quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Nei Lopes, malandro e doutor em leis



   Para Andrei e Vivi, Ex cordis.
“Abre as asas sobre mim / oh! senhora liberdade / eu fui condenado sem merecimento/ por um sentimento/ por uma paixão / violenta emoção / pois amar foi meu delito / mas foi um sonho tão bonito / hoje estou no fim/ senhora liberdade abre as asas sobre mim / não vou passar por inocente / mas já sofri terrivelmente / por caridade, oh! liberdade abre as asas sobre mim “.
   Nei Lopes se abriu ao mundo no Rio de Janeiro no ano de 1942. Sambista, compositor popular, escritor e Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faz parte de um grupo seleto de gente ligada a música popular brasileira que sentou em bancos acadêmicos na área de Direito como, Ary Barroso, Mário Lago, Vinícius de Moraes, Taiguara e Alceu Valença. A maioria dos citados, apenas advogou em mesas de bar, defendendo o livre direito da libação etílica em rodas de samba, num júri constituído por louras e morenas da cor de Madalena. Ponto para a Música Popular Brasileira (MPB) que deixou para servir à nobre casta forense, seres mais circunspectos e zelosos nos comezinhos princípios das leis romanas, ad infinitum. Cruz, credo! . Nei Lopes, com graça e esperteza, insere nas letras de suas músicas, o linguajar próprio dos juristas, incluindo as citações em latim, nem sempre coisa com coisa, tão ao agrado dos causídicos e insossos aos comuns dos mortais. Tudo isso dando abrigo ao drama humano no seu rico caleidoscópio como o da dama com o gentil nome de Felicidade:

“ Felicidade passou no vestibular / e agora , tá ruim de aturar / mudou – se pra Faculdade de Direito / e só fala com a gente de um jeito / cheio de preliminar ( é de amargar ) / casal abriu , ela diz que é divórcio / parceria é litisconsórcio / sacanagem é libidinagem e atentado ao pudor / só fala cheia de subterfúgios / nego morreu ela diz que é de cujus / não aguento mais essa Felicidade , doutor Defensor ( só mesmo um Desembargador ) / amigação pra ela é concubinato / vigarice é estelionato / caduquice de esclerosado é demência senil / sumiu na poeira, ela chama de ausente / não pagou a conta é inadimplente / ela diz , consultando o Código Civil / me pediu uma grana dizendo que era um contrato mútuo / comeu e bebeu e disse que é usufruto / e levou pra casa meu violão / meses depois que fez esse agravo ao meu instrumento ela então me disse , cheia de argumento / que o adquiriu por usucapião ( seu Defensor , não é mole não ) / tai minha procuração / e o documento que atesta minha humilde condição / requeira prontamente meu divórcio e uma pensão / e se ela não pagar / vai cantar samba na prisão“


  
Em “ Águia de Haia“, lembrando o célebre jurista baiano Rui Barbosa , Nei Lopes, evidencia sua origem afro e realça o sincretismo religioso sempre tão presente em nosso Brasil lindo e trigueiro. Uma autêntica gozação de toga e com traços similares ao “Samba do crioulo doido“ do famigerado Stanislaw Ponte Preta:

“ Saí do bar no rumo de Copacabana/ em pleno Campo de Santana recebi um santo / quem me viu disse que foi um espanto / que eu falei coisas meio um tanto ou quanto , sei lá /dizem que eu falava discursando / com um sotaque de baiano intelectual/ e de repente , sem ter dó nem piedade / eu entrei na Faculdade de Direito Nacional / data vênia , homo sapiens ! in vino veritas , liberta quae sera tamen ! dura lex sed lex ! ad libitum per capita , habeas corpus pro labore! 
   Na Faculdade escrevi regras e tratados / dei lições pro doutorado com muita ciência / só me chamaram de Vossa excelência / me convidaram pra livre docência , pois é / discursei três horas sem dar pausa / fui doutor honoris causa e quase fui reitor / porém no meio desta história gloriosa / o caboclo de Rui Barbosa de mim desincorporou / memento , homo , quia pulvis es et in pulverem reverteris ! curriculum vitae , delirium tremens ! consumatum est, persona non grata ! / eu que já era um mestre consagrado / fui então chamado de Doutor Bebum / de catedrático , eu passei a ser lunático / um caso psiquiátrico , um alcoólatra comum/ tudo isso culpa de um traçado / também fui misturar conhaque com rum / agora , quando eu passo , levo vaia / Águia de Haia , Rui Barbosa , Um – Sete – Um !
 E “Fidelidade partidária“, de Nei Lopes, um artigo tão raro nos dias republicanos de hoje: 
“Minha tia – avó Rosária, partideira centenária / perguntou pra mim: “meu neto, o que é fidelidade partidária? “ / pergunta assim tão sumária / tem que ter a necessária resposta / e eu respondo certo o que é fidelidade partidária / por verde – amarelo na indumentária / feijão com arroz na sua culinária / ajudar quem tem situação precária / não fazer acordo com a parte contrária / nem demagogia com a classe operária / gritar que tem gringo pintando na área / gostar de partido igual tia Rosária / isto é fidelidade partidária / rejeitar propina na conta bancária / não ter filial nem subsidiária / amar a patroa mais que a secretária / só fazer amor na sua faixa etária / mas dar uma força pras celibatárias/ que tenham bons dentes na arcada dentária / gostar de partido igual tia Rosária / isto é fidelidade partidária “.
 
    E para encerrar estes cantos tortos em temas adrede de Direito , segue “Errei, erramos“ do mineiro Ataulfo Alves , consagrado na voz de veludo de Orlando Silva :


“ Eu na verdade / indiretamente sou culpado da sua infelicidade / mas se eu for condenado / a tua consciência será meu advogado / mas evidentemente eu devia ser encarcerado / nas grades do seu coração / porque se sou um criminoso és também / nota bem / que estás na mesma infração / venho ao tribunal da minha consciência / como réu confesso / pedir clemência / o meu erro é bem humano / é um crime que não evitamos / esse princípio alguém jamais destrói / errei , erramos “ .

 
    Malandragem , ginga , jogo de cena , pilantragem , bico de ouro , mão leve , vadiagem , bom de queixo , ardiloso , mala sem alça , tudo isso que num cadinho representa a imensa variedade de características presentes em pessoas que habitam o nosso rico e vário cotidiano. Isto nos torna seres únicos e belos a despeito da profissão exercida com o fito de defender o pão nosso de cada dia. Ainda mais, tendo a picardia da música como fermento, faz – se a garantia da festa! In médio virtus!

Nenhum comentário:

Postar um comentário