domingo, 24 de setembro de 2017

MAIS UM MADRIGAL


O acanhado Bar do Souza, instalado rente ao muro lateral do Cemitério São João Batista, em Fortaleza, acolhia, na década de 60, um pequeno grupo de boêmios – Chico Barrão, Carlinhos do seu Misael e Luizinho - que em meio a rodadas de Cuba Libre, fazia gemer, plangente, um pinho adocicando cantigas de amor. Vigorava a época de ouro do rádio onde despontavam figuras exponenciais como, Francisco Alves, Carlos Galhardo, Sílvio Caldas, Orlando Silva e Nelson Gonçalves. Quando o rosto redondo da lua avultava o pleno domínio da noite, espargindo o embornal cheio de prata sobre a superfície terreal, um integrante daquele grupo de notívagos, lança um repto: saltar o muro baixo do vizinho Campo-Santo e fazer um madrigal no jazigo de uma jovem que há pouco ali chegara, para “viver” o resto de seus dias e noites, sempre iguais, sem luzes nem trevas, rumo à poeira das estrelas neste intrigante multiverso.
O restante do grupo, numa cumplicidade muda, mandou um tímido olhar em direção ao cemitério. Um pinguço na mesa vizinha cortou o silêncio: - Topo na hora. Só preciso saber a história da moça recém-admitida naquele mundo de silêncio e paz, para ofertar a ela minha solidariedade.
Pois não. Era uma jovem de dezoito anos, morena, bem fornida de carnes, gostosa feito paçoca moída em mão de pilão, fatais olhos negros, tímida e sonhadora. Iniciara um idílio com um dos componentes daquele grupo de boêmios ali presente, nas missas de domingo à tarde na Igreja da Piedade. Durou pouco a aventura, por conta da intervenção dos pais da garota que não viam um futuro promissor para um rapaz cabeludo, taciturno, notívago e que tirava prosa com humildes empregadas domésticas do bairro de Joaquim Távora e adjacências.
A gentil garota depois de carpir um luto maneiro, engrenou novo romance, desta feita com um homem mais maduro e funcionário do Banco do Brasil, à época, um cobiçado partido. De novo rolou uma fita de curta metragem, como uma chanchada da Atlântida, pois logo descobriu-se que o dito galã era casado e pai de dois filhos menores. Uma verdadeira mala sem alça.
A família daquela musa juvenil providenciou sua transferência, incontinenti, para um colégio interno, dirigido por freiras francesas, em Petrópolis, longe do assédio dos abutres caboclos.
Na véspera da viagem, acertaram-se os derradeiros detalhes, tudo tim- tim por tim- tim, de mão beijada e aos pés da cruz ... A cativante donzela ficaria reclusa por três anos e depois voltaria, triunfante, às terras alencarinas para seguir seu fado. Era prego batido e ponta virada.
No dia da viagem para Petrópolis, a moça não acordou na hora aprazada, deixando o avião da FAB à sua espera no velho Aeroporto Pinto Martins. De casa, ela só se aluiu rumo ao Cemitério São João Batista, a despeito do alvoroço desesperado de seus pais a lhe beijarem dos pés à cabeça, implorando para que acordasse. Nada feito, pois o sono nos braços de Morfeu, induzido pela ingestão proposital de “ chumbinho” fizera o efeito desejado.
Era a confirmação da fria estatística mostrando a auto- agressão como segunda causa de morte entre jovens daquela idade. Mais uma tragédia anunciada sob as ordens de Cupido.
O primeiro namorado da jovem e o pinguço, saltaram o muro daquele Campo Santo, para, ao lado de flores perfumadas e jarros em desalinho, principiarem um madrigal, aquebrantando o tênue vidro da paz reinante naquele recanto sagrado:
“Noite alta, céu risonho/a quietude é quase um sonho/o luar cai sobre a mata/qual uma chuva de prata/de raríssimo esplendor/só tu dormes, não escutas, o teu cantor/revelando à lua airosa/a história dolorosa desse amor/lua/manda tua luz prateada /despertar a minha amada/quero matar os meus desejos/ sufocá-la com os meus beijos/canto/ e a mulher que eu amo tanto/ não escuta, está dormindo/ canto e por fim/nem a lua tem pena de mim/pois ao ver que quem te chama sou eu/ entre a neblina se escondeu/lá no alto a lua esquiva/está no céu tão pensativa/as estrelas tão serenas/qual dilúvio de falenas/andam tontas ao luar/todo o astral ficou silente/para escutar/o teu nome entre as endechas/e as dolorosas queixas ao luar”
Dali partiram os dois incautos transgressores, devidamente acompanhados de uma dama de vestido branco esvoaçante e dos pios de uma “ rasga- mortalha” bailando agourenta sobre suas cabeças ocas.
Composição musical “ Noite Cheia de Estrelas” de autoria de Cândido das Neves (1899-1943).

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