quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015


 QUADRILÁTERO MÁGICO / UM MAR DE SAUDADES  
Rua Rodrigues Junior  , Rua Pero Coelho , Avenida Dom Manoel e Avenida  Heráclito Graça . Meu berço  , meu pequeno mundo , o mundo de minha infância e juventude . Com  limites bem  definidos , mágico pomar de lembranças de onde nunca saí mesmo rolando ao longo da vida na poeira de outros chãos . Lugar onde enterrei meu umbigo e tolamente pensei que não houvesse vida fora daquele  paraíso .Uma parteira me acolheu numa fria madrugada de janeiro ,  na sala de uma modesta casa na rua Rodrigues Junior 486 , vizinha a Mercearia do Sr. Cavalcante . Era o último rebento  de uma família de cinco criaturas  : Rita , Diana , Stela , Neto e Chico . Num castelo de tom amarelo  , defronte a minha residência ,  vivia  um  Rei , Luizão Primeiro e Único , da folia de momo . Em noites insones tive a glória de ser  embalado por gostosas  marchinhas carnavalescas que ficaram tatuadas  nas paredes de  minha memória  e que nem raspando com unha  desaparecem .  Na esquina da Rua Pero Coelho  , as irmãs balzaquianas , a horrível , a terrível, a sofrível e a incrível habitavam uma bela casa branca , não voavam em vassouras e pouca bola davam para os inconvenientes  vizinhos . Uma delas  , não sei qual , cedo da manhã  partia fardada , banhada em pó , rumo ao trabalho numa das raras empresas de aviação comercial existentes ( Real , Cruzeiro ou  Panair )  .  Colado a minha residência  um casal  sem filhos  , Sr. Ernani e D. Altair  gentilmente apresentaram – me às canções de Nelson Gonçalves , Orlando Silva , Dalva de Oliveira , Anísio Silva , Nat King Cole , Paul Anka  e outros .Compunham o insólito quadro  de figuras do bairro , um delegado de Polícia , o Senhor  Oliveira com o seu garboso cavalo, como um perfeito Roy Rogers , e uma  ranzinza idosa capitalista , Dona Francina , proprietária de muitos imóveis da área e mãe, por ironia do destino , de Aloísio ,um ateu e comunista , Cruz , Credo  ! . Já naquela época despontava uma embrionária  Esquerda Caviar nativa   com ojeriza ao trabalho , fumando charuto cubano , sorvendo o melhor vinho francês e citando Marx / Lenin que nunca leram , apenas como  um blefe para arengar com inocentes  não canhotos  . Pegar em armas e enxadas  ,  coisas de lúmpemproletariado ,   jamais ! . Ponto para o Barão de Itararé : “O trabalho foi coisa inventada por quem não tinha nada o  que fazer “ .
Junto a um bando de garotos arteiros desvendei  as delícias de um banho  pelado no Riacho Pajeú que ali perto serpenteava o chão farejando o  mar lá pelo poço das dragas  e nos ofertava carás e muçuns  em abundância  . Os Circos Nerino e Garcia pontuavam com frequência no areal próximo a Rua Pinto  Madeira com os impagáveis palhaços de “ bocas sujas “  ,  com os seus  acrobatas e malabaristas .
Revestiam – se de  uma pompa grandiosa as austeras e ricas procissões do Senhor Morto da Igreja Católica , na Sexta – Feira Santa  . Tal liturgia era carregada de todo um simbolismo  que   impressionavam àqueles que de terço na mão se comprimiam ao longo da Avenida Dom Manuel .  A Marcha Fúnebre de Chopin executada solenemente  pela Banda de Música da Polícia  Militar ,  acompanhada do rasgado seco das matracas nas mãos dos seminaristas da Prainha compunha um quadro que nos remetia a era medieval . Assim dolente seguia o cortejo  “ se arrastando que nem cobra pelo chão , as mulheres cantando tirando versos , os homens escutando , tirando o chapéu “  , como na canção de Gil . Neste dia as rádios apenas  tocavam músicas sacras, numa pungente tristeza  e as pensões alegres tinham suas portas  lacradas . A cidade literalmente parava  , modorrenta  e compungida .
 Num certo dia do ano de 1957 assisti numa Avenida Dom Manuel banhada em  bandeirinhas verde – amarelo  , sem entender a razão daquele alvoroço todo ,  a passagem de um comboio com um severo militar de óculos escuros  , à frente  , o Marechal do Ar Francisco Higino Craveiro Lopes  ( 1894 – 1964 ), Presidente de Portugal   , matando saudades de um pedaço do mundo  que outrora lhe pertencera e aos seus patrícios de além – mar .
Mais adiante  , ainda na Avenida Dom Manoel  , situava –se  o Colégio Castelo  Branco ,  da Arquidiocese de Fortaleza . Fundado em 1900 com o nome de Instituto Miguel Borges por Odorico Castelo  Branco , passou em 1921 a chamar –se Colégio Castelo Branco  após o falecimento de seu criador .  Plantado  num prédio horizontal  como uma incubadora  acadêmica  que deu origem a futuros parlamentares , médicos , agrônomos , juristas , jornalistas , dentistas e outras figuras importantes da sociedade cearense . Compunham aquela amorosa  família : Padre Jorgelito Cals de Oliveira ( diretor) , uma nobre criatura de Deus ,  responsável pelo colégio durante  45 anos ;  Padre Jonas Barros( professor de Latim ) , velho  mestre que verbalizava  uma sequência de “ nomes feios “ quando zangado ;  Padre Hortêncio ( professor de História ) , um gigante que levantava uma mesa grande a sua frente , quando se exaltava com alguma peraltice da turma ; Padre Gerardo( professor de Geografia ) , com as mãos no bolso e um cigarro morto no canto da boca , passeava na sala como um leão numa jaula ; Padre Jessé ( professor de Inglês ) ,cheio de manias ,como limpar a batina , de imediato ,ao ser tocado por alguém . Ao longo das veredas  , algumas das pesadas batinas negras e puídas  foram ficando pelo chão , trocadas pelo traje civil e pela constituição de uma família convencional .  O que importa  , queridos mestres , é que  vocês  estão eternizados como anjos em nossos corações de  crianças .
O plantel de  mestres leigos do Colégio Castelo Branco , vário e heterogêneo era exemplar : Professor Muller ( Francês ) , um urso branco gigante , bonachão e meio rude ; Professor Tarcísio ( Matemática ) portando um bigodinho ralo e uma didática meio enviesada ; Professor Iago ( Química ) , médico , míope , irmão de um folclórico árbitro de futebol  ; Professor Serra ( Matemática ) , médico , comunista perseguido pela “ Redentora “ , uma nobre  figura humana ; Professor Agnelo ( Desenho ) , pançudo , que gentilmente me encaminhou  para a diretoria em diversas  ocasiões ; Professor Eleutério Costa ( Matemática ) , grande mestre , grande homem ,  meu querido tio , que mostrando sua integridade impar , reprovou-me  , merecidamente , na primeira série ginasial ; Professor Américo ( Física ) um alegre gigante com excelente didática  ; Professor  Guilherme Ellery ( Matemática ) ,  de nobre estirpe , ex- aluno ,  iniciando a época  uma gloriosa caminhada acadêmica ; Professor Augusto ( Física ) , um craque na arte do ensino ; Professor Batista ( Biologia ) um menino – grande de muita sapiência ;  Professor Elisiário ( Moral e Cívica ) , jovem professor que depois seguiu carreira política ; Professor Wilson Viana ( Física ) , cheio de malabarismos adquiridos em prática de “ cursinhos “ ;  Professor Cid Paracampos ( Português)  um gentil mestre ; Professor Martinho ( Biologia ) , médico  , poeta e humanista , pérola de raro valor .   Não esqueci  , claro , do querido  bedel  Chiquinho , hoje um octogenário realizado ,  um verdadeiro pai para todos os alunos .
Um dia  , já meio distante , em comemoração ao centenário do dito colégio  ,   participei de uma reunião com antigos alunos   , em sua sede , numa tentativa derradeira  de resgatar aquele gigante que definhava a olhos vistos . Parti dali crente que chegara  o fim de uma jornada de  glórias , onde a arte de ensinar e formatar cidadãos íntegros , sem nenhum apelo  comercial não combinava com um mundo competitivo  já virado de ponta- cabeça . Que pena !
Nas esquinas da vida por onde pelejo  ao avistar caminhando em passos curtos um daqueles anjos , mestres  de outrora  , contrito  ,  rogo-lhes humildemente  perdão por não poder resgatar em vida a gigantesca dívida que tenho para com eles . Carrego-os contente  todos comigo bem junto ao peito .
“ ô leva eu , eu também quero ir / quando chego na ladeira tenho medo de cair / leva eu , minha saudade/ menina , tu não te lembras daquela tarde fagueira / tu te esqueces e eu me lembro / , ai, que saudade  matadeira / leva eu , minha saudade / na noite de São João / no terreiro , uma bacia / que é pra ver se para o ano / meu amor ainda me via / leva eu , minha saudade “ .
Quando passo por aquele  quadrilátero  mágico , com os olhos marejados , não mais encontro o Riacho Pajeú , soterrado que foi  pela ganância do bicho – homem , os antigos  palacetes e bangalôs servem agora , ridículos , a bares , lanchonetes e hotéis , nada restando daquela Fortaleza mimosa e ingênua de minha meninice . Quero de volta o impossível e nada posso  fazer , tendo a consciência  que cada idoso  sumindo nas trevas  corresponde a uma biblioteca consumida pelo fogo . Resta apenas um mar de  saudades ! .

Um comentário:

  1. Os mestres se imortalizam nas lembranças dos alunos. Os bons tempos da antiga Fortaleza se fazem hoje presentes em outras cidades menores, outras "Fortalezas" que irão carregar consigo os sonhos de muitos meninos que um dia estarão a também se reencontrar.

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