sábado, 17 de junho de 2017

A HEMOPTISE E O COMEDOR DE GILETE




“ Morrem quatro por minuto nesta América Latina.../não conto os que morrem velhos, só os que a fome extermina/ não conto os  mortos de faca  nem os mortos de polícia/conto os que morrem de febre e os que morrem de tísica/conto os que morrem de bouba, de tifo, de verminose/conto os que morrem de crupe, de cancro e esquistossomose/mas todos esses defuntos, morrem de fato é de fome/quer a chamemos de febre ou de qualquer outro nome/morrem de fome e miséria quatro homens por minuto/embora enriqueçam outros que deles não sabem muito”

 Ferreira Gullar (1930-2016)

Surgia feito uma visagem, sentado com as costas na parede, abraçando uma humilde mala de madeira. Alto, esquálido, com uma mão amparando a cabeça e olhar petrificado lambendo tristemente o chão. Súbito, um fio de sangue escorre pela boca da pobre criatura. A maioria dos transeuntes olha de rabo de olho e passa adiante. Chico Barrão, um petiz curioso e de coração mole, morador da casa defronte onde se desenrola aquela patética cena, vai oferecer uma cristã ajuda. O pobre homem pede ao garoto que se afaste, pois ele é um portador de tuberculose pulmonar, a temível Peste Branca. O inocente, caça avexado no bolso da calça faroeste uma cédula que serviria para comprar um almanaque do Tarzan na banca da esquina e entrega o óbolo, satisfeito, ao doente. O homem, agradecendo, em um pinote se ergue e some rápido no bulício da vida. O pai do garoto, olhando da porta de casa, não teve tempo de advertir o filho incauto. Conhece a soez atitude recorrente daquele adulto. Ele mesmo com uma gilete produzia um corte superficial na língua para promover uma falsa hemoptise. Deste modo alimentava sua família numerosa às custas da piedade e inocência alheias. No cruel embate pela sobrevivência o homem pode se brutalizar a esse ponto.

“ Eu um dia cansado que estava da fome que eu tinha/eu não tinha nada, que fome que eu tinha/que seca danada no meu Ceará/eu peguei e juntei um restinho de coisas que eu tinha/duas calças velhas e uma violinha/e num pau-de-arara toquei para cá/e de noite eu ficava na praia de Copacabana/zanzando na praia de Copacabana/cantando o xaxado para as moças olhar/Virgem Santa! Que a fome era tanta que nem voz eu tinha.../zanzando na praia pra lá e pra cá/foi então que eu resolvi comer gilete.../ tinha um compadre meu lá de Quixeramobim que ganhou um dinheirão/comendo gilete na praia de Copacabana/eu não sei não, mas acho que ele comeu tanta, mas tanta, que quando eu cheguei lá/aquela gente toda estava com indigestão de tanto ver o cabra comer gilete/uma vez eu disse assim para um moço que vinha passando:

“Ô decente, vosmecê não deixa eu comer uma giletezinha para vosmecê ver?/” tu não te manca pau-de-arara?/” só uma, que eu ainda não comi nadinha hoje”/você enche , hem?”/aquilo me deixou tão aperreado que se não fosse o amor que eu tinha na minha violinha/eu tinha arrebentado ela na cabeça daquele...filho de uma égua/puxa vida, não tinha uma vida pior do que a minha/que vida danada que fome que eu tinha/mais fome que eu tinha no meu Ceará/quando eu via toda aquela gente num come-que-come/eu juro que tinha saudade da fome/da fome que eu tinha no meu Ceará/e aí eu pegava e cantava e dançava o xaxado/e só conseguia porque no xaxado/ a gente só pode mesmo se arrastar/ Virgem Santa! A fome era tanta que mais parecia/que mesmo xaxando meu corpo subia/igual se tivesse querendo voar/às vezes a fome era tanta que volta e meia/a gente arrumava uma briguinha/para ver se pegava a boia lá do xadrez/eita quentinho bom no estômago! /com perdão da palavra, a gente devolvia tudo depois/ que a boia já vinha estragada/mas enquanto ela ficava quentinha lá dentro , que felicidade !/não, mas as coisas agora estão melhorando. Tem uma dona lá no Leblon que gosta muito de ver é eu comer caco de vidro/com isso eu já juntei uns quinhentos mil réis / quando juntar um pouco mais, vou-me embora, volto para meu Ceará! /vou voltar para o meu Ceará/porque lá tenho um nome/aqui não sou nada, sou só Zé-com-fome/sou só Pau-de-Arara, nem sei mais cantar/vou picar minha mula/vou antes que tudo arrebente/porque tô achando que o tempo tá quente/pior do que anda não pode ficar”
 
Canção de Carlos Lyra (1939-) e Vinícius de Moraes (1913- 1980)               


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