quinta-feira, 30 de março de 2017

PARTO HUMANIZADO X A NATUREZA DAS COISAS


 A medicina, outrora um estado de arte, evoluiu para ciência e hoje virou, apenas, comércio? O termo Parto Humanizado faz referência a uma nova e saudável modalidade de atenção ao parto caracterizada pelo irrestrito respeito aos direitos do casal grávido, incluindo o novo ser a caminho. Configura- se um espaço onde o pai e a mãe sejam os principais protagonistas deste complexo evento fisiológico humano – a parturição. Faz-se toda uma preparação passo a passo acerca das alterações da gravidez, do parto e do puerpério.

 Devem participar da assistência pré-natal os seguintes profissionais: obstetra, enfermeira, neonatologista, psicóloga, fisioterapeuta, nutricionista, dentista e doula, dentre outros. A eleição do local e tipo de parto serão da total responsabilidade do casal.
 Assim, na elaboração do plano de parto define-se:

Onde será realizado o parto: em domicílio, em hospital, ou em casa de parto.
Quem irá auxiliar o casal grávido no parto: obstetra, neonatologista, enfermeira- obstétrica, doula, auxiliar de enfermagem.
Acomodação em leito tipo PPP: pré-parto, parto e pós-parto.
Aspectos gerais na assistência ao parto devem incluir: deambulação livre; dieta liberada; não puncionar veia periférica nem administrar soro parenteral; não fazer tricotomia nem lavagem intestinal; evitar episiotomia; parto na vertical; não realização da Manobra de Kristeller; colocar o bebê em contato pele a pele com a mãe.

Certa feita num grande hospital e maternidade situado na “ Loira Desposada do Sol “, uma gestante em transe de parto foi acolhida por uma figura paternal de um octogenário filho de Hipócrates. A jovem parturiente, inquieta, passando a mão suada na barriga, entregou seu plano de parto para o médico que assentiu com a cabeça, positivamente, percorrendo item a item, até que, de repente, estacou na última sugestão: parto na banheira.

“- Minha senhora, não faço, sob qualquer pretexto, o parto em banheira, posto que tenho um trauma juvenil em lidar com os mistérios da água “. E ponto final!
“- Que pena, doutor “, disse a parturiente. “ – Vou peregrinar em busca de um outro hospital “
 “ - Nessa bolsa que carrego comigo, guardo dez mil reais para cobrir as despesas com aquele cristão que vier a assistir meu parto “
O provecto parteiro, de súbito, tornou -se lívido e com o queixo caído. De pronto se recompôs e vexado como quem rouba, gritou para a auxiliar de enfermagem que a tudo assistia calada.

“ - Zefinha, minha filha, me acuda e correndo arranje uma sunga para que eu possa ajudar este anjo num bendito parto na banheira! “
No final, o parto transcorreu célere e na banheira, conforme combinado, culminando com sorrisos e lágrimas para festejar a chegada de mais um recém-nascido saudável. 

Aleluia!
Agora calmo, o parteiro achegou-se à puérpera para explicar o motivo de seu trauma com os mistérios das águas.

 Quando adolescente, viera do sertão central do Ceará para a capital, Fortaleza, banhada pelos verdes mares bravios do Atlântico oceano. Um dia, o jovem deu de cara com a famosa Praia do Futuro, aquele mundão besta de água salgada, conhecido como Açude do Boris. Enfrentou o gigante de água a rugir, com uns cangapés e invadiu a área proibida, destrambelhado, mar a dentro. O afoito matuto foi posto a nocaute por uma gigantesca onda- caixão. Acordou, com o estômago cheio d’água, na areia recebendo uma respiração boca a boca ministrada por um guarda salva vidas.

O trauma adquirido pelo jovem do sertão, apenas findou com aquele bendito parto na banheira com o agora idoso homem de jaleco branco tendo que ruminar o maldoso ditado que reza “ Deus resolve o problema e o médico manda a conta “

“ Se avexe não /amanhã pode acontecer tudo/inclusive nada/se avexe não/a lagarta rasteja até o dia/em que cria asas/se avexe não/que a burrinha da felicidade/nunca se atrasa/se avexe não/amanhã ela para na porta/ da sua casa/se avexe não/toda caminhada começa/no primeiro passo/a natureza não tem pressa/segue seu compasso/inexoravelmente chega lá/se avexe não/observe quem vai subindo a ladeira/seja princesa ou seja lavadeira/para ir mais alto vai ter que suar “     Letra de “ a Natureza das Coisas “ do compositor pernambucano Accioly Neto ( 1950- 2000).










quinta-feira, 23 de março de 2017

ORAÇÃO À CHUVA, DE PERBOYRE E SILVA




“ Os que nascemos no bochorno cearense aprendemos a amar-te o cântico, ó mãe das searas fecundas e dos lares bonançosos. Refrigério das estradas combustas e das rechãs estioladas. Embrião da alegria e da paz. Unção misericordiosa do Ceará. És uma romanza de amor. O Solo, o Solo cearense, que a canícula estorrica e inflama, é teu enamorado eterno. Quanto mais foges, mais ele te deseja e mais arde, mais se calcina e mais se inferniza, no desespero de tua ausência. Estala na sede de teu beijo. Combure-se tantalizado. Anseia por ti, chispa revérberos de ódio, porque o fogo de suas entranhas exige o sedativo do teu bálsamo, a maciez do teu afago, a pianíssima ternura glacial de tuas gotas. E –  pobre enamorado – repulsa de sobre si os últimos lampejos da vida. E transforma sua face num lutuoso painel de catacumbas.

Mas, quando vens, e desces, noiva simbólica, tamborilando o rumor de tuas bátegas, o Solo recebe a carícia dos teus ósculos. Embebe-os, sôfrego. Transfigura-se. E opera-se, nesse encontro o milagre sempiterno do amor. Do amor que dá entusiasmo e dá frutos. Do amor que perpetua, na face da terra, FIAT genesíaco da criação.
A natureza, nesse encontro, representa o grande tálamo nupcial – teu e do Solo.
Que belo é, senão o produto desse amor, o florir dos mandacarus e dos manacás, dos milharais de espigas louras e dos canaviais que farfalham? Donde nascem, ó noiva cantarolante, senão da força geratriz de seus beijos, a policromia dos pomares e o tropical esplendor das colheitas? Donde o aroma dos mofumbais em flor, a ressureição dos bugaris e dos girassóis?  Donde e por que, senão de ti e por ti, esse hinário de natal, a proliferação da vida e a seiva das vergônteas que desabrocham na terra, emoldurando-a de verde?

Renova, todos os anos, ó chuva, esse milagre bíblico de amor.
Carícia do firmamento, geradora das clorofilas, mãe das cores da Esperança, modula, sempre, a serata das tuas águas, porque és fada que transformas o deserto líbico de nossa terra no roseiral da promissão!
És o impulso inicial da nossa existência de povo. Sem ti, morrerá conosco, em nossa inquieta geração, a sementeira da nossa raça. Agônica, definhará a galeria de nossos homens. Sem ti, haveremos de pulverizar-nos e sucumbir. E não daremos mais ao Brasil nem o heroísmo nem a luz. Nem a carne para as metralhadoras, nem a centelha para as lucubrações do espírito. Daremos, apenas, no infortúnio patibular de tua ausência, e no delíquio final, a última procissão brasileira dos mártires e dos santos.
Volta, sempre, e realiza, todos os anos, junto ao Solo, o milagre do teu amor!
Faze-o, para que as nossas montanhas reverdeçam, engrinaldadas de rosas. Para que as águas cascateiem, sonoras, nos arroios e nas grotas. Para que se multipliquem as messes do nosso labor. Para que os algodoais, lembrando asas de cisnes, abram os flocos brancos, como visão de eucaristias. Para que nos radiquemos à gleba. Para que de nossas mãos desapareça o bornal dos mendigos. Para que as violas continuem a gemer, e os sambas a vibrar, nas cenografias dos sertões. Para que o corpo de nossa gente, dos nossos gibões de couro, repouse, um dia, alquebrado, não nos pauis da Amazônia, mas nas entranhas da nossa terra.

Opera, todos os anos, ó Chuva, o milagre eterno do amor. Apieda-te do nosso Solo, que, quanto mais foges, mais se contorce e mais arde, mais se estiola e calcina, mais se definha e mais se inferniza, desesperado e trágico, na sede infinita do teu beijo.
Volta, de novo, ó Chuva, sobretudo agora, e faze reacender-se em nossos lares o círio votivo da Esperança.                        (Da Revista da Academia Cearense de Letras, 1953)

João Perboyre e Silva (1905 – 1965), filho de Luís José da Silva e Maria Júlia Moreira Silva, nasceu no município de Redenção no estado do Ceará. Pertenceu à Academia Cearense de Letras como Titular da Cadeira 33, que tem como Patrono Rodolfo Marcos Teófilo. “ Foi um prosador primoroso, orador vibrante, professor emérito e jornalista sem medo e sem mácula, voz e espírito sempre unidos na defesa dos sãos princípios “.




segunda-feira, 20 de março de 2017

DOMINGO NO PARQUE...



Hoje, no Parque do Cocó : junto a essas criaturas verdes que jogam as mãos unidas em prece aos céus. Elas representam pontes entre o mundo inferior e o multiverso : se alimentam da terra e do ar, possuem água em seu interior - a seiva - e abastecem o fogo: os quatro sagrados elementos - terra, ar, fogo e água-. As verdes árvores, cada árvore, todas as árvores da floresta não estão ensimesmadas. Estão todas rumo abaixo da terra para enraizar-se e rumo ao alto do céu para elevar-se (Buzzi ,A.R.)Um dia voltarei a ser poeira das estrelas reintegrando o divino espetáculo da natureza. Por enquanto, apenas continuo sorvendo o néctar da vida .Aleluia!

sábado, 18 de março de 2017

POLINDO PALAVRAS NA LOUSA DA MEMÓRIA


Boa noite a todos.

Dirijo minhas primeiras palavras de profundo agradecimento aos queridos:
Vicente Alencar, confrade, poeta, jornalista e mestre de cerimônia deste evento
Aos diletos integrantes da mesa:
Dr. José Maria Chaves, presidente da Academia Cearense de Médicos Escritores (ACEMES)
Prof. Dr. Marcelo Gurgel, presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (SOBRAMES)
Poeta e amiga de longa data Ayla Oliveira Costa
Poeta e confrade Dr. Geraldo Bezerra
Dr. Francisco Clayrton Weyne Martins, caro irmão representando a Turma de 73 da FMUFC
Dr. Francisco Perdigão, colega e amigo fraterno de longo curso
A todos os amigos, colegas, mestres, confrades, confreiras,familiares e demais presentes:
A gratidão representa uma das nobres virtudes dos seres humanos e, de pronto, assinalo com profundo sentimento, minha alegria em poder dividir com todos vocês este momento ímpar de minha humilde trajetória: o lançamento de um novo livro ou o partejar de um novo filho.
 Dou seguimento à tradição do velho curador de aldeia, lidando há quase meio século com a saúde de meus irmãos de caminhada, mitigando dores, lancetando feridas e tentando desvendar os labirintos da alma das pessoas. Por conta de meu rico contato diuturno com estudantes de medicina, por décadas, tive acesso a elaboração de artigos científicos, bem como, na feitura de livros técnicos de obstetrícia. Ao longo de meus 68 anos de vida construí com carinho um pequeno acervo de obras literárias exercitando minha insaciável curiosidade de bibliófilo.
Tomo como testemunho de verdade aquilo que o médico, escritor e dramaturgo russo, Anton Tchekhov (1860- 1904) plasmou sobre o tema literatura versus medicina:

“A medicina é minha legítima esposa, e a literatura, minha amante. Quando uma me cansa, passo a noite com a outra. Isto, irregular, não é monótono; e nenhuma das duas perde com minha infidelidade. Se não existissem minhas ocupações médicas, dificilmente poderia oferecer minha liberdade e meus pensamentos à literatura “.
Cedo pressenti que na minha vida o livro seria um valoroso companheiro, um amor para a vida inteira, mudo nas prateleiras e espalhados no meu quarto sob uma rede de Jaguaruana, mas transbordando em ricos ensinamentos quando folheados. Desde então exerço minha doce sina de peregrinar por livrarias e, especialmente, sebos da cidade buscando meu doce alimento para a alma.

 “ Assim como lavamos o corpo, deveríamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa “ : Fernando Pessoa (1888 – 1935) . Faz pouco reuni algumas crônicas num pequeno volume chamado “ Um Mar de Saudades na Transversal do Tempo “ onde voltei a ser um menino de rua, um adolescente inquieto e um adulto zanzando por uma Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção de antanho, com seu mimoso vestido de chita. Empreendi uma gozosa viagem para dentro de mim mesmo, catando histórias minhas como se fossem alheias e recolhendo histórias dos outros como se minhas fossem. Daí foi um pulo para elaborar este “ Polindo Palavras na Lousa da Memória “onde novamente desfilam breves perfis de pessoas e fatos do cotidiano de minha história de vida.

Se Deus assim permitir gostaria de completar uma trilogia, dando fecho a minha humilde produção livresca. Já me encontro garimpando palavras nos bolsos de meu jaleco branco para colar no varal da memória, nesta desigual luta contra a voracidade do tempo. Como gostaria, senhores, que as palavras mansamente me seguissem e não que fosse necessário mendigar a sua fugaz companhia!
Encerro estas breves palavras repetindo o que lapidou o grande escritor Anatole France (1844- 1924):

“ Se eu fosse a natureza, não faria o homem e a mulher à semelhança dos grandes macacos, mas à semelhança dos insetos que depois de um período de lagarta viram borboletas e na última parte da vida só pensam em amor e beleza. Eu poria a mocidade no fim da existência humana... Arranjaria que o homem e a mulher, desdobrando rutilantes asas, vivessem por um tempo no orvalho e no desejo, e fenecessem num beijo de êxtase”.
 Por fim, Senhor, conceda-me engenho, força e sabedoria para concluir minha pequena sinfonia terreal neste rico universo do livro como um simples contador de histórias urdidas no carrossel da vida.
Obrigado, amigos, vocês me proporcionaram um mágico momento através de suas preciosas presenças neste evento. Que Deus lhes abençoe e guarde!














quarta-feira, 15 de março de 2017

UMA SAGA DE LOBOS DO MAR EM 1941

Para o poeta Vicente Alencar



Transcorria o ano de 1941, em plena vigência do conflito mais letal da história da humanidade, a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945). O Brasil vivia sob o tacão da Ditadura do Estado Novo implantada em 1937 pelo melífluo gaúcho Getúlio Dorneles Vargas (1882- 1954), aclamado como “ O Pai dos Pobres “ ou “ O Grande Timoneiro”. No estado do Ceará fincado em pleno Nordeste brasileiro, um grupo de quatro humildes pescadores, jangadeiros ou lobos do mar, gestaram um audacioso sonho de seguir até o Rio de Janeiro, capital da república, com fins de exigir direitos nas novas regras criadas pela Consolidação das Leis Trabalhistas. Em Fortaleza existiam duas colônias de pesca: a Z-1, localizada na Praia de Iracema e a Z-2, em Mucuripe. No Ceará laboravam cerca de 35.000 jangadeiros. Para a arriscada aventura rumo ao Rio de Janeiro foi confeccionada uma rústica jangada de madeira piúba, que recebeu o nome de São Pedro, pesando cerca de oitocentos quilos, medindo trinta e seis palmos de comprimento e oito de largura.
A tripulação da jangada São Pedro foi assim constituída: Manoel Olimpo de Meira (Jacaré): 38 anos; Manoel Pereira da Silva (Mané Preto): 39 anos; Jerônimo André de Sousa (Jerônimo): 35 anos; e, Raimundo Correia Lima (Tatá): 52 anos. Quatro verdadeiros gigantes!
A jangada São Pedro zarpou da Praia do Peixe ou de Iracema na manhã do dia 14 de outubro de 1941 com destino ao Rio de Janeiro, a capital federal, após uma liberação concedida pelo Ministro da Marinha, Almirante Aristides Guilhen.  Para enfrentar o mar bravio e percorrer cerca de 2.381 Km, os quatros gigantes pescadores não levavam nenhuma bússola ou carta de navegação. De dia o rei-sol servia de referência e quando o véu da noite cobria a terra, as estrelas ajudavam a traçar o rumo da viagem. Deste modo, após várias peripécias, dentre as quais o enfrentamento de um forte temporal entre os estados da Bahia e Vitória, e depois de sessenta e um dias, naquele mundão d’agua salgada, a jangada São Pedro chega triunfante à Baía de Guanabara no dia 15 de novembro de 1941, com os mestres Jerônimo, Tatá, Mané Preto e Jacaré, bem maltratados e famintos. A jangada São Pedro, na ocasião, foi gentilmente doada pelos quatro heróis do mar ao Museu Nacional.
No Palácio da Guanabara os lobos do mar foram recebidos pelo ditador Getúlio Vargas que na ocasião prometeu um amparo a toda a categoria dos pescadores. Os resultados somente foram postos em prática, verdadeiramente, depois de três décadas daquele simbólico encontro.
Os novos heróis do mar voltaram para Fortaleza num avião da Navegação Aérea Brasileira (NAB) onde foram aclamados no Aeroporto do Cocorote e dali cada um dos jangadeiros continuou sua jornada de visitas e festas aos locais onde nasceram, para viverem seus breves dias de glória.
Pouco tempo depois surge em Fortaleza, ninguém menos que o cineasta americano Orson Welles (1915 - 1985) então já famoso pela produção da película “ Cidadão Kane” (1941).  Ele tomara conhecimento da saga dos quatro jangadeiros cearenses através da mídia americana e a serviço da “ política da boa vizinhança “ dos gringos viera rodar um documentário “ It’s all true“ (É tudo verdade) contando ao vivo com a participação da comunidade praiana incluindo os famosos “ Jacaré, Tatá, Mané Preto e Jerônimo “. Uma jangada fora levada de navio até Salvador, para que fossem tomadas imagens cinematográficas naquele pedaço do litoral baiano. Algo deu errado e a jangada foi lançada contra umas pedras submersas que despedaçaram a frágil embarcação, contudo poupando a vida dos atores/ pescadores cearenses. O projeto da filmagem seguiu em frente rumo ao Rio de Janeiro onde a jangada São Pedro que dormitava no Museu Nacional foi cedida, sob empréstimo, para reviver as peripécias de sua entrada nas águas da Bacia da Guanabara com os mesmos lobos do mar “ cabeças–chatas” da aventura de 1941. A dita embarcação mostrava o madeiro corroído, desgastado pelo tempo e que mesmo assim foi lançada ao mar para as filmagens. De repente uma onda volumosa e traiçoeira, despedaçou a jangada São Pedro lançando a tripulação para a profundeza das águas revoltas. A despeito de serem exímios nadadores, apenas três dos heróis cearenses voltaram com vida para a praia. Um deles, Jacaré, não retornou e jamais seu corpo foi localizado. O mesmo mar que lhe servira de berço o acolheu como gentil sepultura e ofertando como mortalha as alvas espumas das ondas.
“Ao sopro do terral abrindo a vela/na esteira azul das águas arrastada/segue veloz a intrépida jangada/entre os uivos do mar que se encapela/prudente , o jangadeiro se acautela/contra os mil acidentes de jornada/fazem-lhe , entanto, guerra encarniçada/os ventos, a chuva, os raios , a procela/súbito, um raio o prostra e, furioso,/da jangada o despeja na água escura/ e, em brancos véus de espuma, o desditoso/envolve e traga a onda intumescida/dando-lhe assim , mortalha e sepultura/o mesmo mar que o pão lhe dera em vida “      A Morte do Jangadeiro , poema de Padre Antônio Tomás (1868 – 1941).








sexta-feira, 10 de março de 2017

HERMAN LIMA - IMAGENS DO CEARÁ



Herman de Castro lima (1897 – 1981) veio ao mundo em Fortaleza no dia 11 de maio de 1897. Seus pais foram Antônio Silva Lima, nascido em Aracati e Julieta Demarteau de Castro Lima, filha do grande médico cearense José Lourenço de Castro e Silva e de Clara Demarteau, nascida na Bélgica. As primeiras letras do garoto Herman foram em uma escola pública, sob a orientação da professora Ifigênia Amaral. Antes de completar quinze anos, Herman Lima já enviava caricaturas para as famosas revistas “ O Malho “, “ Fon-Fon “ e “ Tico-Tico “.
 Tendo necessidade de iniciar cedo suas atividades laborais para ajudar no orçamento doméstico, o jovem Herman abdicou de realizar o curso ginasial. Isto não foi impedimento para que conseguisse ingressar na Faculdade de Medicina na Universidade da Bahia, onde graduou-se em 1928, sendo o orador da turma. No ano seguinte apresentou sua tese de doutoramento sob o título “ A Fácies da Criança”. Herman Lima casou-se com a sra. Anette Loureiro que lhe ofertou sete filhos: João Antônio, Ana Beatriz, Marta, Sílvia, Maria Violeta, Jana e Terezinha.
A cidade de Lençóis no interior da Bahia serviu para o novel médico Herman Lima iniciar seu caminhar na dura arte hipocrática. Daquele tosco ambiente nasceu a inspiração para seu romance “ Garimpos”. Antes, em 1924, Herman Lima já estreara com um livro de contos “Tigipió” que obteve retumbante sucesso literário.
O Rio de Janeiro no ano de 1931 serviu de pouso para Herman Lima que ali se arranchou por cerca de meio século. Em 1933 trabalhou no Gabinete Civil do Presidente Getúlio Vargas e dali rumou em 1937 para servir na Delegacia do Tesouro Nacional de Londres onde permaneceu até o ano de 1940. Neste período peregrinou por vários países do Velho Mundo angariando material para as seguintes obras: “ Na Ilha de John Bull “ e “ Outros Céus, Outros Mares, viagens”, 1942, prêmio da Academia Brasileira de Letras  ;” Variações sobre o Conto , crítica, 1952; “ Álvarus e Seus Bonecos , álbum ilustrado , 1954.
De volta ao Brasil arregaçou as mangas para durante duas décadas trabalhar exaustivamente sua monumental obra lançada em 1963, “ A História da Caricatura do Brasil “, em quatro volumes que foi agraciada com os prêmios Fernando Chinaglia (melhor livro do ano); Centro Cultural Brasil – Israel (melhor ensaio do triênio 1960-1963); Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro (melhor ensaio do ano). Em 1967 seu livro de memórias “ Poeira do Tempo “ recebe novamente o Prêmio Jabuti.
Seu livro “ Imagens do Ceará “, editado pelo Ministério de Educação e Cultura, na coleção “ Os Cadernos de Cultura” no ano de 1958 apresenta-se como um verdadeiro hino de amor ao seu estado natal, a despeito de ter vivido por longos anos em outras plagas. Distribuídos em quatorze capítulos, o autor discorre sobre sua marcante infância no bairro do Meireles, num aconchegante sítio à beira-mar e sua vivência com os valentes jangadeiros. Discorre também sobre os vaqueiros, as rendeiras e as tradicionais feiras que fazem o traço de união do sertão com o mundo. Deveria tal opúsculo de cento e sessenta páginas ser um manual de cabeceira de todo cearense da gema.
“ O jangadeiro - não sei quem disse – repete na sua faina, diariamente, o milagre de Cristo andando sobre o mar. Na verdade, tanto faz a prancha do seu barco exíguo como a planta dos pés divino pelo dorso das ondas...A jangada, onde passam a maior parte da existência, é a expressão mais rude e primitiva da navegação: um estrado de cinco paus roliços e linheiros, unidos entre si por alguns cravos de madeira; dois bancos, um em cada ponta, um, para o mestre da embarcação, o outro, para prender o mastro com a vela triangular. Nessa prancha lisa e sem defesa, esguia como um esquife, os homens vão, aos três e aos quatro, com a roupa do corpo, trabalhar no alto mar, a cada raiar do dia. A água verde cobre-lhes de contínuo os pés, com a renda de espumas frias dos teares das sereias. O mau tempo, não raro, busca esmaga-los com a garra do furacão e os dentes da maré. Pelo dia, guiam-se no rumo do sol. As estrelas são o seu roteiro, dentro da noite, como o eram para os navegadores antigos... Os grandes transatlânticos, em viagem para a Europa e a América do Norte, em águas remotas, quando nenhum sinal de terra se descobre mais, cruzam muita vez dançando na onda larga esses pequeninos palcos de ignoradas tragédias, onde quatro formiguinhas escuras bolem, assombrando os passageiros dos colossos de conforto e de luxo que se debruçam às amuradas celebrando com admiração o feito incrível. Um deles, que não entendeu direito o encontro e parou no meio do mar, para socorro, deu logo margem à famosa anedota que todo o Norte repete gostosamente e Rachel de Queiroz lembrou certa vez:
“ Vinha um navio inglês em mar alto, quando de bordo se avistou uma jangada. Pensaram naturalmente que eram náufragos agarrados àquela balsa rude. Pararam, atiraram uma linha, gritaram coisas em inglês.
Os jangadeiros apanharam a corda, sem entender.
- Que será que eles querem, compadre?
Até que o mestre da jangada pensou, sorriu, interpretou:
- Acho que eles estão querendo é reboque ...“
A Academia Brasileira de Letras, em 1975, outorgou a Herman Lima o seu mais alto galardão, o prêmio Machado de Assis, pelo conjunto de obra. O Estado do Ceará conferiu-lhe a medalha José de Alencar, pelos relevantes serviços prestados à cultura cearense.
Herman Lima, cronista, crítico, memorialista , ficcionista e tradutor,  faleceu no Rio de Janeiro no dia 21 de julho de 1981 deixando imensa lacuna nos meios culturais e das letras cearenses.









quarta-feira, 8 de março de 2017

UMA SAUDAÇÃO ÀS GUERREIRAS DO COTIDIANO

Benditas mulheres que amorosamente carregam em seu ventre sementes de amor, ensinando no mundo a todos, lições diárias de força, beleza e perseverança. 
Uma vez arguidas sobre qual dos filhos mais estima têm a resposta na ponta da língua: “- Ao pequenino até que cresça; ao enfermo até que cure; ao ausente até que volte”.
Saudando vocês, fadas do cotidiano, eu saúdo a vida em sua essência:
“ Eu saúdo a vida, que é como semente germinada,
Com um braço que se eleva no ar
E o outro sepultado no chão.
A vida que é uma, em sua forma externa e em sua seiva interior;
A vida que sempre aparece e desaparece.
Eu saúdo a vida que vem e a vida que passa.
Eu saúdo a vida que se revela e que se oculta.
Eu saúdo a vida em suspenso, imóvel como uma montanha,
E a vida do enraivecido mar de fogo;
A vida, tão terna como o lótus e tão cruel como a centelha.
Eu saúdo a vida da mente, que tem um lado na sombra
E outro lado na luz.
Eu saúdo a vida da casa e a vida de fora, no desconhecido;
A vida repleta de prazeres e a vida esmagada por pesares;
A vida eternamente patética, que agita o mundo para aquietá-lo;
A vida profunda e silenciosa que explode em fragorosas ondas “
Rabindranath Tagore (1861-1941)

sexta-feira, 3 de março de 2017

SÃO PEDRO ABENÇOANDO O MEU CEARÁ

Para Cid Carvalho


Já no meio da manhã e nada da carruagem do Rei- Sol passar espargindo ouro por Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Por favor, irmão- sol, dê uma trégua! Aposto - “é pego batido e ponta virada”- que o inverno pegou de vez. Vem logo na lembrança a figura plural do jornalista, advogado, professor, romancista e poeta cearense Jader de Carvalho (1901 - 1985), uma canora ave de nosso pedregoso, sofrido e amoroso chão sertanejo, riscando mais um brejeiro poema: Chove, Chuva!

“ Chove, chuva!
Chuva, molha o algodoal!
Vem molhar, bem molhadinhos,
Minha cansada fazenda,
Meu ardente coração!
A água desce do serrote.
A água espuma no riacho.
A água esturra nos lajedos.
A água se enrosca no açude,
Depois de apagar estrelas,
Depois de banhar o gado,
Depois de tirar meu rastro
Do terreiro de Maria.
Bastião convida a Zefa!

 - Zefa, apaga a lamparina,
Fecha logo a camarinha:
Cabem dois na mesma rede...
A seca levou irmãos
Paraná chamou vaqueiros,
Lavradores e vadios.
E o velho rio do Norte,

Quer chova, quer faça sol,
Hipnotiza de longe:
Ah, jiboia dos seiscentos!
A terra, Zefa, não pode,
Não deve ficar sozinha.
Bastião, a terra é ótima,
Talvez a melhor do mundo:
- É bom não perder a chuva!
- Convém plantar um menino! “




quinta-feira, 2 de março de 2017

UMA ALEGORIA SOBRE O REI LEÃO



Nas savanas agrestes perdidas neste mundo de meu Deus ainda impõe respeito no grito o valente leão. Mal começa o ano e o voraz apetite do bicho já se declara, danado através de seu ronco medonho, o infausto anuncio que a malha fina vai troar pegando muita gente, especialmente, uns tais inofensivos ratos brancos. Estes pequenos animais vivem correndo de um subemprego para outro com fins de obter “ o de comer “, uns trocados maneiros e de pouca monta.

 Assim mesmo nessas atividades laborais dos ratos, o sagaz leão já tira na fonte o seu substancioso naco. Interessante que a tal malha fina abocanha somente animais inofensivos de pequeno porte.
 Os mastodontes que passeiam lépidos pelas savanas nunca são alcançados pelos reis da selva que nestes casos atuam como manhosos gatinhos angorás a lamberem e roçarem suas caldas, mansamente, nessas abjetas criaturas. “ Igrejas “, “colégios“, “políticos” e “ grandes industriais “, passam ao largo, incólumes ante ao temível leão. Nem todos são iguais perante a lei das selvas neste hipotético país do faturo.

Vale relembrar para minorar a ameaça – uma espada de Dâmocles - que paira solta no ar, a jocosa história que se passou num povoado onde habitava uma gente humilde, de baixa estatura e de cabeça grande, que sofria mas gozava, e que teve a coragem de ensaiar uma vaia em outra majestade, o rei-sol, que andava meio escondido por aquelas bandas. 

Certa feita, surgiu do nada feito uma visagem, um daqueles circos mambembes, como os Circos Nerino ou Garcia, anunciando que precisava contratar um domador de leão. Apresentou-se uma famélica criatura que de pronto recebeu seus novos instrumentos de trabalho: uma cadeira e um chicote.

 Na primeira apresentação, sob a esburacada lona desbotada do circo, o “domador de araque “, pisava nas estrelas do chão, como na letra da música de Orestes Barbosa, e olhava bem fundo nos olhos do temível leão.
“ – Leãozinho, leãozinho “, falou baixo o domador, numa quase súplica. “- Vamos com calma, amigo, sou teu chapa “.
A “gigante fera “ meio sem graça murmurou:
“ – Mundinho, você não está me reconhecendo? Aqui é o Zeca, outro desempregado e faminto como tu, topando qualquer parada, inclusive ser “ leão de araque!”.