segunda-feira, 9 de março de 2015

Crestomatia - Estouro da Boiada

 O termo Crestomatia do grego  , khrestos , “ útil “ e mathein , “ saber “ , aplica – se a uma coletânea de textos literários destinados  ao ensino escorreito da língua pátria  . Em 1850 surgiu  uma Crestomatia Arcaica em Portugal ,  de autoria de Inocêncio Francisco da Silva , um calhamaço de 756 páginas  que logo tomaria ares de  um clássico .
 O insigne  professor  gaúcho Radagasio Taborda lançou em 1931 uma  Crestomatia que serviu nas três décadas seguintes aos alunos do ensino fundamental em escolas públicas e privadas da nação brasileira  . Hoje presta- se como uma  relíquia para bibliófilos e especialmente  para aqueles saudosistas  que sorveram suas  lições , às vezes , truncadas por palavras desconhecidas pelos petizes em seus primeiros contatos com clássicos da literatura brasileira e portuguesa  .
Para um bom início  , no lugar de prefácio ou prólogo na apresentação da distinta  obra , estampava-se  o estrambótico  “ Antilóquio “ , servindo de  batismo para os  alunos . A lição inicial “ O campônio e o passaredo “ assinalava como autor , Dom Antônio de Almeida Lustosa ( 1886 – 1974 )  , Arcebispo  da Arquidiocese  de Fortaleza ( 1941 – 1963 )  . Outras páginas da Crestomatia davam abrigo ao insigne  religioso e intelectual  . No  brasão de armas de Dom Antônio  consta : “ Guarda- me como a pupila dos olhos , esconde –me à sombra de tuas asas , longe dos ímpios que me oprimem , dos inimigos mortais que me cercam “ .  Tal gentil – homem encontra- se em seu repouso eterno na Catedral Metropolitana de  Fortaleza .
 Numa das passagens da Crestomatia  , Rui Barbosa ( 1849 – 1923)  , o grande jurista , jornalista , político , orador e diplomata baiano , discorre  , de forma elegante , sobre “ O estouro da boiada “ :
“  Já vistes o estouro da boiada ? . Vai o gado sua estrada mansamente , rota segura e limpa , chã e larga , batida e tranquila , ao tom monótono dos eias ! dos vaqueiros . Caem as patas no chão em bulha compassada . Na vaga doçura dos olhos dilatados , transluz a inconsciente resignação das alimárias , oscilantes as cabeças , pendentes à margem dos perigalhos , as aspas no ar em silva rasteira sobre o dorso da manada . Dir-se-ia a paciência em marcha abstrata de si mesma, ao tilintar dos chocalhos , em pachorrenta andadura , espertada automaticamente pela vara dos boiadeiros .Eis senão quando ,não se atina porque , a um acidente mínimo , um bicho inofensivo que passa a fugir , o grito de um pássaro na capoeira , estalido de uma rama no arvoredo , se sobressalta uma das reses ,  abala , desfecha a correr , e após ela se arremessa em doida arrancada , atropeladamente , o gado todo . Nada mais o reprime . Nem brados , nem aguilhadas o detêm , nem tropeços , voltas ou barrancos por davante . E lá vai , incessantemente , o pânico em desfilada , como se os demônios o tangessem , léguas e léguas , até que , exausto o alento ,esmorece e cessa afinal a carreira , como começou , pela cessação de seu impulso “ .
A descrição deste fenômeno da natureza que ocorre com  animais , de origem obscura , tem sido assunto para a pena de vários escritores como  Euclides da Cunha e João Ubaldo Ribeiro e logo , por analogia transpôs –se para a saga do bicho- homem . Os caminhantes tranquilos desenhando as veredas de uma  vida ,  podem  , súbito ,  por conta de uma gota d’agua saírem em disparada , derrubando obstáculos , agindo de forma grotesca e inconsciente , abrindo caminhos para implantar revoluções .O Brasil  atualmente  vive um grave  momento onde  Instituições da República como o Senado e a Câmara Federal perderam a sua credibilidade perante a sociedade civil em meio a graves indícios de desenfreada corrupção . Assim se evidencia de maneira clara um gatilho ou a gota d’agua que podem dar azo ao famigerado e imprevisível estouro da  boiada .  A se creditar que Deus seja brasileiro chegou a hora Dele  fazer as pazes com o Seu sofrido  povo  , caso contrário , uma  nova noite brumosa  irá se instalar por essas bandas , dando sequência  ao iniciante  estouro da boiada . Como sempre  , detecta – se o princípio do evento rumoroso ( a famigerada Lista Parlamentar de Janot ) , contudo , o epílogo do estouro da boiada  faz- se imprevisível mesmo ao olhar mais apurado  de experientes  futurólogos . Tomara que o braço da justiça alcance a tempo todos os tartufos dos podres poderes da nação  agonizante .
A natureza chora e ri lá fora neste domingo de bonança com Fortaleza banhada em tom cinza. Para bater  o centro seguem dois aperitivos maneiros da safra do compositor/ cantor / filósofo / místico  Zé  Ramalho  para amenizar este pesado  clima político  reinante :
“  Vocês que fazem parte dessa massa / que passa nos projetos do futuro / é duro tanto ter que caminhar / e dar muito mais do que receber / e ter que demonstrar sua coragem / à margem do que possa parecer / e ver que toda essa engrenagem / já sente a ferrugem lhe comer / ê , ô , ô , vida de gado / povo marcado / ê , povo feliz ! / lá fora faz um tempo confortável / a vigilância cuida do normal / os automóveis ouvem a noticia / os homens a publicam no jornal / e correm através da madrugada / a única velhice que chegou / demoram- se na beira da estrada / e passam a contar o que sobrou /  o povo foge da ignorância / apesar de viver tão perto dela / e sonham com melhores tempos idos / contemplam esta vida numa tela / esperam nova possibilidade / de verem esse mundo se acabar / a arca de Noé , o dirigível / não voam , nem se pode flutuar / “ .
“ Um país que crianças elimina / que não ouve o clamor dos esquecidos / onde nunca os humildes são ouvidos / e uma elite sem deus é que domina / que permite um estupro em cada esquina / e a certeza da dúvida infeliz / onde quem tem razão baixa a cerviz / e massacram – se o negro e a mulher / pode ser o país de quem quiser / mas não é com certeza o meu país / um país onde as leis são descartáveis / por ausência de códigos corretos / com quarenta milhões de analfabetos / e maior multidão de miseráveis / um país onde homens confiáveis / não tem voz, não tem vez , nem diretriz / mas corruptos tem voz e vez e bis / e o respaldo de estímulo incomum / pode ser o país de qualquer um / mas não é com certeza o meu país / um país que perdeu a identidade / sepultou o idioma português / aprendeu a falar pornofonês / aderindo à global vulgaridade / um país que não tem capacidade /de saber o que pensa e o que diz /que não pode esconder a cicatriz / de um povo de bem que vive mal / pode ser o país do carnaval / mas não é com certeza o meu país /um país que seus índios discrimina /e as ciências e as artes não respeita / um país que ainda morre de maleita / por atraso geral da medicina / um país onde escola não ensina / e hospital não dispõe de raio X / onde as gentes do morro é feliz / se tem água de chuva e luz do sol / pode ser o país do futebol / mas não é com certeza o meu país / um país que é doente e não se cura / quer ficar sempre no terceiro mundo / que do poço fatal chegou ao fundo /sem saber emergir da noite escura / um país que engoliu a compostura / atendendo a políticos sutis / que dividem o país em mil brasis / pra melhor assaltar de ponta a ponta / pode ser o país do faz- de- conta / mas não é com certeza o meu país / tô vendo tudo , tô vendo tudo / mas , fico calado , faz- de - conta que sou mudo “ .


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