quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Meu Natal

"Dos berços de linho e seda/aos ninhos de palha podre/onde houver uma criança/ou um coração de criança/aí será meu Natal.
Não no coração dos ricos/que me exploram, que me ofendem/que me ignoram, que me vendem/quando aos pobres fazem mal/não nas mesas dos tiranos/dos perversos , dos falsários/dos que matam, dos que enganam/dos que abusam dos ingênuos/para os fins mais desumanos/como as guerras que se tramam/com as armas mais letais/não nos corações malditos/que me compram, que me escambam /que me afligem nos aflitos/e perseguem aos que eu amo/estes não terão Natal
Meu Natal é dos humildes/é o Natal das lavadeiras/dos porteiros, dos mendigos/dos polícias , dos serventes/dos garis, dos faxineiros/das enfermeiras que velam/das professoras que educam/dos salva - vidas que salvam/dos que criam , dos que zelam/pelos velhos que caducam/estes sim , terão Natal/meu Natal é dos que sofrem/dos doentes incuráveis/das amadas esquecidas/dos loucos irresponsáveis/e das crianças perdidas
Meu Natal é dos que lutam/para viver nas cidades/nos sertões despovoados/nas casas e nos casebres/nos abrigos e orfanatos/nas pocilgas e masmorras/nos hospícios e hospitais/nos porões e albergues/nas celas dos condenados/nas celas dos consagrados/nos berçários, nas igrejas/nas falas dos namorados/nos presentes, nos brinquedos /mas sobretudo no homem/ sim , nós filhos das mulheres
Onde houver uma criança/ou um coração de criança/aí será o meu Natal/estarei por toda parte/nas penas dos que trabalham/nas portas das que se vendem/nas lágrimas dos que choram/nos corações dos que cantam/nos olhares dos dementes/nos beliches e nas redes/nas esteiras e nas camas/sob os tetos, sob as pontes/sob as pedras , sob as luas/nos seios das que amamentam/nos ventres das que me esperam/na angústia das que me abortam/no esquife das que morreram/onde houver uma criança/ou um coração de criança/aí será meu Natal " ( Paulo Gomide ).
Um Natal pleno de bênçãos do Menino Deus para todos !

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Minha Filosofia de Vida
Na década de 80 do século passado, com meus dois tesouros Andrei e Natacha :

"Mestre, são plácidas todas as horas que nós perdemos, se no perdê - las, qual numa jarra, nós pomos flores. Não há tristezas nem alegrias na nossa vida. Assim saibamos, sábios incautos , não a viver, mas decorrê - la, tranquilos , plácidos, tendo as crianças por nossas mestras, e os olhos cheios de natureza. À beira - rio, à beira - estrada , conforme calha, sempre no mesmo leve descanso de estar vivendo. O tempo passa. Não nos diz nada. Envelhecemos. Saibamos , quase maliciosos, sentir - nos ir. 
Não vale a pena fazer um gesto. Não se resiste ao deus atroz que os próprios filhos devora sempre. Colhamos flores. Molhemos leves as nossas mãos nos rios calmos , para aprendermos calma também. Girassóis sempre fitando o sol , da vida iremos tranquilos, tendo nem o remorso de ter vivido"
Ricardo Reis , heterônimo de Fernando Pessoa ( 1888 - 1935 ).

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

A Festa nos Sebos
Para o poeta Vicente Alencar

A ventura de frequentar um sebo, como o do Geraldo, no centro de Fortaleza faz - se impagável. Uma alegria de D. Juan , toma conta , não com olorosas damas , mas com brochuras ricas em ouropéis. Aquele amontoado de amigos de papel , desalinhados , reflete um pouco o destino humano. O contista famoso , o poeta boêmio, o mordaz crítico literário, todos se amparando , ombro a ombro nas prateleiras bambas , alguns glórias do passado e pobres esquecidos de hoje. Ali vivem Machado , Alencar , Graciliano , Quintana, Drummond , Cecília , Clarice , Rachel , apenas para citar "os nossos".
Folheando - se páginas desgastadas pelo tempo, coladas , mostrando que nunca foram lidas , relembram balzaquianas que conheceram o fastigio, mas morreram virgens.
E as dedicatórias redigidas com tanto amor e respeito causam constrangimento ao novo adquirente da obra.
Ilusões construídas com muito suor e lágrimas, banhadas em tinta , ficam a mercê de uma mão amiga , a preços módicos , quase sempre.
Pior destino seria uma indefectível fábrica de moer papel. Ave Maria!

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

O Palhaço, o que é?

Neste final de tarde de domingo do pé de cachimbo, num certo trecho do bairro da Aldeota , um jovem palhaço brinca com uns malabares, em busca de uns trocados para a dura lida. Revi num breve lance, figuras de minha distante infância como , Carequinha , Arrelia e Trepinha , nos gozosos Circo Garcia ou Nerino. 
Abri vexado a carteira e nada de encontrar umas salvadoras moedas. Entreguei, com sincera alegria d'alma , uma graúda cédula ao homem de nariz vermelho que ,de joelhos e lágrimas nos olhos tristes , me agradeceu ,num portunhol arrevezado.
De onde vinha aquela patética jovem figura ?
Certamente, de algum vizinho país da América Latina que vive na contramão da História, penalizando seu pobre e sofrido povo .
"Heróis da gargalhada, ó nobres saltimbancos /eu gosto de vocês, /porque amo expansões dos grandes risos francos/e os gestos de entremez/e prezo , sobretudo, as grandes ironias/das farsas joviais, /que em viagens cruéis, imperturbáveis, frias,/ à turba arremessais!/
Alegres histriôes dos circos e das praças, /ah, sim , gosto de vos ver/nas grandes contorçôes, a rir ,a dizer graças/de o povo enlouquecer/ungidos pela luta heróica, descambada, / de giz e de carmim/nas mímicas sem par, heróis da bofetada, / titãs do trampolim !/
Correi, subi, voai num turbilhão fantástico/por entre as saudações/da turba que festeja o semideus elástico/nas grandes ascensões ,/e no curso veloz , vertiginoso, aéreo, /fazei por disparar/ na face trivial do mundo egoísta e sério/a gargalhada alvar!/depois, mais perto ainda, a voltear no espaço /pregai - lhe, se podeis,/ um pontapé furtivo, ó lívidos palhaços/luzentes como reis !
Eu rio sempre, ao ver aquela majestade,/ os trágicos desdéns/com que nos divertis cobertos de alvaiade/a troco de vinténs!/
mas rio ainda mais dos histriôes burgueses, /cobertos de ouropéis/que tomam neste mundo, em longos entremezes, / a sério os seus papéis/são eles, almas vãs, consciências rebocadas, /que enfim merecem mais/o comentário atroz das rijas gargalhadas/que às vezes disparais!/
Portanto, é rir, é rir, hirsutos, grandes, lestos,/nas cômicas funções/até fazer morrer, em desmanchados gestos,/de riso as multidões!/
e eu, que amo as expansões dos grandes risos francos /e os gestos de entremez ,/deixai - me dizer isto , ó nobres saltimbancos:
Eu gosto de vocês!"
Poema Os Palhaços, do português Guilherme de Azevedo ( 1839 - 1882 )

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Apeles , na Grécia e em Pindorama

Apeles ( 352 a.C - 308 a.C. ), foi um humilde pintor grego , diferente de outros presunçosos artistas da época. Tornou - se o primeiro pintor da antiguidade a mostrar preocupação com a opinião crítica alheia , acerca de suas obras pictóricas. 
Reza a História que certa feita , Apeles expôs um quadro com a figura de uma bela dama. Escondido , o pintor ouvia a opinião das pessoas :
Uma costureira pôs alguns pequenos reparos na roupa.
Um barbeiro sugeriu alguns retoques no penteado da figura retratada.
Um sapateiro confirmou a beleza dos sapatos da dama , mas fez crítica veemente, ao estilo do vestido da mesma.
Apeles acatou , com paciência, a crítica da costureira e do barbeiro.
Quanto ao sapateiro , Apeles , enfurecido , comentou :
- Sapateiro , não passes além dos sapatos !
" Ne sutor ultra crepidam judicaret "
Faz pouco , em Pindorama , um figura pública do mundo futebolístico, " saiu fora das quatro linhas do gramado " proferindo uma opinião inadequada sobre certo assunto político.
E, deu com os burros n'água: não deve o sapateiro julgar além do sapato !

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Urubus

Neste sábado ensolarado na Praia do Japão, no litoral leste do Ceará dois nobres urubus prestam inestimável serviço à natureza , arejando o terreno para um novo Brasil que desponta. Que essas majestades negras que pairam acima da contingência da terra sirvam de lição para uns semideuses togados aqui neste pedaço de mundo , num delicado momento histórico.
" Não sei se todos, em criança, tivemos esta casta volúpia. - Olhar urubus voando ... Naqueles tempos, quando a sombra da velha do "Canto Alegre" crescia na calçada da frente, eu me estirava num couro de ovelha , e pascia a vista no côncavo do azul.
Mais longe , bem no alto, onde a distância vai matando o agudo dos contornos , passa sereno um camiranga. Fisgo - lhe os olhos, dando linha no infinito, qual fora um encantado papagaio de papel.
E a nódoa mingua num ponto, enterrando - se no céu, como alfinete em almofada de veludo. Outros surgem penetrando no ar , gizando curvas morosas, virguladas de reentrâncias e pontuadas de indecisões, até que rumam o horizonte sem fim.
Vezes há, tolda o levante um entrecruzar de asas delgadas como lâminas sarjando o espaço.
Por vezes, no equilíbrio do vôo, retratem de momento os encontros ,num espreguicar de cansaço. De raro , da altura, num arremesso de frecha, asas fechadas, dispara um tinga tinindo.
São urubus em raid.
Monótonos, negros, na majestade do vôo, pairam acima da contingência da terra.
Hoje , espelham a imagem da vida. Altos e inacessíveis, perpassam como as ilusões intangíveis e fugidias.
Quem , desgraçado mortal, ousa alcançá- las, objetivando um sonho, sente o fastio do real, a decepção talvez de ver um urubu em marcha..."
Composição " Urubu" , de Otávio Lobo ( 1892 - 1962 ) , médico , professor universitário, politico , escritor , pertencente à Academia Cearense de Medicina