quinta-feira, 5 de março de 2015

Elza e Garrincha, Uma Tempestade de Amor

“ Se há um deus que regula o futebol , esse deus é sobretudo irônico e farsante , e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos , nos estádios . Mas como é também um deus cruel , tirou do estonteante Garrincha a faculdade de perceber sua condição de agente divino . Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas . O pior é que as tristezas voltam , e não há outro Garrincha disponível . Precisa- se de um novo , que nos alimente o sonho .”     Carlos Drummond de Andrade .
Mané Garrincha  , o anjo das pernas tortas , a alegria do povo , um  “ Carlitos “ das canchas brasileiras , um herói dos gramados e  no mundo real um personagem  típico das tragédias gregas , daqueles que a vida abate como gado ,  sem dó nem piedade . O futebol em sua época representava pura  arte , um inocente lazer  onde a diversão se achava acima dos cifrões dos grandes  negócios . Hoje o esporte  bretão , amiúde , comandado por vampiros  , põe em campo jovens moicanos tatuados , desdentados , com pernas de vidros , a maltratar  a “ moça gorducha “ afeita a só saltitar com um afago generoso   e craques  esses , apenas  nas  perigosas baladas  da noite .  É a arte da guerra que engoliu o futebol –  arte para sempre .  Os times de agora se enfrentam em arenas idênticas as da Roma  Antiga , com torcidas  organizadas , um ninho de  verdugos que só se fartam com  o  “sangue dos manos “ . Decadência  pura e irreversível  ! .

Manoel Francisco dos Santos  , Mané Garrincha , veio ao mundo praticar peripécias no dia 28 de outubro de 1933 , no distrito de Pau Grande ,município de Macaé , no Rio de Janeiro . Filho de uma humilde família de 15 irmãos  . Teve estudo formal precário e  incompleto . Integrou aos 14 anos o elenco do time amador Esporte Clube Pau  Grande . Levado por um “ olheiro “ realizou testes no Botafogo de Futebol e Regatas fazendo de cara  umas graças com um marcador de grande porte , o zagueiro da seleção brasileira , Nilton Santos , um “ João “ de vergonha . Praticamente jogou sua vida inteira no clube da estrela solitária e no selecionado  brasileiro , onde sagrou-se campeão em 1956 ( na Suécia ) e bicampeão  em 1960 ( no México ) .  Cedo Garrincha casou-se com Nair que lhe  presenteou com 9 filhas . Em 1968 ajustou- se a um novo matrimônio  , desta feita  com a cantora  Elza Soares  . Do enlace apareceu  Garrinchinha , que veio a falecer com a idade de 9 anos ,  afogado em um  acidente automobilístico . Ulf Lindberg , nascido em 1959 , tem com  pai , Garrincha e como mãe , uma sueca , sendo  fruto de um fugaz relacionamento amoroso  ocorrido durante uma excursão  do Botafogo  por aquelas plagas .  Um outro filho de Garrincha faleceu em Portugal em 1992  , também de forma trágica em decorrência de um acidente automobilístico . Garrincha  envolveu- se em séria   encrenca por conta da morte de sua sogra , mãe de Nair , sua primeira esposa  num acidente em um  veículo dirigido por ele . Uma tragédia edipiana a perseguir o pobre  e genial atleta .
Um Garrincha com excesso de peso  , problemas crônicos no joelho , dependente de bebida alcoólica , sem um acompanhamento psicológico adequado foi  despencando  num  abismo medonho    , atuando  em clubes de menor expressão até finalizar como  um urso  de circo  sendo  mostrado em picadeiros mambembes . Num melancólico final de tarde chegou a vestir  o uniforme coral do Ferroviário Atlético Clube  ,  em Fortaleza , no vetusto  Estádio Presidente Vargas , num jogo caça- níquel , prostrado  com as mãos na cintura,  cabisbaixo caçando com os olhos tristes um passado glorioso que lhe fugira por entre as pernas tortas  e para sempre .
“ Sua ilusão entra em campo no estádio vazio / uma torcida de sonhos aplaude-o talvez / o velho atleta recorda as jogadas felizes / mata a saudade no peito driblando a emoção / hoje outros craques repetem as suas jogadas / ainda na rede balança seu último gol/ mas pela vida impedido  parou / e para sempre o jogo acabou / suas pernas cansadas correram pro nada / e o time do tempo ganhou / cadê você , cadê você , você passou / o que era doce , o que não era se acabou / cadê você , cadê você , você passou / no vídeo tape do sonho , a história gravou / ergue os seus braços e corre outra vez no gramado / vai tabelando o seu sonho e lembrando o passado / no campeonato da recordação faz distintivo do seu coração / que as jornadas da vida , são bolas de sonho / que o craque do tempo , chutou .”
Elza da Conceição Soares nasceu em 23 de junho de  1930 , na favela Moça bonita no Rio de Janeiro . Filha do operário Avelino Gomes Soares e da lavadeira Rosária Maria da  Conceição . Curtiu uma infância pobre  , mas  feliz de uma criança de morro , inclusive trabalhando cedo equilibrando latas d’água na cabeça . Aos 13 anos obrigada pelo pai contraiu matrimônio com um jogador de cartas de nome Alaúrdes  Soares  , dez anos mais velho que ela . Aos 14 anos de idade foi mãe de um menino que cedo morreu de desnutrição  . O segundo filho logo a seguir  também faleceu  pelo mesmo motivo : fome . Outros filhos em série foram colocados  pelo jovem casal  naquele mundo hostil e  pobre .
Aos 15 anos pesando menos de 40 quilos  , Elza  compareceu a um programa de auditório na Rádio Tupi , “  Calouros em Desfile “  , comandado pelo compositor Ary Barroso , aquele da “ Aquarela do Brasil “ . Ao ser chamada ao palco causou alvoroço aquela figura miúda e desnutrida  .
Ary : - O que você  veio fazer aqui ?
Elza  :  – Seu Ary , acho que aqui a gente canta , né ?
Ary : -  E quem disse que você canta ?
Elza : - Eu canto
E mandou ver  : “ Se quiser fumar , eu fumo , se quiser beber , eu bebo / não me interessa  mais a ninguém / se o meu passado foi lama / hoje quem me difama / viveu na lama também / comendo a mesma comida / bebendo a minha  bebida / respirando o mesmo ar / e hoje , por ciúme ou por despeito / acha – se com o direito de querer me humilhar / quem foste tu ?/ quem és tu ? / não és nada / se na vida fui errada /tu foste errado também/ se eu errei , se pequei / não importa / se a esta hora estou morta / pra mim , morreste também ! “
Ary  : -  De que planeta você veio , garota ?
Elza  : - Do planeta fome !
Ary  , boquiaberto  : - Senhoras e senhores , neste exato momento nasce uma estrela !
Elza  , radiante , retornou  para o seu barraco no morro , de taxi , com o dinheiro do prêmio maior do programa . Tirara  a primeira nota dez naquela vida de  aridez de  deserto .
Em  1958 , Alaúrdes sucumbiu a uma fulminante  tuberculose , a peste vestida de branco . A então jovem  viúva Elza deixa aos cuidados da mãe seus filhos e parte para cantar em boates e bares da noite afinando a voz para voos mais longos . O inicio do sucesso veio com a gravação de “ Se acaso você chegasse “ de Lupicínio Rodrigues .  Depois foram se sucedendo um sucesso após o  outro . Eram os tempos de bonança até que enfim batendo a sua  porta .
Elza e Garrincha viveram por mais de uma década um tempestuoso romance acompanhado pela mídia como uma tragédia novelesca  . Por esta época as glórias do  “ anjo das pernas  tortas “ já se perdiam no tempo . Em meio a sucessivas internações por problemas gerados pelo excesso de bebidas alcoólicas  , o jogo da vida  foi encerrado precocemente para o pobre Mané em 20 de janeiro de 1983 , aos  49 anos de  idade . Elza segue ainda hoje seu caminho sofrido “ cantando para não enlouquecer “ . Uma brava guerreira que perdeu sérios embates para a vida  mas ao fim tornou-se vitoriosa , como “ A grande dama da Música Popular Brasileira”  . Um exemplo de coragem e perseverança .

“  Sorri / quando a dor te torturar /e a saudade atormentar / os teus dias tristonhos , vazios / sorri / quando tudo terminar /quando nada mais restar /do teu sonho encantador / sorri / quando o sol perder a luz / e sentires uma cruz /nos teus ombros cansados , doridos / sorri / vai  mentindo a tua dor / e ao notar que tu sorris / todo mundo irá supor /  que és feliz “ .



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