quarta-feira, 29 de julho de 2015

 1968 – O LIMIAR DE UM SONHO PARA ALGUNS POUCOS




Como outros acontecimentos históricos , o ano de 1968 , instalou – se avassalador , pegando a todos de surpresa e trazendo em seu bojo mudanças comportamentais , políticas , sexuais e éticas . O Brasil desde 1964 encontrava- se sob um severo regime militar implantado através de um Golpe de Estado . No dia 28 de março de 1968 ocorre a morte de um estudante secundarista paraense , Edson Luiz , no restaurante universitário “ Calabouço “ , no Rio de Janeiro . Foi o estopim para duas gigantescas passeatas de protestos contando com cerca de 100.000 cidadãos indignados e acordando de vez o Brasil de norte a sul . Palavras de ordem eram gritadas pela multidão : “ O povo unido jamais será vencido “ ; “ Nesse luto começa nossa luta “ .
Protestos estudantis já pipocavam em várias cidades do mundo , como em Paris , com maior ênfase . No México , houve um massacre que contabilizou 26 mortes , 300 feridos e mais de 1000 pessoas presas .
Um discurso na Câmara dos Deputados proferido por um parlamentar , Márcio Moreira Alves , levava a inocente proposição de boicote à parada de 7 de setembro e sugeria que nos bailes em comemoração à Independência , as moçoilas desprezassem o convite dos cadetes para uma dança . A Câmara negou um pedido de punição ao incauto deputado ( 216 votos contra , 141 a favor e 24 abstenções ) .
O Alto Comando do Golpe Militar sob as ordens do marechal linha – dura Arthur da Costa e Silva , edita então o brutal Ato Institucional número 5 dando início a uma repressão total com intervenção nos estados , cassação de mandatos e suspensão dos direitos individuais . De quebra , a medida truculenta promove o fechamento do Congresso , com cassação de 110 deputados federais , 161 deputados estaduais , 163 vereadores , 22 prefeitos 4 ministros do Supremo Tribunal Federal . Dentre as milhares de prisões , destaque às figuras de Juscelino Kubitschek , Carlos Lacerda e o Marechal Henrique Teixeira Lott . Instalava – se deste modo , o inicio do desmantelamento da chamada Frente Ampla , um movimento da esquerda que articulava o retorno dos civis ao comando da nação . A esquerda executa Charles Chandler , um agente da CIA em São Paulo e põe em prática ousados assaltos e atentados , atacando a onça com vara curta . A resposta vinha com mais repressão . O Trigésimo Congresso Nacional da UNE realizado clandestinamente em Ibiúna , em São Paulo tem como epílogo a prisão de 700 rapazes e moças .
No cenário musical , põe – se em marcha o suplício duradouro do jovem compositor nordestino Geraldo Vandré , por conta de uma canção que logo se transformaria num hino contra a ditadura militar : “ Pra não dizer que não falei de flores “ :
“ Caminhando e cantando e seguindo a canção / somos todos iguais , braços dados ou não / nas escolas , nas ruas , campos , construções / caminhando e cantando , seguindo a canção / vem vamos embora / que esperar não é saber / quem sabe faz a hora / não espera acontecer / pelos campos há fome em grandes plantações / pelas ruas marchando indecisos cordões / ainda fazem da flor o seu mais forte refrão / e acreditam nas flores vencendo o canhão / há soldados armados , amados ou não / quase todos perdidos de armas na mão / nos quarteis lhes ensinam uma antiga canção / de morrer pela pátria e viver sem razão / nas escolas , nas ruas , campos , construções / somos todos soldados armados ou não / caminhando e cantando seguindo a canção / somos todos iguais , braços dados ou não / os amores na mente , as flores no chão / a certeza na frente , a história na mão / caminhando e cantando seguindo a canção/ aprendendo e ensinando uma nova lição / “ .
Na bucólica Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção , distante do fervilhante caldeirão de Rio – São Paulo , um grupo de 148 novos estudantes de medicina da Universidade Federal do Ceará tomam as primeiras aulas , não curriculares , sob a perturbadora realidade de um movimento estudantil focado na situação dura do regime militar vigente . Distintos jovens sonhadores , sem nenhum cacoete de guerrilheiros , seriam nossos “ professores “ com destaque para os seguintes nomes : João de Paula , Mariano Freitas , Chico Monteiro , Helena Serra Azul , Marco e Júlio Penaforte , dentre outros . Eles programavam as famigeradas passeatas – relâmpago em logradouros como as Praças do Ferreira e José de Alencar . Os protestos terminavam , quase sempre , apenas em sustos e correrias , sem feridos ou prisões . A barra pesada da repressão ainda não se estabelecera definitivamente entre nós .
O melhor ficava guardado para quando a noite cobria com seu manto a cidade , onde alguns jovens migravam para a avenida Beira – Mar em busca do Bar do Anísio , frequentado por artistas da terra ainda em busca da fama ( Belchior , Fagner , Ednardo , Fausto Nilo e dentre tantos ) . Outros seguiam rumo ao bairro do Farol , com suas ruas “ da frente e detrás “ pejadas de bares e cabarés , como o famigerado “ Forró da Bala “ . Naquele exótico laboratório social a céu aberto , esporadicamente , dava - de cara com algumas figuras que num futuro próximo seriam nossos queridos mestres na faculdade de medicina , o que nos causava a um só tempo , espanto e admiração . Apresentava – se ali uma rara oportunidade de estreitar laços de amizades com aquelas santas figuras humanas .
Para nós que integramos a turma que ingressou na faculdade de medicina naquele sabático ano , 1968 não foi “ um ano que não terminou “ e sim o marco – zero de nossa vida acadêmica de futuros filhos de Hipócrates , que hoje ainda seguimos pelejando pelos árduos caminhos da vida , cientes de que fomos bafejados pela sorte e , por isso , agradecemos a Deus por esta dádiva . Enfim , emergimos íntegros daqueles árduos tempos de chumbo .
“ Na Beira – Mar , entre luzes que lhe escondem / só sorrisos me respondem / que eu me perco de você / que eu me perco de você / você não viu a lua cheia que eu guardei / a lua cheia que eu esperei / você nem viu / você nem viu / viva o som , velocidade / forte praia minha cidade / só o meu grito nega aos quatro ventos / a verdade que eu não quero ver / e o seu gosto que ficando em minha boca / vai calando a voz já rouca / sem mais nada pra dizer / sem mais nada pra dizer / e eu fugindo de você / outra vez me desculpando / é a vida , é a vida / simplesmente e nada mais / e um gosto de você que foi ficando / e a noite enfim findando / igual a todas as demais / e nada mais e nada mais / meu amor na Beira – Mar / entre luzes se escondem / só sorrisos me respondem / e nada mais e nada mais / “ .

domingo, 26 de julho de 2015

GIROLAMO FRACASTORO E A HISTÓRIA DA SÍFILIS
Girolamo Fracastoro ( 1478 – 1553 ) , ou Hieronymous Fracastorius , médico italiano , mente renascentista superdotada e polifacética , veio ao mundo em Verona , no Vêneto  e , considera – se um dos fundadores da Epidemiologia . Foi médico do Concílio de Trento ( da Contra – Reforma ) e do papa Paulo II . Além de  médico ,  foi astrônomo , matemático , poeta  e  filósofo . Estudou Direito em Bolonha  , antes de se matricular na famosa Universidade de Pádua ( criada no século XII ) e receber o diploma de bacharel em 1505 . Ensinou nesta universidade por pouco tempo e retornou  a  Verona para exercer a  medicina .
Entre as doenças desconcertantes que Fracastoro tentou tratar  , se apresentava uma que parecia  nova . Horrível em muitos  aspectos , era discutida em toda a Europa e possuía exóticas denominações : doença espanhola , prurido napolitano , mal francês , Bouba , sarampo da Índia e varíola francesa . No século XVII o termo doença venérea ( lues venera ) já estava em voga  e procedia de Vênus , deusa romana da beleza , do amor e da fecundidade , uma versão latina da deusa grega chamada Afrodite , origem dos termos afrodisíaco e hermafrodita ( Hermes e Afrodite num só indivíduo ) .  A palavra conjuga o amoroso ao  feminino . Estas morbidades tem repercutido desde o início da história do homem de maneira significativa na vida individual e coletiva da sociedade  .
Sífilis  , o termo criado por Fracastoro para denominar tal peste , só se tornaria usual no início do século XIX . A origem de tal doença  na Europa mostrou –se  controversa desde o início . Existem duas teorias prováveis  : a mais antiga defende que a sífilis foi levada para a Espanha a partir do Mundo Novo , pelos marinheiros de Cristóvão Colombo . A outra versão preconiza que tenha havido uma mutação do Treponema pallidum , o bacilo espiralado transmissor da doença , no contexto da explosão urbana e das mudanças sociais da Europa  ( Simmons , J.G.) .
O livro publicado por Fracastoro , em 1530 ,  denominado “ Syphilis sive morbus gallicus “  (   Sífilis , ou a doença francesa ) foi dedicada ao cardeal Pietro Bembo , um conhecido erudito , secretário papal e um dos amantes de Lucrécia Bórgia ( 1480 – 1519 ) : esta era irmã de César Bórgia , cardeal e príncipe amoral , sem escrúpulos , que serviu de modelo para Maquiavel , em sua obra “ O príncipe “ . Lucrécia  , célebre por sua beleza e cultura , era protetora das artes e das ciências . Vítor Hugo em seu drama Lucrécia Bórgia ( 1833 ) fez dela uma cortesã criminosa .O livro de Fracastoro  foi escrito em verso branco , em latim e utilizou as clássicas fontes gregas e romanas . O poema consta de três livros  .  No  primeiro , o autor descreve o aparecimento da doença e o atordoamento que ela provoca . No segundo  , põe em discussão os vários modos de tratamento e as aventuras de um agricultor Ilceus , que encontra sua cura nos banhos de mercúrio . É deste período o dito  jocoso : “ Uma noite com Vênus , o resto da vida com Mercúrio “ .
O terceiro livro mostra um conto alegórico cujo personagem é um pastor de nome Syphilus , cuja reverência a um deus mundano incitou a ira do deus Sol . Em consequência ele sofreu de “ chagas pútridas por todo o corpo ; primeiro ele conheceu as noites insones , seus ossos doíam impiedosamente “ . Outra obra de Fracastoro foi “ De contagionibus “ ( 1546 ) onde através de três formas tenta explicar a natureza das doenças contagiosas : por contato direto , através dos fômites e à distância . Antes na história , Galeno , Marco Terêncio Varro e Plínio o Velho já conjecturavam acerca do contágio . A teoria dos germes só apareceria no cenário da medicina no século XIX  .
No curso da história a sífilis abateu gente de todas as classes sociais e continua  agora , em pleno século XXI , sua jornada , mesmo na presença de um antibiótico potente como a Penicilina Benzatina , mostrando – se ainda  uma chaga aberta na sociedade .
Faz – se menção , talvez com algum exagero ,  que estas figuras históricas padeceram com a  sífilis :  Heliogábalo , Tibério , Calígula , Teodósia , César Bórgia , Cristóvão Colombo , Hernán Cortés , Henrique VII , Ivan, o terrível , Marques de Sade , Franz Liszt , W. Amadeus Mozart , Franz Schubert , Ludwig van Beethoven , W. Shakespeare  ,  Guy de Maupassant , James Joyce , Arthur Rimbaud , Paul Verlaine , T. Lautrec , F. Nietsche , Oscar Wilde , Goya , Al Capone , Adolf Hitler e Benito Mussolini .
O humanista Erasmo de Rotterdam ( 1469 – 1536 ) , dizia , cinicamente : “ Um homem nobre sem sífilis , ou não era demasiado nobre , ou não era demasiado homem “ .

Girolamo Fracastoro morreu em 8 de agosto de 1553 , em decorrência de um provável acidente vascular cerebral .Contava com 75 anos de idade .

quinta-feira, 23 de julho de 2015


BELCHIOR  ,  UM RAPAZ LATINO-AMERICANO VINDO DO INTERIOR
Para a Turma de 73 da FMUFC

Uma rua secundária  , pacata ,  que imita a vida humana  terminando  de modo súbito  , acolhe uma aconchegante praça ,  bem arborizada , ali  pras bandas do bairro Dionísio Torres , na loira desposada do sol e amante de eternos boêmios. Não haveria de faltar naquele logradouro  ,  um quiosque onde  rola  um som mecânico da tradicional Música Popular  Brasileira , pela noite adentro  .Um certo rapaz  latino-americano , sem dinheiro no banco e vindo da cidade de Sobral ,  no interior do Ceará , enche com sua voz rascante ,  belos poemas musicados para o regozijo  de  notívagos  que ali tomam acento  .
Antônio Carlos Belchior Fontenele Fernandes nasceu no município de  Sobral , no Ceará, no dia 28 de outubro de 1946 .Teve infância tranquila em sua cidade natal e migrou , como muitos , para a capital do estado , Fortaleza , em 1962 . Estudou Filosofia e Humanidades e em 1968 iniciou o curso de medicina na Universidade Federal do Ceará  .  Sua redação na prova de português para o acesso à universidade sobre o poema “ Telha de Vidro “ da cearense Rachel de Queiroz  , obteve nota máxima .  Em 1971 segue para o sul do país onde tece uma rica carreira  artística , deixando para trás  seus estudos médicos . A partir de então lançou 22  discos ,  quase que um trabalho  por ano ,  com letras de músicas bem elaboradas e com temática envolvendo a inquietação da juventude , a saudade de sua terra natal e sobre o cotidiano , como “ à  palo seco  “  ,  que  se abate no lombo “ do pacato cidadão comum “ .
“ Era um cidadão comum como esses que se vê na rua / falava de negócios , ria , via show de mulher nua / vivia o dia e não o sol , a noite e não a lua / acordava sempre cedo ( era um passarinho urbano ) / embarcava no metrô , o nosso metropolitano / era um homem de bons modos : “ com licença ; foi engano “ / era feito aquela gente honesta , boa e comovida / que tem no fim da tarde a sensação da missão cumprida / acreditava em Deus e em outras coisas invisíveis / dizia sempre sim aos senhores infalíveis / pois é ; tendo dinheiro não há coisas impossíveis / mas o anjo do Senhor ( de quem nos fala o Livro Santo ) / desceu do céu pra uma cerveja , junto dele , no seu canto / e a morte o carregou , feito um pacote , no seu manto /  - que a terra lhe seja leve -  “ .
E segue a saudade plantando sementes no coração selvagem de Belchior   , mesmo no período discricionário então vigente ( 1964 – 1985 )  , sendo  o poeta sobralense  ,  capaz de matar ou morrer , armado com seu tição de rimas  .

“ Quando eu não tinha o olhar lacrimoso / que hoje eu trago e tenho / quando adoçava meu pranto e meu sono / no bagaço de cana do engenho / quando eu ganhava este mundo de meu Deus / fazendo eu mesmo o meu caminho / por entre as fileiras do milho verde / que  ondeia , com saudade do verde marinho / eu era alegre como um rio / um bicho , um bando de pardais / como um galo quando havia / quando havia galos , noites e quintais / mas veio o tempo negro  e , a força fez comigo o mal que a força sempre faz / não sou feliz , mas não sou mudo / hoje eu canto muito mais “ .

E assim Belchior, agora um senhor beirando a casa dos setenta anos  , permanece  atual , com seu trato maneiro ,  em  linguagem poética , jogando rimas em  temas ligados a infância ( Hora do Almoço ) , juventude ( Como Nossos Pais ) , a angústia da cidade grande ( Alucinação ) e filosofia ( Divina Comédia Humana ) . Uma formação humanística bem plasmada  permitiu a Antônio Carlos Belchior pousar  em várias áreas ,  sempre com  versos de uma  pungente  beleza .


“ Estava mais angustiado que um goleiro na hora do gol /quando você entrou em mim, como um sol no quintal / aí um analista amigo meu  disse que desse jeito / não vou ser feliz direito / porque o amor é uma coisa mais profunda que um encontro casual / aí um analista amigo meu disse que desse jeito / não vou viver satisfeito /porque o amor é uma coisa mais profunda que uma transa sensual / deixando a profundidade de lado / ah ! eu quero é ficar colado à pele dela noite e dia / fazendo tudo e de novo dizendo :  sim à paixão  morando na filosofia / quero gozar no seu céu , mas pode ser no seu inferno / viver a divina comédia humana onde nada é eterno/ ora - direis :  ouvir estrelas , certo !  perdeste o senso / e eu vos direi no entanto / enquanto houver espaço , corpo , tempo e algum modo de dizer não , eu canto “ .
  Caro Belchior, a patota de boêmios que curte uma caninha com torresmo aqui na  praça  Rogério Fróes  , em Fortaleza , e a Turma de Medicina  da UFC ( 1973 )  , que , também é a sua , faz chegar até você  , aí  no aconchego do seu próprio  universo , que seguiremos ouvindo estrelas  , banhados em prata pela lua que vigia nossos trôpegos  passos  , e  levando em frente  nossa  divina comédia humana onde nada é eterno  .  Agradecemos  , sua agradável companhia diária  e de resto , só muita saudade .

segunda-feira, 20 de julho de 2015


BRACUVEAR   -   UM SONHO OU UM PESADELO
Perdido e girando no pequeno bólido  azul   dito Terra , medrou um imaginário aglomerado de gente , numa extensão continental de chão e que outrora fora habitado por ferozes tribos indígenas . Em meio a avanços e retrocessos  ,  hoje no ano da graça de 200.015 , encontramos um tosco grupo de moradores , frutos do caldeamento de índios , degredados europeus e aborígines africanos .
Situa – se o país em pauta , ao sul do equador , onde não existe pecado . Sua denominação  :  Bracuvear  . Nome estranho , há que se convir . O distinto concidadão e leitor , enganou – se , redondamente , ao pensar  que tal palavra resulta da junção de Brasil , Cuba , Venezuela e Argentina . Bracuvear foi extraído do linguajar populacho e significa furdunço ou Casa de Mãe Joana .  O  vigente regime desta nação imaginária , evidencia um forte apelo autocrático . No seu brasão distinguem – se , claramente , uma foice , um martelo e uma estrela rubra fragmentada . Cruz , credo ! .
Das três instituições basilares que representam o povo de Bracuvear , duas delas mostram – se atoladas até o pescoço num lodaçal de desmedida corrupção . A atual mandatária do país ora descrito  ,  muito viaja e pouco fala , contudo , segue fielmente a cartilha escrita por caciques pouco letrados e de comportamentos nada éticos , daqui e de alhures .
A classe política é  prenhe de figuras exóticas , egoístas , com riqueza espúria , comunistas de araque , pregadores fajutas de falsas igrejas que pululam feito uma praga  e empresários malas – sem – alça . E o  povo ? : uma gente famélica , pouco alfabetizada , letárgica , dócil , presa fácil de melosos malandros engravatados , seguindo cabisbaixas e tristes feito bovinos rumo ao inevitável matadouro .
Relatos da gandaia dão conta de que os “ pobres “ políticos de Bracuvear vivem um incômodo pesadelo  , onde visualizam  o funesto retorno de fuzilamentos , enforcamentos ,  e dos corretivos cadeiras – do – dragão e dos  “ paus – de – araras . Pelo andar da  carruagem , a cobra vai fumar ! .
Por aqui  fico , filando um baseado maneiro , com o ouvido no chão , caçando o longínquo troar dos canhões anunciando a chegada da Batalha do Armagedom.  Acorda e vai  à  luta , Bracuvear , que ainda a esperança não finou ! .
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ALEIJADINHO  ,  UM GÊNIO BARROCO
Antônio Francisco Lisboa  , o Aleijadinho , veio ao mundo , provavelmente , em 1730 , em Vila Rica , no estado de Minas Gerais . Filho de Manuel Francisco Lisboa ( português , mestre – de – obras e , posteriormente , arquiteto ) e Isabel , uma das escravas de Manuel Francisco . Por ocasião do batizado de Antônio  Francisco , este e sua genitora , foram alforriados por Manuel  Francisco .
Vila Rica e arredores  , viviam uma época de prosperidade , por conta da corrida do ouro , onde  os novos – ricos mineradores ofereciam a seus santos prediletos “ quintos “ do ouro , sempre que eram felizes em sua caça ao cobiçado  metal .  Havia também doação de terrenos que contribuíam para o fausto da Igreja de  então . O trabalho era farto para  arquitetos , escultores , carpinteiros e mestres – de- obras . Cercavam nas artes  , harmoniosamente , ao pequeno Antônio , seu pai , Manuel ( arquiteto ) , seu tio , Antônio Francisco Pombal ( entalhador ) e Francisco Xavier de Brito ( escultor português ) .  Um meio – irmão de Antônio Francisco  , filho de Manuel Francisco Lisboa  e de Antônia de São Pedro , de nome Félix Antônio de Sousa , tornou- se padre da Igreja Católica , e colaborou efetivamente com os trabalhos artísticos de Antônio Francisco .
Antônio Francisco Lisboa espalhou verdadeiras relíquias com seu trabalho manual nas cidades mineiras de Ouro  Preto , Sabará , Tiradentes , São João del – Rei , Caeté  e Mariana .
Em Ouro Preto  , Antônio Francisco esculpe sua obra- prima na igreja de São Francisco de Assis, um símbolo maior da arquitetura religiosa de Minas Gerais .
Por volta de 1776 ou  1777 ,  um solteiro Antônio Francisco  , teve um filho com Narcisa Rodrigues da Conceição ( crioula forra ) , que recebeu o nome do avô paterno .
Por esta época  ,  Antônio Francisco passa a apresentar sinais de uma grave doença degenerativa  deformante , que trouxe a perda de todos os dedos dos pés e da maioria dos dedos das mãos  do artista . A partir de  então , dores atrozes acompanhariam o inditoso trabalhador das artes plásticas  por toda a vida . Logo surgiu o epíteto de  Aleijadinho . O grande bardo pernambucano Manuel Bandeira comenta que “ o diminutivo de Aleijadinho é significativo de pura meiguice e compaixão brasileira .... Nem no físico , nem no moral e nem na arte , nenhum vestígio de tibieza sentimental , e ,sim , um arquiteto e escultor de uma saúde , robustez e dignidade a que não atingiu nenhum outro artista plástico entre nós “ .
Aleijadinho tornou – se por conta da doença  ,  um ser solitário , saindo às ruas em horários de pouco movimento ,  carregado  por escravos e coberto com pesadas  e dissimuladoras roupas . Os  materiais de trabalho eram amarrados em seus membros  superiores , a fim de poder desenvolver suas obras artísticas  .
A doença de Aleijadinho permanece até nos dias de hoje   , um verdadeiro mistério . Dentre as hipóteses mais prováveis  sobressaem as seguintes morbidades : hanseníase , sífilis , porfiria cutânea tarda  , tromboangeíte obliterante e esclerose sistêmica . Pelo visto  a dúvida persistirá     por todo o sempre   .
Apesar de  seu atroz  sofrimento ,  o gênio barroco mineiro mantinha uma alma de alegre  criança . Conta – se que um ajudante- de – ordens  do governador Bernardo José de Lourena , de nome José Ramão , tratara de forma descortês o infeliz Aleijadinho , por conta de sua feiura  . Uma  encomenda  de São Jorge , solicitada pelo governador mineiro saíra  em forma de uma estátua de tamanho real com as feições de José Ramão .  Surge  , então a seguinte quadra  galhofeira : “ O São Jorge que ali vai / com ares de santarrão / não é São Jorge nem nada / é o coronel Zé Ramão “ .
Considera – se a expressão maior do gênio barroco Aleijadinho a igreja de São Francisco de Assis em Vila  Rica .   Outros elegem  as seis capelas dos Passos com as figuras dos Passos do Horto , Paixão , Coroação , Ceia , Açoites , Cruz – às – Costas e Crucificação em Bom Jesus de Matosinhos .
Cabe  também citar as 12 imagens de tamanho natural esculpidas em pedra – sabão , todas com expressão de prodigiosa espontaneidade ,  dos profetas : Isaías , Jeremias , Baruque , Ezequiel , Daniel , Oséias , Jonas , Joel , Abdias , Habacuque , Amós e Naum .
A partir de 1810  , o Aleijadinho perde por completo sua capacidade laboral  ,e recolhe –se a casa de sua nora Joana , onde vem a falecer em 18 de novembro de 1814 na cidade de Ouro Preto , no estado de  Minas Gerais . Não consta nenhum atestado de óbito passado por  médico , na ocasião .    O genial e infortunado  artista era um ser  ,  hemiplégico , cego e na absoluta miséria . Teve fim um doloroso calvário .



quinta-feira, 16 de julho de 2015

PINDORAMA EM  FRANCO NOCAUTE    


Pindorama  , o país gigante , em berço esplêndido , literalmente , beija o frio chão do tablado . Um vero fundo do poço  . Degradante e  decadente , chafurdando no lodaçal , delineiam - se carimbadas figuras da política nacional  , uns  legítimos  fichas – sujas  , em conluio com macro- empresários nada éticos , todos descaradamente  verberando catilinárias e brandindo espadas enferrujadas contra o óbvio ululante . Verdadeiros mestres na arte da  dissimulação .
Nesta pantomina desenham – se claramente quatro figuras  arquetípicas : o palhaço , o bufão , o embusteiro e o bobo ( Nisker , W . , 2001 ) .
O  palhaço : Aquele que desnuda nossa condição humana , abrindo nossos olhos para a cruel realidade e nos ensinando a rir , puramente ,  de nós mesmos . Afinal  ,  somos todos aqueles que caem na lábia dos malandros , esquecendo – se de malogros pretéritos e repetindo sempre a mesma tragédia no futuro  .
O embusteiro: É o velhaco  , o libertino , o patife , aquele  que não respeita nenhum código de conduta humana . Uma verdadeira  praga  , um craque na arte do disfarce e do roubo  . Da união dos velhacos políticos e dos empresários -  malas são geradas as grandes cifras  da corrupção .
O bufão  : Na corte representa o bobo da rainha  , o bajulador , o  fuxiqueiro e o  reles  puxa – saco . Aquele que nada  constrói .  Sabe ele  que a qualquer momento pode ser enxotado com um chute  contundente no  traseiro .  Representa a mais triste figura de todas e a mais  digna de pena  .
O  bobo : Representa um tipo fora da realidade , um simplório caipira ou um excêntrico sábio . A inocência é a marca principal deste  pobre personagem . Vivem de benesses do governo e a todo movimento estranho visualizam um  pérfido  golpe .  Fazem um grande mal à democracia.
No atual momento constrangedor de  Pindorama ,  um jovem e corajoso magistrado , com a fiel colaboração da aguerrida Polícia Federal , tenta a todo custo por fim a uma sangria desatada numa das maiores empresas do mundo  com sede neste pedaço de chão . O mais patético de  tudo , são as figuras envolvidas na brutal corrupção , todas atreladas a alta esfera do poder político e econômico  da nação . Uma  lástima ! . Apenas a  justiça que é cega , mas enxerga quando quer , pode dar uma resposta que todos os cidadãos de bem , de Pindorama , ansiosamente aguardam  . É a verdade ou o caos  , o que nos aguarda   !  .




quarta-feira, 15 de julho de 2015

ARTHUR  BISPO  DO  ROSÁRIO  -  UM ORGANIZADOR DO CAOS


Arthur Bispo do Rosário ( 1909  – 1989 ) , apareceu no mundo em 1909 no município de Juparatuba , no Estado de Sergipe , na região mais pobre do Brasil , o Nordeste : o mundo do cangaço , da seca periódica e berço de beatos e santeiros .
Há uma instigante ausência de dados sobre a infância de Arthur  Bispo .  Entre 1925 e 1933 encontram – se citações  sobre o trabalho regular de Arthur junto a Marinha do Brasil na condição de marinheiro e  pugilista  . Há relatos que Arthur foi campeão de boxe na categoria de pesos leves da Marinha .  Consta que seu desligamento fez –se por conta de indisposição com seus superiores hierárquicos  . O mesmo aconteceu em outro emprego na Companhia Light ,  uma  empresa de eletricidade , onde exercia  a condição de borracheiro e lavador de bondes . Neste trabalho sofreu um acidente e teve parte de seu pé direito  esmagado . O Dr. Humberto Leone , seu advogado trabalhista , posteriormente o acolheu em sua residência por um determinado período .   Por esta época , provavelmente ,  deu- se  o início da produção dos trabalhos de arte de Arthur Bispo .  
Em 22 de dezembro de 1938 , aquele negro ,solteiro , sem parentes , num surto psicótico chegou ao Mosteiro de São Bento , onde na presença dos monges apresentou –se como um enviado de Deus , em uma comitiva de anjos , com fins de julgar os vivos e os mortos . Dali foi enviado para o Hospício Pedro II , na Praia Vermelha , o mesmo onde um outro negro genial , o escritor Lima Barreto ( 1881 – 1922 ) também fora confinado por conta de problemas com o uso imoderado de bebidas alcoólicas  .  Logo  ,  Arthur foi transferido , para onde seria seu lar por cerca de 50 anos  , a famigerada Colônia Juliano Moreira , sob o fatal diagnóstico de Esquizofrenia Paranóide . A prática psiquiátrica vigente constava de isolamento  , contenção mecânica e farmacológica , assim como , sessões de  eletrochoque . Relata – se que o próprio Arthur , ao pressentir o desencadear  de um surto psicótico  , solicitava  que o colocassem na área do  isolamento .
Arthur Bispo do Rosário não teve orientação didática nem conviveu com qualquer artista plástico que imprimisse alguma influência no seu alentado  trabalho  manual . A produção artística de Arthur parte de matérias diversas , restos de produtos de consumo , que em sua mente fragmentada e  em suas mãos ,  ganham formas de estandartes , barcos , fardões , bordados ,  miniaturas de objetos e uma escrita anárquica com nomes de pessoas reais ou imaginárias .  Assim se abriu  um mundo  variegado , sem dor , sem doença nem miséria , em miniatura ,  de tudo aquilo que seria apresentado a Deus no Dia do Juízo Final ( Seda , H .e Queiroz , M.V . , 1981 ) .
O “ Manto da Apresentação “ representa a obra mais significativa de Arthur Bispo do Carmo , um fardão com o nome de pessoas importantes para que não houvesse esquecimento por ocasião do Juízo Final . O original  artista  não permitia a transação comercial de qualquer de suas  obras . Mesmo para exposições Arthur Bispo  mostrava incomum  resistência na cessão de seus trabalhos . Como norma  nestas ocasiões “ recomendava juízo para suas obras ao se exporem para os outros “  .
Aquele que se  dispusesse  penetrar no labirinto do mundo de Arthur , na Colônia  Juliano Moreira ,  teria de responder , de forma correta a uma simples  indagação :  “ De que cor você vê a minha aura ? “ . A partir de então ficavam  franqueadas as portas  do mundo delirante do artista  . Quando perguntado se iria se transformar em Jesus  Cristo  , Arthur respondia resoluto : “ Não vou me transformar não , rapaz , você está falando com ele “ .
Arthur Bispo do Carmo partiu para um encontro com Deus no dia 5 de julho de 1989 , contando com 80 anos de idade , vitimado por um infarto do miocárdio , na Colônia Juliano Moreira . Arthur não seguiu para o Divino com  o seu “ Manto  da  Apresentação “ , mas  , certamente , na cabeça  carregou consigo tudo o que planejara em vida  para mostrar a todos naquele verdadeiro e perene  paraíso  .

domingo, 12 de julho de 2015

PADRE ANTÔNIO  TOMÁS ,  POETA MISANTROPO
Perfil de um  Misantropo :
“ Vivendo  entre os humildes e os pequenos / sempre evitei o rico e o poderoso / os meus sonhos de tímido e medroso / foram sempre modestos e serenos / nunca tive ambições de bens terrenos / nem desejo de nome ou posto honroso / nunca , em moço , aspirei do fausto o gozo / e agora , na velhice , muito menos / olho , sentindo n’alma horror profundo / para  os homens e as coisas deste mundo / como para uma eterna palhaçada / e sem cessar a doce paz bendigo / em que descanso , no seguro abrigo / da minha pequenez e do meu nada  “
Nascido em Acaraú  , no Ceará , a 14 de setembro de 1868 ,  Antônio Tomás Lourenço  , era filho de Gil Tomás Lourenço ( professor ) e de Francisca Laurinda da Frota . No vizinho município de Sobral tomou conhecimento dos idiomas Latim e  Francês . Migrou para a  capital do estado , Fortaleza , para estudar no Seminário da Prainha , onde se ordenou sacerdote em 1891 . Todo seu serviço  de pároco desenvolveu- se em pequenas comunidades interioranas como Trairi e Acaraú , com denodo e brilho ímpares .
Poeta espontâneo com pendor especial pelo soneto  ,  onde confeccionou cerca de uma centena , todos  de alto valor , e  imunes às intempéries do tempo e da distância .
A Morte de um Jangadeiro  :
“ Ao  sopro do terral abrindo a vela / na esteira azul das águas arrastada / segue veloz a intrépida jangada / entre os uivos do mar que se encapela / prudente , o jangadeiro se acautela / contra os mil acidentes de jornada / fazem – lhe , entanto , guerra encarniçada / o vento , a chuva , os raios , a procela / súbito , um raio o prostra e , furioso / da jangada o despeja na água escura / e , em brancos véus de espuma , o desditoso / envolve e traga a onda intumescida /  dando – lhe , assim , mortalha e sepultura / o mesmo mar que o pão lhe dera em vida “ .
Perfil de um  misantropo ; A morte de um jangadeiro ; Contrastes ; Eva ; Palhaço ; Judas ; No enterro de um anjinho ; todos sonetos lançados em jornais e revistas da época e que nunca foram enfeixados em um  livro , por conta da proibição pertinaz  do próprio poeta  .
Em 1924  ,  em concurso promovido pela revista “ Ceará Ilustrado “ , de Demócrito Rocha , sagrou –se Padre Antônio Tomás ,  Príncipe dos Poetas Cearenses . O poeta e educador Filgueiras Lima referia – se a Antônio Tomás como “ um uirapuru das plagas nordestinas , porque cantou no silêncio das campinas , mas , foi ouvido no Brasil inteiro “ .
Contraste  :
“ Quando partimos , no verdor dos anos / da vida pela estrada florescente / as esperanças vão conosco à frente / e vão ficando atrás os desenganos / rindo e cantando , céleres e ufanos / vamos marchando descuidosamente / eis que chega a velhice , de repente / desfazendo ilusões , matando enganos / então nós enxergamos claramente / como a existência é rápida e falaz / e vemos que sucede , exatamente / o contrário dos tempos de rapaz / os desencantos vão conosco à frente / e as esperanças vão conosco atrás “ .
Padre Antônio Tomás foi membro da Academia Cearense de Letras e , em 1919 , eleito sócio do Instituto Histórico  ,  Geográfico e Etnográfico do Ceará . Faleceu em Fortaleza em 16 de junho de 1941  ,  aos 72 anos , após prolongada enfermidade . Encontra – se sepultado na Igreja Matriz da cidade de Santana do  Acaraú , no Ceará .
Verso e  Reverso :
“  Essa mulher de face escaveirada/ que vês tremendo em ânsias de fadiga / estendendo a quem passa a mão mirrada / foi meretriz antes de ser mendiga / fugiu – lhe breve , nesta vida airada / da mocidade a doce quadra amiga / e chegou a ser velha e desgraçada / antes do tempo ... a tanto o vício obriga / ontem , do gozo e da volúpia ardente / fosse quem fosse , dava a qualquer hora / o seio branco e o lábio sorridente / e hoje – triste sina ! – embalde chora / pedindo esmola àquela mesma gente / que dos seus beijos se fartava outrora “ .






sexta-feira, 10 de julho de 2015


ANDREAS  VESALIUS  OU VESÁLIO  , FUNDADOR DA ANATOMIA MODERNA



Andreas Vesalius ( 1514 – 1564 ) , nasceu em Bruxelas , em 31 de dezembro de 1514 e morreu perto da ilha de Zante , na Grécia Ocidental . Sua mãe , Isabella Crabbe , era inglesa , e, seu pai , Andreas , boticário da corte do imperador habsburgo Carlos V . Vesalius descendia de uma grande linhagem de médicos originária de Wessel , daí a origem do sobrenome . Os Vesálio eram prósperos e possuíam uma invejável biblioteca , onde Andreas sorveu largos ensinamentos . Estudou medicina em Louvain ( Bélgica ) , em Paris e graduou – se em Pádua em 1537 , centros conservadores e impregnados com ensinamentos de Galeno ( 120 – 200 ) . Foi aluno de Johann Guinther de Andermach ( tradutor  da obra anatômica de Galeno ) e de Jacobus Sylvius ( inicialmente seu mestre e posteriormente , ferrenho oponente ) .
Vesálio desdenha de modo cruel a maneira de se ensinar anatomia então vigente nas universidades  : “ Esse deplorável desmembramento da arte de curar introduziu em nossas escolas o detestável procedimento , agora em moda , de que um homem deve se encarregar da dissecção do corpo humano e um outro de descrever suas partes . Os palestrantes ficam empoleirados no topo do púlpito como gralhas e grasnam arrogantemente sobre coisas que jamais experimentaram  ,  mas que decoraram dos livros dos outros , ou que , está descrito diante de seus olhos .( ... ) . Assim , tudo é ensinado erradamente , perdem – se dias em questões absurdas e , na confusão , oferece- se menos ao expectador do que um açougueiro em sua banca poderia ensinar a um médico “ .
Na Itália , Vesálio ensinou anatomia nas universidades de Pavia , Bolonha e Pisa . Indignado com as dissecções relaxadas e brutais realizadas por assistentes , introduziu novamente o importante e esquecido hábito de Mondino de Luzzi de realizar pessoalmente as demonstrações anatômicas . Conseguiu fazer sensação com algo tão prosaico quanto demonstrar o número igual de costelas no homem e na mulher .  O Gênese relatava que Eva nasceu de uma costela de Adão , dai o homem ter uma costela a menos que a mulher .
Em 1538 , Vesálio publicou o Tabula anatomicae sex ( Seis Lâminas Anatômicas ) com desenhos de Jan Stefan van Calcar . Em 1543 , aos 28 anos de idade , - semanas depois da publicação de “ De revolutionibus “ de Nicolau Copérnico – apareceu com a obra – prima “ De humani corporis fabrica libri septem ( Sete Livros sobre a Estrutura do Corpo Humano ) .
Ricamente impresso por Johannes Oporinus da Basileía , o livro representa um casamento da descrição objetiva com o novo realismo na arte , característico do final da Renascimento . A obra extensa de 690 páginas e 323  ilustrações  , escrita em latim , num estilo vivo e imperativo , provoca grande impacto . Afora o confronto com Galeno , Vesálio também bateu de frente com a autoridade quase infalível de Aristóteles : discordava que o coração fosse a sede da vida , da mente e das emoções . Atribuía essas funções ao sistema nervoso e , desde então , deu – se a discussão por encerrada . Vejamos  , com piedade , a imprecação de um “ cão raivoso “ , ninguém menos que seu outrora professor Jabobus Sylvius , contra a figura do anatomista flamengo : “ Imploro a Sua Majestade imperial que puna severamente , como ele merece , esse monstro nascido e criado em sua própria casa , o pior exemplo da ignorância , ingratidão , arrogância e impiedade , que o suprima de tal modo que ele não possa envenenar o resto da Europa com sua respiração pestilenta . ( ... ) . Se esta hidra empinar uma nova  cabeça , destrua – a imediatamente ; arranque e esmague esta quimera de tamanho monstruoso , essa grosseira e embaralhada mistura de imundície e podridão , esse trabalho completamente indigno de nossa leitura atenta , e o entregue a Vulcano “ .
Sabe- se que Vesálio parou seus trabalhos de pesquisa após a publicação do livro “ fabrica “  , por conta dos inúmeros ataques injustamente sofridos . Também pudera ! . Mas sua reputação crescera o suficiente para lhe valer o cargo de médico da corte de Carlos V e do filho deste último , o rei espanhol Felipe II .
Vesálio fez uma peregrinação , não se sabe a troco de que  , a Chipre e Jerusalém . Conta – se que , na viagem de volta , Vesálio adoeceu ( provável febre tifoide ) e morreu próximo a ilha de Zante , perto do Peloponeso . Consta que suas últimas palavras , banhadas em humildade , foram : “ Posso não ter feito nada mais digno de mérito do que dar nova descrição de todo o corpo humano , do qual ninguém compreendia a anatomia “ .

quarta-feira, 8 de julho de 2015

MIGUEL SERVETUS  , UM MARTIR DA MEDICINA

Miguel Servetus ( 1511 – 1553 ) : médico , teólogo , filósofo ,geógrafo ,astrônomo e astrólogo , nasceu em Villanueva de Sigena – Huesca , no norte da Espanha e foi queimado vivo em 1553, em Genebra , vítima da intolerância e do fanatismo religioso sob as ordens de Jean Calvino ( 1509 – 1564 ) . Este mandou para a fogueira cerca de 500 pessoas  , igualando – se em crueldade a torpe figura do dominicano Tomás de Torquemada ( 1420 – 1498 ) , inquisidor – mor da Inquisição Católica .
Cumpre salientar que Miguel Servetus representa o único dissidente religioso que foi queimado   duplamente , vivo ,  pelos protestantes e em boneco ,  pelos católicos . Um pouco depois   , teria a mesma sina , Giordano Bruno ( 1550 – 1600 ) , filósofo italiano que combateu a escolástica e o aristotelismo .
De origem nobre  , Servetus era filho de Antón Servetus Meler e de Catalina Conesa . Educado inicialmente em Sigena , posteriormente se formaria no Castelo de Montearagón de Huesca , onde ampliaria seus conhecimentos em línguas clássicas ( latim , grego e hebreu ) , história , geografia , matemática e religião . Toulouse  , Paris e Lyon foram outros pontos de referência para seus estudos ao longo de sua curta vida . Estudou leis na França e na Suíça e  , depois medicina em Paris .
Espírito irrequieto  , combativo , devotado a questões transcendentais de natureza religiosa e filosófica , viveu em meio a querelas advindas da Reforma liderada por Martinho Lutero e Jean Calvino .
Durante sua curta jornada terreal  , Miguel Servetus dedicou- se à exegese da Bíblia e pregava a volta de um cristianismo “ puro “ , tal como fora ensinado por Jesus Cristo . Um dos dogmas da Igreja por ele contestado  , e que o fez cair em desgraça , foi a da Santíssima Trindade . As suas ideias conseguiram desagradar tanto a católicos como a  protestantes .
O interesse de Servetus pela circulação pulmonar tem como provável motivo algumas passagens da Bíblia  : “  A alma da carne é o sangue “ ( Lev. 17.11 ) . No Livro dos Salmos ( 104 .29 ) , por sua vez , a importância da respiração para a manutenção da vida é ressaltada nas seguintes palavras : “ Se lhes tira a respiração , morrem , e voltam para o seu pó “  . Estas passagens bíblicas induziram Servetus estudar a circulação pulmonar, onde o sangue e o ar se misturam .  No seu entender  , o conhecimento da dita circulação conduziria a uma melhor compreensão da natureza da alma humana .
A sua descoberta da circulação pulmonar foi divulgada em um livro intitulado Christianismi Restitutio , que foi considerado herético , seguindo – se seu confisco e incineração . Salvaram – se , milagrosamente , apenas 3 exemplares , um dos quais se encontra em Paris , outro em Viena e outro em Edimburgo . Sabe – se que em locais onde livros são levados à  fogueira , seus autores terminam tendo o mesmo doloroso destino .
Servetus , com seu mestre , o frade e sábio espanhol Juan de Quintana , assistiu a coroação do Imperador Carlos V , quando se mostrou perplexo com a ostentação da corte papal . A partir de então  , sustentou diversas polêmicas sobre teologia com os dirigentes da Reforma em Lyon , em Genebra , em Basiléia e em Estraburgo .
Acusado de heresia  , Servetus foi preso e julgado em Lyon , na França . Conseguiu evadir – se da prisão e quando se dirigia para a Itália  , através da Suíça  , foi novamente preso em Genebra . Julgado e condenado a morrer na  fogueira , por decisão de um tribunal eclesiástico sob direção de Jean Calvino . A sentença foi cumprida em Champel , nas proximidades de Genebra , no dia 27 de outubro de 1553 . Colocaram  em sua cabeça uma coroa de juncos embebida em enxofre e queimaram – no vivo em fogo lento com requintes de crueldade e sadismo ( Rezende , J.M.) . Em pleno século XXI ainda se assiste a hediondos crimes motivados por “ delitos de opiniões “ na área de crenças religiosas .

domingo, 5 de julho de 2015

ISMAEL SILVA / PRETO NO BRANCO

Para Martinho Rodrigues , Poeta .
1905  .  Aos 26 anos de  idade , o físico alemão Albert Einstein publica sua Teoria da Relatividade Restrita  e aqui em Pindorama , institucionaliza – se o famigerado Jogo do Bicho .  O mundo abre suas portas para  Milton de Oliveira Ismael da Silva  , em Jurujuba  , Niterói . O pai  , Benjamim , cozinheiro de um hospital e a  mãe , Emília ,  doméstica .  Ismael vive uma pobre infância  sem  colorido  . Aos sete  anos , por determinação própria procura  a diretora de um colégio , nos arredores ,  e manda bala  :  “ Tenho fome de saber e quero estudar “ . Perplexa  , a mestra  satisfaz os desejos do destemido   garoto ,  que de pronto  se torna   destaque  de turma . Ao concluir  o curso  ginasial , aos 18 anos de idade , Ismael , recebe o batismo de boêmio no bairro do Estácio  , no Rio de Janeiro , berço de figuras da orgia  como , Cartola , Noel Rosa , Almirante  , Pixinguinha  , Assis Valente , Ary Barroso e Francisco  Alves .  Apresenta - se Ismael  Silva  com o uniforme da gala do malandro do morro ,  sempre de paletó  e calça  brancas  , cabelo encaracolado  , com o penteado preso por brilhantina , trazendo de cobertura  um chapéu panamá ,  nos pés uns sapatos  brancos com o bico preto   e acariciando a cintura uma belicosa navalha .    
Segue abaixo  um  recado musicado  típico da época ,  do  malandro Ismael para sua dama    :
“  Se  você jurar que me tem amor
Eu posso me regenerar
Mas se é para  fingir ,  mulher
A orgia  assim não vou deixar
Muito tenho sofrido
Por minha lealdade
Agora estou sabido
Não vou atrás de amizade
A minha vida é boa
Não tenho em que  pensar
Por uma coisa  à –toa
Não vou me regenerar
A mulher é um jogo
Difícil de acertar
E o homem como um bobo
Não se cansa de jogar
O que posso fazer
É se você jurar
Arriscar a perder
Ou desta vez então   ganhar .
Ismael Silva elabora  a um só tempo letra e  melodia , que  emergem  dos lábios para as mãos em batuque , de vida breve  , posto que ,  logo empreendem fuga para a voz potente do cantor Francisco Alves , o Chico Viola  . Na  desigual   “ parceria “ com Chico Viola ,  Ismael entrega pepitas de ouro ao cantor e recebe  em troca  , depois de muito esforço , poucas  patacas de cobre . Há   , para piorar  , o crescente incômodo  nos shows  de Francisco Alves , que assim o  anuncia   : “ Senhoras e senhores , lhes apresento meu parceiro Ismael Silva , um preto de alma branca “  . Gol contra de Chico  Viola .    A abolição da escravatura ( 1888 )  havia ocorrido fazia  pouco e o tema preconceito racial ainda era tratado  de forma tímida ou velada   .  Carecia   ainda codificar injúria racial e racismo .
A amizade com  um  outro  grande boêmio  , Noel Rosa , ajudou no distanciamento  da parasitária amizade  com Chico Viola . Um episódio  inesperado , contudo , azedou  a vida mansa de Ismael por conta de uma briga de  bar , onde um malandro do Estácio , Edu Motorneiro , foi atingido a tiros, não mortais ,  pelo até então  pacato cidadão  Ismael  Silva . Malandro que é malandro não desperdiça  tapa . Por conta  disto , o sambista  puxou dois anos de cadeia . Ao voltar a liberdade devido a  bom  comportamento ,  não mais pôde  encontrar  a santa figura de  Noel Rosa que fora  consumido pela peste branca ( tuberculose pulmonar )  e  nem Francisco Alves , este ,   amuado por ter sido preterido na parceria  por Noel  .  Sensível e  orgulhoso , Ismael  Silva refugiou- se em si mesmo , desaparecendo  de seu habitat , os  bares e boates do Estácio  .  Curtiu negros   tempos de  solidão ,  miséria e  desilusão .  Sua  única  fonte de  renda provinha de parcos e minguados direitos  autorais . Seu cartão de visitas era   : “  Ismael , poeta , sambista , preto  e pobre “ .
O resgate  , por fim , apresentou- se   lá pelas bandas dos anos 50 ,   com uma música sua gravada por Alcides Gerardi  , “ Antonico “ :

Ô Antonico
Vou lhe pedir um favor
Que só depende da sua boa vontade
É necessário  uma viração pro Nestor
Que está vivendo em grande dificuldade
Ele é aquele que na escola de samba
Toca  cuíca , toca surdo e tamborim
Faça por ele como se fosse por mim
Até muamba já fizeram  pro rapaz
Porque no samba ninguém faz o que ele faz
Mas hei de vê – lo muito  bem , se Deus quiser
E agradeço pelo que você  fizer ...
O tal  Nestor da música era  Ismael em pessoa   . O pedido a  Antonico  fora solicitado há tempos  por Noel Rosa ,  penalizado pela condição precária  do aludido  sambista .
Em 1960 Ismael Silva foi agraciado com dois  títulos : Cidadão Samba  e Carioca Honorário . Em 1972 por ocasião de seu aniversário  , recebe   um bilhete e de contra – peso ,   um cheque de alto valor . Passou vários dias exibindo o troféu a  amigos , mesmo precisando da grana . Remetente  : Chico Buarque de Holanda .  “  Ismael , você está cansado de saber da minha admiração pelos seus sambas . Você sabe o quanto lhe devo por toda sua obra . Segue um presente pelo seu aniversário . É muito menos do que você merece . Um grande abraço , de coração “ . O dinheiro do Chico provinha de um prêmio obtido em um dos muitos  festivais , comuns à época .
Em 14 de março de 1978  , Ismael foi colhido  um fulminante infarto do miocárdio . Seu sepultamento deu – se  no Cemitério do Catumbi  no Rio de Janeiro .
PS  :  Quanto ao brumoso  véu da discriminação levantado no relato acima -   “  um preto de alma branca “ -  , causa-nos profunda dor  assistir hoje  a  verdadeiros embates midiáticos , onde “ Patrícias “ e Aranhas”  literalmente  se matam por desrespeitarem  os princípios básicos da convivência entre irmãos  . Bobagem ! . Somos apenas    Homo sapiens sapiens  demens , nem homens nem mulheres ,  nem brancos nem pretos , nem garotos  nem velhos , nem magros nem gordos  , nem feios nem bonitos , nem ricos nem pobres ;   aquilo que  de mais  belo  possuímos , nossa real fortuna ,  encontra – se  não à flor da pele , mas   “ por baixo dos panos “  onde a essência , a seiva  que nos move , alimenta  e vivifica , está bem ali ,   naquele tênue sopro divino : O  AMOR .  É  isto que  nos torna humanos  .