quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

De Pernambuco para o mundo: frevo, poesia e lamento


“Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon / cadê seus blocos famosos / Blocos das Flores ,Andaluzas , Pirilampos , Apôs – Fum / dos carnavais saudosos / na alta madrugada / o coro entoava / o som da marcha - regresso / e era o sucesso dos tempos ideais / do velho Raul Moraes / adeus, adeus, minha gente / que já cantamos bastante / e Recife adormecia / ficava a sonhar / ao som da triste melodia /“.
Evocação número 1, de Nelson Ferreira.
E a lembrança me joga de cheio no colo macio de uma Fortaleza adolescendo, aí pelos anos 60, à luz fria da lua e à brisa suave dos verdes mares bravios de Alencar, que se aluía de sua pachorrenta quietude por ocasião do tríduo carnavalesco, sob a batuta do Rei–Momo Luizão Primeiro e Único. O quartel general da fuzarca situava-se num casarão encrustado no entroncamento das ruas Rodrigues Junior e Pero Coelho, defronte a minha residência, onde em muitas noites dormi embalado pelo som daquele frevo choroso: curtindo eu, uma alegria triste ou um melancólico folguedo carnavalesco. Desde então sempre associei um sentimento de uma tristeza atávica acrescida de uma falsa alegria em muitas músicas daquela época do ano (“confete, pedacinho colorido de saudade“). A folia inundava os salões dos clubes (Náutico, Ideal, Diários, Iate, Líbano, Maguari e Clube da Barra), o corso de veículos automotivos (com as famílias ricas, as não–ricas e as das damas das Pensões Alegres, Continental, Hollywood, Leila e Zé Tatá) e os desfiles de blocos, maracatus e cordões (Prova de Fogo, Cordão das Coca–Colas, Maracatus Ás de Paus, Espada, Ouro e Leão Coroado).
 “Quanto riso / oh! , quanta alegria / mais de mil palhaços no salão / arlequim está chorando pelo amor de colombina / no meio da multidão / foi bom te ver outra vez / está fazendo um ano / foi no carnaval que passou / eu sou aquele pierrô / que te abraçou / que te beijou , meu amor / naquela máscara negra que esconde teu rosto / eu quero matar a saudade / vou beijar – te agora / não me leve a mal hoje é carnaval “/. 
Os brincantes anônimos, “os papangus“, “a arraia–miúda“, tangidos dos bairros longínquos em bandos armados de serpentinas e confetes, tiravam sarro com todos. Uns poucos privilegiados exibiam como raros troféus, frascos de lança-perfumes (um dourado Rhodia ou um de vidro transparente oriundo da Argentina) por conta e graça de uns contrabandistas que irrigavam as praças e ruas da cidade com o belicoso artefato. O Samdu e a Assistência Municipal - nosso Palácio de Mercúrio Cromo - davam guarida àqueles foliões que se excediam nas libações impróprias em decorrência de arritmias cardíacas e coma etílico. Quem rápido se recuperava ainda ganhava um bônus para voltar à gandaia:
“ O Bloco da Vitória está na rua / desde que o dia raiou / venha minha gente / pro nosso cordão / que a hora da virada chegou , ô ô ô ô / quando o povo decide /cair na frevança / não há quem dê jeito / aguenta o rojão / fica sem comer / mas no fim , ei , tá tudo ok / neste carnaval / quá quá quá quá / o negócio é gargalhar / e com bate – bate de maracujá / a nossa vitória vamos festejar/“
O frevista pernambucano Nelson Ferreira além dos imortais “Evocação número um“ e “Bloco da Vitória“ elaborou a versão de um bolero, um queixume musical para mimar pombinhos em outras épocas do ano: “Nunca Jamais“, que muito rolou, na voz de Ângela Maria, “A Sapoti“, por essas paragens:
“ Nunca jamais / pensei em querer-te tanto / nunca jamais pensei em querer –te assim/ nunca jamais pensei em derramar meu pranto / por um amor , que nunca teria fim/ sei que te vais , te vais , porque já não me queres / mas pensa bem, porque me matarás / olha –me , mente –me , beija – me , mata –me se queres / porém não me deixes , não , não me deixes jamais / “ .
Outro pernambucano arretado, cantor, compositor, músico, dançarino e pesquisador de folclore, Antônio Nóbrega, por muito tempo será lembrado como um fenômeno renovador das reais tradições artísticas nordestinas:
“ Sou Pataxó / sou Xavante e Cariri / Yanomami /sou Tupi / Guarani , sou Carajá / sou Pancaruru / Carijó , Tupinajé / Potiguar , sou Caeté / Fulniô , Tupinambá / depois que os mares dividiram os continentes / quis ver terras diferentes / eu pensei : vou procurar / um mundo novo / lá depois do horizonte / levo a rede balançante / pra no sol me espreguiçar / eu atraquei / num porto muito seguro / céu azul , paz e ar puro / botei as pernas pro ar / logo sonhei / que estava no paraíso / onde nem era preciso / dormir para se sonhar / mas de repente / me acordei com a surpresa / uma esquadra portuguesa / veio na praia atracar / de grande – nau / um branco de barba escura / vestindo uma armadura / me apontou pra me pegar / e assustado/ dei um pulo da rede / pressenti a fome e a sede / eu pensei : vão me acabar / me levantei de borduna já na mão / aí , senti no coração / o Brasil vai começar /“.
Daí muitas voltas este velho mundo deu nas asas da história dos irmãos cara-pálidas e muito mais, ainda, dos europeus vencedores de fala enrolada. Pra amenizar a dor secular dessa raça triste dos trópicos, o coração leve e colorido de colibri do poeta Antônio Nóbrega, batendo num ritmo de frevo, fandango e galope nos presenteia com uma rara joia musical:
“Deixo os versos que escrevi/ as cantigas que cantei / cinco ou seis coisas que eu sei / e um milhão que eu esqueci / deixo este mundo daqui / selva com lei de cassino / vou renascer num menino / num país além do mar / licença , eu vou rodar / no carrossel do destino / enquanto eu puder viver / tudo que o coração sente / o tempo estará presente / passando sem resistir / na hora que eu for partir / para as nuvens do divino / que a viola seja o sino / tocando pra me guiar / licença que eu vou rodar / no carrossel do destino / romances e epopeias / me pedindo pra brotar / e eu tangendo devagar / a boiada das ideias / sempre em busca das colmeias / onde brota o mel mais fino / e um só verso , pequenino / mas que mereça ficar / licença que eu rodar / no carrossel do destino /“.
Quem no olhar tem cinza, tanto faz samba, marcha ou maracatu, pois tudo perpassa a mesma tristeza da vida, tristeza sem fim, até quando o lamento tem origem num Buarque, Chico, poeta maior, outrora unanimidade, e com avô pernambucano:
“Carnaval , desengano / deixei a dor em casa me esperando / e brinquei e gritei e fui vestido de rei / quarta – feira sempre desce o pano / carnaval , desengano / essa morena me deixou sonhando / mão na mão , pé no chão / e hoje nem lembra não / quarta – feira sempre desce o pano /era uma canção , um só cordão / e uma vontade de tomar a mão / de cada irmão pela cidade / no carnaval , esperança / que gente viva na lembrança / que gente triste possa entrar na dança / que gente grande saiba ser criança “/.

Nenhum comentário:

Postar um comentário