segunda-feira, 23 de abril de 2018

Um alpendre , uma rede, um açude
Para Ricardo Eleutério


"Claro que esses três são apenas os termos essenciais : o alpendre é o abrigo, a rede o repouso , o açude a garantia de água e vida. Mas fora isso, há os complementos- a casa, por exemplo . Fica a cavaleiro do alto é além do alpendre largo de três metros que dê uma boa rede atravessada, tem a sala ladrilhada de tijolos de barro vermelho, com a mesa e os tamboretes; a camarinha com o baú e a outra rede que a gente procura nas horas frias da madrugada; o corredor e a cozinha , com o fogão de terra ao canto, o pilão deitado e a cantareira dos potes bem fresca, posta na correnteza do ar.
À mão direita da casa o roçado - só uma garra de terra com quatro pés de milho e feijão para se ter o que comer verde. O chiqueiro da criação, com a sua dúzia de cabeças, entre cabras é ovelhas. Talvez uma vaca dando leite.
E o açude pequeno e fundo, ali ao pé, tão perto que não seja um esforço apanhar uma cabaça de água ou descer de casa para mergulhar e refrescar o corpo , nas horas de sol mais forte.
Um anzol pequeno de cará, um anzol maior de traíra, talvez uma espingardinha de chumbo para atirar num mergulhão ou numa marreca . O pau de matar cobra, o caco de enxada, o facão, a cuia de tirar leite.
Nada mais. Nem trabalho, nem ambição. Nem algodoal de colheita rica, nem pomar, nem curral cheio de gado fino. Nem baixio plantado de cana , nem engenho, nem alambique. Logo adiante do terreiro batido, o mato cresce por si, sem carecer de plantio nem limpa - Deus o faz nascer em janeiro e o próprio Deus o seca em julho.
Só a paz, o silêncio, a preguiça. O ar fino da manhã, o café ralo, a perspectiva do dia inteiro sem compromisso nem pressa. Vez por outra, um conhecido que chega conta as novidades, bebe um caneco d'água, ganha de novo a estrada.
Qualquer coisa enche a panela e o estômago, que o corpo quando dá pouco , pede pouco.
O esforço maior será mesmo o roçado, que é mister secar ao menos com uma ramada de garrancho espinhento, abrir as covas, plantar ao romper das primeiras chuvas, dar uma ou duas limpas de enxada antes de apanhar o feijão e quebrar o milho. Assim mesmo, se se atirar aqui e além umas sementes de melão, jerimum ou cabaça, a rama alastra entre as covas do legume e não deixa o mato crescer.
No mês janeiro rebenta verdinha a babugem do chão e as galinhas-d'angola semi-selvagens que moram no juazeiro do quintal começam a tirar suas ninhadas. Com o crescer das águas cresce o pasto, as cabras, as cabras e a vaca dão cria. Se o ano for de bom inverno, talvez então o açude sangre, e o peixe sobe em cardume pela cachoeirinha do sangradouro, tanto é tão desnorteado que até se pega com a mão. No mês de maio as moitas de mofumbo se abrem todas em flores amarelas e enchem o ar com seu cheiro doce de mimosa; em maio, também devem estar em flor as aguapés na tona do açude.
Em junho se quebra o milho e em julho é a floração dos pau-d'arcos; quase no mesmo tempo começa a murchar a rama. Em agosto o mato perde a folha, que em setembro já forma um tapete quebradiço e ininterrupto no chão.
Daí por diante, com a caatinga seca, o mato cor-de-cinza na terra cor-de-cinza, por baixo do sol limpo e azul, começa a grande paz do verão. Os bichos pastam o capim seco e vêm beber pacificamente, sempre no mesmo lugar e a horas certas. A rede do alpendre balança e refresca na hora do mormaço e recebe a gente no colo, maternalmente.
E embora aconteça que o verão se prolongue janeiro afora, não venha chuva, e o ano for péssimo - para isso mesmo ali está o açude com água para três anos. Ali estão os juazeiro, o pé de mandacaru para de tarde se dar rama à vaquinha e ao garrote. As cabras deixe estar que elas cuidam de si - as ovelhas é que talvez morram - mas que falta faz uma ovelha ?
O chão não se acaba - e afinal de contas só do chão precisa o homem - para sobre ele andar enquanto vivo, e no seu seio repousar, depois de morto "
Crônica da cearense Rachel de Queiroz ( 1910-2003) escrita em 23/8/1947.

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