fez uma breve apresentação e deu início ao internamento daquela criatura filha de Deus. Chamou sua atenção o sobrenome dela constante no prontuário médico. Tratava-se de uma família com poucos membros aqui no Ceará e era de origem europeia. A paciente relatou sua condição de desquitada e que agora vivia maritalmente com aquela bela morena que a estava acompanhando naquela enfermaria de indigente. Do ex-marido e da única filha que tivera com o mesmo, quase nada falou. Apenas citou o nome da filha, causando um profundo choque no esculápio que se tornou lívido tomando emprestado a cor de seu avental. Com a intimidade de seus botões o doutor confabulou que namorara com a filha daquela paciente e que ela o trocara fugindo com um boêmio idoso, desaparecendo ambos no breu do mundo. Nada foi relatado para a paciente sobre tal infausto e dolorido acontecimento. Da conversa e do exame físico minucioso realizados naquele momento firmou-se um diagnóstico: câncer de colo uterino em estágio avançado. Poucos meses depois findava o sofrimento aqui na terra daquela infeliz criatura.

Corridos já cerca de quarenta anos do acontecimento naquele hospital-escola, o agora sexagenário esculápio recebe um telefonema daquela outrora garota que namorara e filha da dita paciente do câncer de colo uterino. Ela buscava um auxílio financeiro, posto que, o tal marido boêmio e fujão fora consumido definitivamente pela temível Peste Branca, a tuberculose pulmonar. Ela agora estava sendo ameaçada de despejo de seu casebre por conta de três meses de atraso de aluguel. O velho doutor deixou na portaria do consultório certa quantia em dinheiro para aquela sofrida namorada do passado. No dia seguinte ela liga aos prantos querendo devolver parte do dinheiro dizendo que aquilo daria para pagar dois anos de aluguel. O doutor, claro, não aceitou a tal proposta. O pouco com Deus é muito e o muito sem Deus é nada, confabulou consigo mesmo. Ela contou que ficara sozinha no mundo, posto que, não tivera filhos e que a mãe, longe e renegada pela família por conta de sua corajosa opção de vida, morrera de um câncer.

Mãe e filha nunca souberam daquela história escondida e da coincidência do encontro/desencontro no hospital no centro de Fortaleza naquele distante ano de setenta e quatro do século passado.  

Ah, a mão cega do destino como tosca pedra nos desvãos da vida a solapar sonhos e quimeras!

Poderia ter acontecido um sonho de amor , mas não aconteceu:

“ Somos dois, começo de vida

Nós dois e uma simples história de amor

Enquanto esta estrada estiver florida
Sonhemos, querida
Somos dois, seguindo na vida
Sentindo que em próximos dias
Diremos talvez
Com os olhos brilhando de felicidade

Fomos dois, somos três “        

Composição de Klecius Caldas e Luís Antônio.

sábado, 3 de junho de 2017

ORDEM NACIONAL DO CRUZEIRO DO SUL





A Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul constitui uma comenda que teve origem na extinta Ordem Imperial do Cruzeiro instituída através de Decreto criado por D. Pedro I em primeiro de dezembro de 1822. A comenda se destina a galardoar dignitários estrangeiros que se tenham tornado dignas do reconhecimento da Nação brasileira. Representa a mais alta condecoração existente no Brasil concedida com o beneplácito maior do Presidente da República. Ao longo do tempo várias figuras públicas foram aquinhoadas desde 1932 quando o ditador Getúlio Vargas, o “ Pai dos Pobres “ restabeleceu a comenda e formam uma lista para lá de estranha, colocando lado a lado, estadistas, intelectuais, ditadores e genocidas. O que se passa pela cabeça de um Presidente da República do Brasil quando indica figuras canhestras e deploráveis como:
  
Achmed Sukarno (1901- 1970), Presidente da Indonésia, corrupto e genocida responsável pela eliminação de 500.000 mortes. Recebeu a comenda da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul em 1956 no Governo de Juscelino Kubitschek. Em 1960 foi concedido a Sukarno o Prêmio Lenin da Paz!!

Ernesto Che Guevara (1928 - 1967), guerrilheiro argentino- cubano, um dos ideólogos da malfadada Revolução de Cuba (1959) e responsável por assassinatos em massa ocorridos naquela sofrida ilha caribenha. Recebeu a comenda do histriônico Presidente Jânio da Silva Quadros, “A UDN de Porre”

Josip Broz Tito (1892- 1980), ditador comunista cruel e autoritário, Presidente da Iugoslávia. Outorga da Ordem do Cruzeiro do Sul concedida nos estertores do Governo de João Goulart em 1963

Nicolai Ceausescu (1918-1989), líder comunista, genocida e Presidente da Romênia, acusado da morte demais de 60.000 cidadãos. Medalha da Ordem do Cruzeiro do Sul outorgada pelo Presidente Ernesto Geisel, O Alemão “ no ano de 1975

Bashar al- Assad (1965 -), médico, ditador, genocida e Presidente da Síria, responsável por 191.000 mortes contabilizadas, apenas, entre 2011 e 2014. Outorga concedida em 2010 no Governo Luís Inácio da Silva

Como acomodar no mesmo patamar as “ Ovelhas Inocentes “ (Helen Keller; Dwight D. Eisenhower; Elizabeth II; Mário Alberto Soares e Stefan Zweig) que receberam a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul e obrigar a viverem eternamente ao lado de figuras execráveis da humanidade, como as acima citadas? Não seria um prêmio e sim um castigo atroz!





sexta-feira, 2 de junho de 2017

ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO X EDUARDO GALEANO




 Arthur Bispo do Rosário (1909 – 1989), um gênio louco, organizador do caos, não teve orientação didática nem conviveu com qualquer artista plástico que imprimisse alguma influência em seu alentado trabalho manual. O “ Manto da Apresentação “ representa sua obra mais significativa e consiste num fardão com o nome de pessoas importantes para que não houvesse esquecimento por ocasião do Juízo Final. Quando perguntado quando iria se transformar em Jesus Cristo, Arthur respondia resoluto: “ - Não vou me transformar não, rapaz, você está falando com Ele”.

Eduardo Galeano (1940- 2015), um mago da palavra, o poeta pleno do “ amor que passa, da vida que pesa e da morte que pisa “ disseca o gigante Arthur Bispo do Rosário com leveza e arte no Inventário Geral do Mundo:

“ Arthur Bispo do Rosário foi negro, pobre, marinheiro, lutador de boxe e artista por conta de Deus.
Viveu num manicômio do Rio de Janeiro.

Lá, os sete anjos azuis transmitiram a ele a ordem divina: Deus mandou-o fazer um inventário geral do mundo.

A missão encomendada era monumental. Arthur trabalhou dia e noite, cada noite, cada dia, até que no inverno de 1989, quando estava em plena tarefa, a morte agarrou-o pelos cabelos e o levou.

O inventário do mundo, inconcluso, estava feito de ferro-velho,

Vidros quebrados,
Vassouras calvas,
Chinelas caminhadas,
Garrafas bebidas,
Lençóis dormidos,
Rodas viajadas,
Bandeiras vencidas,
Cartas lidas,
Palavras esquecidas e
Águas chovidas.

Arthur havia trabalhado com lixo. Porque todo lixo era vida vivida, e do lixo vinha tudo o que no mundo era ou tinha sido. Nada de intacto, merecia aparecer. O intacto tinha morrido sem nascer. A vida só latejava no que tinha cicatrizes ” (do livro Espelhos)