sábado, 3 de janeiro de 2015

Mário Gomes: Poesta Descomunal, Um Adeus


“Eu, sem ser antropófago já saboreei muita gente por aí / minhas preferências são os esbeltos / violônicos corpos femininos : a mulher / ah! Se a humanidade toda fosse antropófaga / como eu teria o prazer de ser devorado / em um banquete ou bacanal de lindas garotas / sexys, histéricas, eróticas / e eu em cima de uma mesa qualquer totalmente nu / assado ou cozido / recheado de cebolas, tomates e farofas /enquanto Odete espetava um de meus esverdeados olhos / que outrora foram profanos / Judite arrancava minha língua e mastigava furiosamente / depois Maria Helena / pegava uma faquinha de mesa e cortava / delicadamente meu pênis ereto e dizia entre – dentes: -“como é gostoso esse Mário Gomes“.

   Agora é tarde, nosso poeta/menino/mendigo, Mário Gomes encantou–se de vez. De que adianta agora chorar o riso, rir e engolir a lágrima do poeta/ louco, largado em sua morada sem teto num banco, todo seu, na Praça do Ferreira, devorado que foi por uma águia a lhe bicar o fígado, feito um Prometeu pós–moderno que tivera a insana coragem de se apropriar de um carrilhão de versos, sob a guarda de encolerizados deuses lá do Olimpo.
   Agora é tarde para cobrar de autoridades governamentais um mínimo de cuidados a um cidadão especial que não tinha condições de se manter sozinho, pois não sabia mensurar o perigo de estar vivo. Para ele, sonho e realidade significavam o mesmo. Além do que passividade e omissão compõem uma regra quase infalível daqueles que mandam neste velho mundo–cão.

“Olhei o sol. / me irritei e larguei a mão na cara dele / no qual ele ficou desacordado por 12 horas ininterruptas / dei um ponta–pé nos ovos da terra / afastei São Jorge / e mantive relações sexuais com a lua / pisoteei o cadáver de satanás / numa esquina encontrei-me com Deus / e saímos abraçados: rindo e cantando... chovia“/.

   Mário Gomes (1947–2014): filho de pai motorista e mãe costureira, teve infância pobre num bairro da periferia de Fortaleza. É dele a descrição: “Minha casa é meu corpo, meu carro também. Moro dentro de meus sapatos, ora! Meu nome é pensamento“. Há relatos de que cedo na vida passou por vários internamentos em hospitais psiquiátricos, onde conviveu com fármacos e eletrochoque. E logo peregrinou pela cidade em companhia de boêmios, poetas, seres errantes e notívagos, sem nenhuma preocupação na esfera material. Quando necessitava algo, simplesmente pedia e tudo estava resolvido. Sócrates em Atenas assim agia e sempre dava certo. Se vivesse na Grécia Antiga seria, por certo, um companheiro ideal para Diógenes que habitava um tonel e perambulava com uma lanterna à luz do dia a procura de um homem.       
   Mas, o inquieto Mário cedo percebeu que uma habitação convencional representaria para ele  uma sufocante prisão. A Praça do Ferreira e o espaço Dragão do Mar acolheram amorosamente o poeta em sua breve existência terrena.

“Beijei a boca da noite / e engoli milhões de estrelas / fiquei iluminado / bebi toda a água do oceano / devorei as florestas / a humanidade ajoelhou-se a meus pés / pensando que era a hora do Juízo Final / apertei, com as mãos, a terra / derretendo–a / as aves em sua totalidade / voaram para o além/ os animais caíram do abismo espacial / dei uma gargalhada cínica / e fui descansar na primeira nuvem /que passava naquele dia / em que o sol me olhava assustadoramente / fui dormir o sono da eternidade / e me acordei mil anos depois / por detrás do Universo“ /

   Comenta-se à boca–miúda que por ocasião da necropsia do bardo da rua foi percebido que saíram a voejar do seu ventre aberto, um carrossel de rimas entremeados com coloridas borboletas e colibris. Mário, cabreiro, se deliciava com a cena observando elas sumirem por
entre as nuvens do divino. Chegou a parolar com uma borboleta retardatária mandando um recado para dois “Josés“ festeiros: Alcides Pinto e J. Albano, que em breve estaria chegando para seu perpétuo caminhar caçando rimas e prosas até para além do Universo.

“Quando eu morrer / irão distribuir minhas camisas / minhas calças , minhas meias , meus sapatos / as cuecas jogarão fora / ninguém usa cuecas de defunto / irão vasculhar minha gaveta / vão encontrar muita poesia / documentos e documentários / só sei dizer / que foi gostoso viver / sentir o amor e proteção de minha mãe / de conhecer meus irmãos , meus amigos / de ver de perto as mulheres / só posso deixar escrito: “obrigado vida!“.

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