sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Nara Leão, um romance popular (1981)

" Vocês já viram lá na mata a cantoria /da passarada quando vai anoitecer/ e já ouviram o canto triste da araponga / anunciando que na terra vai chover/ já experimentaram guabiraba bem madura / já viram a tarde quando vai anoitecer / e já sentiram das planícies orvalhadas / o cheiro doce da frutinha muçambô / pois meu amor tem um pouquinho disso tudo / e tem na boca a cor das penas do tiê / quando ele canta os passarinhos ficam mudos / sabe quem é o meu amor/ ele é você / ".

1981: Vivíamos em Pindorama, os estertores do Movimento Militar de 64. O General João Batista Figueiredo, um cavalariano folclórico, tentava ensaiar movimentos rumo a uma democracia. Um sério incidente contudo, ocorreu durante um show no Rio-Centro, quando um petardo explodiu no colo do governo, matando um sargento e ferindo gravemente um capitão. Um acidente de trabalho cabuloso. Em fortaleza, o Ferroviário ("aí é ferrim, meu filho") sagrou-se vice-campeão do estado com a seguinte equipe: Salvino, Jorge Henrique, Paulo César Piauí, Nilo e Roner; Meinha, Doca e Sima; Jangada, Paulo César Cascavel ("artilheiro veve de gol", sic) e Babá. O verdadeiro futebol cearense ainda existia, hoje, o fogo apagou, o fogo apagou!.

Nara Leão, um banquinho, dois joelhos e um violão, lançava um disco, Romance Popular, pela Philip , na companhia salutar de figuras do Norte / Nordeste como Fausto Nilo, Fagner, Robertinho de Recife, Capinam, Stelio Vale, Geraldo Azevedo, Clodô, Climério, Clécio e Ferreira Gullar. Jóias ficaram para sempre como "Penas do tiê" e "Traduzir-se".

" Uma parte de mim é todo mundo / outra parte é ninguém , fundo sem fundo / uma parte de mim é multidão / outra, estranheza  e solidão / uma parte de mim pesa , pondera / outra parte delira / uma parte de mim é permanente / outra parte se sabe de repente / uma parte de mim é só vertigem / outra parte , linguagem / traduzir-se uma parte na outra parte/ -que é questão de vida ou morte -/será arte?"

Nara Leão (1942- 1989) nasceu no dia 19 de Janeiro de 1942 em Vitória, no Espírito Santo, filha do advogado Jairo Leão e da professora Altina Lotufo Leão. Nara teve uma educação livre e emancipou-se aos 16 anos. Tornou-se uma adolescente problemática com direito a acompanhamento psicanalítico e tudo mais. Uma das broncas: Danuza, sua mana mais velha, bela, desinibida e famosa modelo. As duas capixabas abalavam os corações de muitos marmanjos sonhadores e ainda arranjavam tempo para lidar com pintura, violão e dança. Na casa delas reuniam-se figuras que ainda dariam muito o que falar, como Ronaldo Bôscoli, Luis Carlos Vinhas, Silvinha Teles, Dori Caymmi, incluindo Tom e Vinicius. Daí para o estrelato foi um pulo.  Em 1964, Nara fez sua estréia no espetáculo "Opinião" com músicas de protesto bem ao gosto da época, de Zé Keti e João do Vale.

" Podem me prender / podem me bater / podem até deixar-me sem comer/ que eu não mudo de opinião / daqui do morro eu não saio não / se não tem água , eu furo um poço / se não tem carne , eu compro osso / e ponho na sopa / e deixa andar / fale de mim quem quiser falar / aqui eu não pago aluguel/ se eu morrer amanhã / seu doutor / estou pertinho do céu " / .
" Acender as velas / já é profissão / quando não tem samba , tem desilusão / é mais um coração que deixa de bater / um anjo vai pro céu / Deus me perdoe / mas vou dizer / o doutor chegou tarde demais / porque no morro / não tem automóvel pra subir / não tem telefone pra chamar / e nem tem beleza pra ver / e a gente morre sem querer morrer" .

Em 1965 Nara estréia "Liberdade, Liberdade", novamente mexendo com os militares, e no ano seguinte, num jornal, "Diário de Notícias" aparece uma zangada manchete: "Nara é de opinião: esse Exercito não vale nada!"  Imaginem o estrago da bomba. O marechal Castelo Branco, cearense, da ala moderada, acossado por Costa e Silva, linha dura, era pressionado para enjaular a "leoa". O tempo fechou. O itabirano Carlos Drummond mandou um recado, pedido nos seguintes termos ao Marechal Castelo : " Meu honrado Marechal /dirigente da nação / venho fazer-lhe um apelo / não prenda Nara Leão / soube que Guerra , por conta / quer lhe dar uma lição / vai enquadra-lá -esta é forte - artigo tal ... Não sei não / a menina disse coisas/de causar extremeção / pois a voz de uma garota abala a revolução ? / Nara quis separar o civil do capitão ? / em nossa ordem social / lançar desagregação ? / será que ela tem na fala/ mais do que charme , canhão ? /ou pensam que , pelo nome / em vez de Nara é leão ? / se o general Costa e Silva / já nosso meio-chefão / tem pinta de boa- praça / por que tal irritação ? / ou foi alguém que , do contra / quis criar amolação ? / a seu Artur , inventando / este caso sem razão ? / que disse a mocinha , enfim / de inspirado pelo cão ? / que é pela paz e amor /e contra a destruição ? / deu seu palpite em política / favorável a eleição / de um bom paisano -isto é crime , acaso /de alta traição ? / e , depois , se não há preso político na ocasião /porque fazer da menina/uma única exceção ? / ah , marechal , compre um disco de Nara , tão doce , tão /meigamente brasileira /e remeta ao escalão / que , no palácio da Guerra /estuda de lei na mão /o que diz uma cantora /dentro da( ? ) constituição / ao ouvir que ela canta/ e penetra o coração / o que é música de embalo / em meio a tanta aflição . /o gabinete zangado / que fez um tarantantão / denunciando Narinha / mudava de opinião / de música precisamos / para pegar o rojão / para viver e sorrir /que não está mole não / Nara é pássaro , sabia? / e nem adianta prisão /para a voz , que pelos ares/espalha sua canção / meu ilustre general , dirigente da nação / não deixe , nem de brinquedo / que prendam Nara Leão " 

Ferreira Gullar, na ocasião, puxou uma peixeira com rima, em defesa de Nara: "Ter medo de Nara Leão não da pé / homem que se preza não tem medo de mulher / Nara , eu conheço ela / não mete mete medo a ninguém / ela apenas se comove / com as coisas que a vida tem / com certas coisas se espanta / e , se dá pé de cantar , canta / coisas más ou coisas boas/ ou do campo ou da cidade / são coisas da realidade/ e dos sonhos das pessoas / moço , não se meta / com essa tal Nara Leão / que ela anda armada / com uma flor e uma canção" .

Nos anos 60 e 70  Nara passeou sua inquietação por vários estilos musicais, sempre na vanguarda e amparada por um bom repertório. Quando a paz surgia, enfim, no horizonte com o retorno da democracia aqui no pedaço, um sério problema de saúde -um tumor no cérebro- abateu o canto leve e gostoso da musa da bossa nova que daqui partiu no dia 7 de junho de 1989, aos 47 anos, rumo as estrelas. Bela, meiga, dengosa, voz pequena bem colocada, com opinião própria e com muita, muita bossa!


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