quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Noel Rosa e Paula Nei, uma viagem ao país da boemia




   Mirrado, feio, franzino e muito machucado. Assim, adentrou de cabeça neste velho mundo de meu Deus, Noel Medeiros Rosa (1910 – 1937). O Dr. José Rodrigues de Graça Mello, obstetra, fora chamado para concluir um trabalho de parto que já se arrastava havia horas. Lançou mão de um expediente heroico, a aplicação de um fórceps, um instrumento que representa o prolongamento das mãos do parteiro, mas que machuca o que pega e lacera por onde passa. Noel sofreria um afundamento do maxilar e uma severa paralisia facial. As marcas no plano físico ficariam indeléveis, mas o fatídico fórceps não alcançou, a bem da verdade, a parte intelectual do indigitado rebento. Local do evento: Rua Teodoro da Silva 130, Vila Isabel, Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 1910. Longe dali, em 1915, em Nova Jersey, nos Estados Unidos, um pimpolho pesando mais de 5 quilos, nasceu, também, sob o jugo de um fórceps e foi deixado largado, com morte aparente, em uma pia de cozinha. A criança sobreviveu com poucas sequelas e, depois, iria maravilhar o mundo com sua bela voz: era Frank Sinatra. Mas voltemos a Noel. Ao correr dos anos, seu defeito facial se acentuou, exigindo a realização de duas cirurgias que, contudo, não tiveram o resultado esperado. O apelido de “queixinho“ no colégio, estava na cara que seria colado em Noel. Afora pela dificuldade de ingerir alimentos sólidos, de resto, o menino teve uma infância normal. Por insistência dos pais, se aventurou numa Faculdade de Medicina, onde permaneceu por apenas dois anos, graças a Deus, donde partiu para o mundo da música e da boemia. Deixou um samba- anatômico “Coração“, horrível, por sinal, como Noel o batizou:

Coração , grande órgão propulsor/ distribuidor do sangue venoso e arterial / coração/ não és sentimental / mas , entretanto , dizem /que és o cofre da paixão / coração / não estás do lado esquerdo / nem tampouco do direito / ficas no centro do peito /eis a verdade /tu és pro bem do povo / o que a Casa de Correção é para o bem da humanidade /conheci um sujeito convencido / com mania de grandeza / e instinto de nobreza/que , por saber / que o sangue azul é nobre / gastou todo o seu cobre / sem pensar no seu futuro / não achando / quem lhe arrancasse as veias / onde corre o sangue impuro / viajou a procurar / de norte a sul /alguém que conseguisse encher – lhe as veias / com azul de metileno / pra ficar com o sangue azul .

   Noel Rosa compôs mais de 200 músicas, em mesas de bares e cabarés, algumas delas, imortais, abrangendo sambas dolentes e marchas carnavalescas, tais como:

Pierrô apaixonado: Um pierrô apaixonado / que vivia só cantando / por causa de uma colombina / acabou chorando , acabou chorando / a colombina entrou num botequim / bebeu ..bebeu .. saiu assim ...assim ../ dizendo “ pierrô cacete , vai tomar sorvete / com o arlequim/ um grande amor tem sempre um triste fim /com o pierrô aconteceu assim / levando esse grande chute / foi tomar vermute com amendoim .

Quem ri melhor: Pobre de quem já sofreu neste mundo / a dor de um amor profundo / eu vivo bem sem amar a ninguém /ser infeliz é sofrer por alguém/ zombo de quem sofre assim /quem me fez chorar / hoje chora por mim / quem ri melhor é quem ri no fim / felicidade / é o vil metal quem dá /honestidade / ninguém sabe onde está / acaba mal quem é ruim/ pois quem me fez chorar , hora chora por mim/ quem ri melhor é quem ri no fim .

As pastorinhas: A estrela d’alva / no céu desponta/ e a lua anda tonta / com tamanho esplendor / e as pastorinhas / pra consolo da lua / vão cantando na rua /lindos versos de amor / linda pequena / morena , da cor de Madalena / tu não tens pena / de mim / que ando tonto com o teu olhar / linda criança / tu não me sais da lembrança / meu coração não se cansa / de sempre e sempre te amar.

Fita amarela: Quando eu morrer / não quero choro nem vela / quero uma fita amarela / gravada com o nome dela /se existe alma / se há outra encarnação / eu queria que a mulata/ sapateasse no meu caixão / não quero flores / nem coroas com espinho/ só quero choro de flauta/ violão e cavaquinho /estou contente / consolado por saber / que as morenas tão formosas / a terá um dia vai comer / não tenho herdeiros /não possuo um só vintém / eu vivi devendo a todos /mas não paguei nada a ninguém / meus inimigos que hoje falam mal de mim /vão dizer que nunca viram / uma pessoa tão boa assim.

   Numa outra época, em 1877, um cearense de Aracati, Francisco de Paula Nei (1858- 1897), um belo poeta e boêmio, tentou a mesma façanha, enfrentar uma Faculdade de Medicina, com muita picardia. Deixou histórias hilariantes em sua breve passagem pela dita escola: Certa feita numa arguição de anatomia o lente queria saber quantos ossos tinha o crânio de um homem. Nei responde firme: “– Não me recordo, professor ... mas tenho – os todos aqui na cabeça“. Um outro exemplo, numa prova oral de anatomia: O professor assegura a Nei que faria uma só pergunta e se a resposta fosse correta, a prova pararia por aí. “– Sr. Nei, quantos fios de cabelo tem o senhor? A resposta: “– Duzentos e sessenta e cinco mil, oitocentos e noventa e quatro fios, professor “. “Mas como o Sr. Chegou a esta conclusão? “ . “Caro Mestre, lembre- se que o senhor falou numa só pergunta. Trato é trato “. Numa certa ocasião, Visconde de Saboia, um lente rigoroso, também cearense, deu a chance de Paula Nei discorrer sobre o assunto que lhe aprouvesse, numa arguição oral. Verbo fácil e ligeiro, o abusado aluno mandou o recado: “- Nos mares procelosos da ciência humana, às vezes, as mais lúcidas inteligências se debatem e vão ao fundo ... “. O Visconde, rigoroso, interrompe o verborreico discurso: “Oh! Sr . Nei, faça- me o favor de dizer, se a inteligência naufraga, o que será da ignorância? “ . O aluno fulmina à queima – roupa: “Essa boia, senhor Visconde, essa boia “. Ou seja, é Saboia, a santa ignorância! Impagável!
    Paula Nei aguentou o tranco até o quarto ano da faculdade de medicina e do mesmo modo que Noel Rosa caiu, de vez, na gandaia, nos braços das musas, trocando os bancos escolares por bancos de praças e de bares numa libação sem freios. Viveram pouco na extensão do tempo (Noel, 26 anos e Nei, 39 anos), mas, beberam muito do néctar da vida. Nei, mesmo no fastígio de sua glória de cometa, proclamava– e um cearense da gema e dizia: “Pelo Brasil sou capaz de morrer! pelo Ceará sou capaz de matar! Seu mais lembrado soneto: “Fortaleza“:

Ao longe , em brancas praias embalada / pelas ondas azuis dos verdes mares / A Fortaleza – loira desposada do sol / dormita , à sombra dos palmares /loira de sol e branca de luares / como uma hóstia de luz cristalizada / entre verbenas e jardins / pousada na brancura dos místicos altares / lá canta em cada ramo um passarinho / há pipilos de amor em cada ninho / na solidão dos verdes matagais / é minha terra ! A terra de Iracema / o decantado e esplêndido poema de alegria e beleza universais !
   Paula Nei e Noel Rosa, dois cometas que cintilaram, cada um a seu modo e a seu tempo, marcando a ferro e fogo a nossa rica história dos menestréis. Uma mostra de que “o intelectual deve cair como o sol, quando tramonta: ainda iluminando“. Manuel de Barros, até aqui ausente, e que bem sabe destas artes de orgia das palavras, completa:

“ A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei . / meu fado é o de não saber quase tudo / sobre o nada eu tenho profundidades / não tenho conexões com a realidade / poderoso para mim não é aquele que descobre ouro / para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias ( do mundo e das nossas ) , por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil/ fiquei emocionado/ sou fraco para elogios”.
Acabou!

Nenhum comentário:

Postar um comentário