sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Noite Ilustrada e uma paixão platônica

 “ Boêmio , nos cabarés da cidade , buscas a felicidade / na tua própria ilusão / boêmio , a poesia resume / no vinho ,  amor e ciúme / perfume , desilusão / boêmio , ó sultão , por que é que queres / amar a tantas mulheres / se tens um só coração ? / boêmio , pensa na vida um instante / e vê que o amor inconstante / só traz por fim , solidão / boêmio , tu ficas na rua , em noite de lua / insone a cantar / na ilusão dos beijos viciosos / e dos carinhos pecaminosos /  boêmio , tu vives sonhando com a felicidade / mas não és feliz / vives boêmio sorrindo e cantando / mas o teu sofrer , o teu riso não diz “ .
Mário de Souza Marques Filho  , o Noite Ilustrada , nasceu em Pirapetinga  - Minas Gerais -  em 10 de abril de 1928 . Seus  pais , Mário e Alexandrina Maria viveram pouco tempo juntos . Deste modo o  garoto precisou  cedo  aprender vários ofícios na escola da vida  , como engraxate e entregador de leite , para prover sua sustentação . Partiu em seguida em direção ao Rio de Janeiro para sob as asas do pai tentar  algo  mais proveitoso   na dura vida . O humorista Zé Trindade  , um baixinho malandro cheio de tiques e mulherengo  , colocou o apelido no jovem Mário,  de “ Noite Ilustrada “ por conta de uma revista carioca da época . Nas décadas de  60 e 70 do século passado , o bom crioulo cantor e violonista  lançou muita música ao gosto de boêmios e notívagos sob a guarda  de autores como Paulo Vanzolini , Nelson Cavaquinho e  Ataulfo Alves .Em nossa Fortaleza bela e boêmia o artista se fez presente ao vivo em clubes , boates  e restaurantes , incluindo o Bar do Dozinho da Jia ao lado da Faculdade de Medicina da UFC .Ali pontuavam docentes , principalmente das disciplinas de Patologia e Medicina Preventiva , pérolas  do mais puro valor humanístico . Noite ilustrada faleceu em decorrência de um câncer de pulmão em Atibaia  , São Paulo ,  no dia 28 de julho de  2003 ,  aos 75 anos .
As frondosas e centenárias mangueiras do pátio da bucólica  Faculdade de Medicina da UFC nos idos de 60 do século XX serviam de ponto de partida para a fruição noturna maneira  em humildes bares da circunvizinhança  pela jovem estudantada  . O Bar do Coronel  situado no Bairro da Bela Vista dava abrigo a um grupo fiel de notívagos  diaristas . Um aprendiz de  doutor  , um tipo muito estranho ,  moreno claro , estatura mediana , cabelos longos  encaracolados  , costeletas exageradamente compridas , olhar triste , portando uma alma de passarinho e pouco afeito a conversa , fazia pouso com frequência  naquele humilde logradouro   . Chegava mudo e saia calado  , ocupando , invariavelmente ,  sempre a mesma mesa  , sorvendo a mesma caninha Colonial com um tira- gosto de torresmo  . Num  sobrado defronte ,  uma bela jovem de tez escura  iluminava  a  janela , pensativa , com um olhar enigmático  , lembrando uma  Gioconda  cabocla . Na vitrola Philco  do  bar , o grande “  Noite Ilustrada “ não dava vez a ninguém , com sua voz de veludo  alimentando  ilusões e massageando os corações  daqueles seres tristes e vadios .
“ Um dia você vai pensar direito / e vai procurar um jeito / para me pedir perdão / é bem melhor você pensar agora / antes de chegar a hora da nossa separação / eu já derramei um rio de lágrimas / muitas vezes chorei minhas mágoas / só porque eu  te amo demais / olha amor / dediquei a você minha vida inteirinha / dos meus sonhos de amor / fiz você a rainha / e você vem falando em separação / / olha amor /antes que seja tarde o arrependimento / eu não quero ouvir mil desculpas , lamento / porque tudo que fiz / foi para te fazer feliz “ .
Numa jornada noturna de magro movimento  , o Coronel já baixando as portas do bar , encurralou o aprendiz de doutor e boêmio iniciante , para uma sessão relâmpago  de catarse   . Aquele rude  homem , também ranzinza em palavras , verteu num  só fôlego um copo de fundo alto de  cana da boa   e escancarou  a tábua do  peito . Com uma mão trêmula apontou para a janela do  sobrado : ali brilhava  Florisbela , uma mulata  impoluta naquele retrato a óleo , seu bibelô de penteadeira  , que  tomara rumo incerto , com um maquinista da Estrada de Ferro , um dos seis restantes  torcedores do Ferroviário ,  deixando apenas no lugar  a saudade e o pobre Coronel em nocaute técnico  . Sobrara também  um cruzado de direita  no estômago do sonhador estudante de medicina  .Quer dizer que sua  pueril “ paquera “ com aquela escultura de ébano cheirando a pecado  era de brincadeira e resumia- se a uma tela de um pintor desconhecido cearense ? . Resumia – se a farsa a uma  ilusão de ótica produzida pelo efeito medonho do álcool  ? . Naquele pedaço de  noite desfez-se  em pó a  breve  paixão platônica do pobre  projeto de esculápio  que  ziguezagueando partiu sem rumo   até o centro da cidade , pois os ônibus da linha Rodolfo Teófilo já tinham sido recolhidos à garagem em vista do adiantado da hora . Além de queda , coice ! .
 O futuro  filho de Hipócrates  excluiu do seu roteiro noturno  o  Bar do Coronel  ,e  soube apenas por terceiros   que  as portas  do recinto foram abaixadas  .  Correram céleres  boatos  de que o indigitado Coronel    dera com os costados  no Hospital das Clínicas  Dr.  Walter Cantídio   buscando conserto  para uma avaria no  fígado em decorrência  de  excesso etílico e por conta da ingestão consciente   de Querosene Jacaré  , que quase finda em tragédia policial . O paciente  cumpriu  rigoroso regime com vistas a obter alforria e lépido  partir em busca de  sua ovelha tresmalhada , lá nos confins do sertão de Alagoas  . A boa- nova chegara pelo correio  : a radiante Florisbela do alto de sua majestade  dera as contas , sem aviso prévio , do folgado  maquinista  que saíra dos trilhos da fiel convivência e  com o acréscimo de uma  alegada  incompatibilidade de gênios . “ -  Sebo nas canelas” ,  meu   coronel , resgate sua valiosa  prenda  como um quixote alencarino  e  cuide da saúde reforçando o estoque de Xantinon  e de  catuaba  , homem de Deus , que seguro morreu de velho  ! .
   “ Chorei , não procurei esconder / todos viram , fingiram / pena de mim não precisava / ali onde eu chorei / qualquer um chorava / dar a volta por cima que eu dei / quero ver quem dava / um homem de moral não fica no chão / nem quer que mulher  lhe  venha  dar a mão / reconhece a queda e não desanima / levanta , sacode a poeira e dá a volta por cima .” 

 Uma  Maria – Fumaça lenta , sacolejante e soltando um estridente  grito em plena três horas da madrugada , se arrastando  em direção do Porto do Mucuripe  serve de aviso para os pombinhos Coronel e Florisbela entrelaçarem com mais força  as pernas naquela  branca rede de Jaguaruana ,  a lembrar que  o perigo continua a rondar aquele doce-  lar da Bela vista .

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