quarta-feira, 18 de março de 2020

Pedro Nava - Angústia
"Além da fome, da falta de remédio, de médicos, de tudo, as folhas noticiavam o número nunca visto de doentes e cifras pavorosas do obituário. As funerárias não davam vazão- havia falta de caixões. Até de madeiras para fabricá- los... Era muito defunto para poucos coveiros do trivial - assim mesmo desfalcados pela doença.
Era de ver as ruas vazias cortadas pelos rabecões e caminhões de cadáveres. Um ou outro passante andando como se estivesse fugindo e trazendo no rosto a expressão das figuras do quadro de Edvard Munch: Angst. Isto mesmo , angústia: faces de terror, crispações de pânico, vultos de luto correndo, pirando, dando o fora e, no fundo, um céu vangogue sangue ocre. Só que para quem viveu aqueles tempos - sua lembrança não vem com nenhuma cor viva como as daquela tela. Nenhuma tinta matinal, diazul, púrpura crepúsculo, prata luar - tudo é dum cinza pulverento , dum rosco podre, poente de chuva , saimento, marcha fúnebre, viscosidade , catarro".
Uma narrativa crua da Gripe Espanhola , causada pelo vírus Influenza , iniciada em 1918, responsável por cerca de trinta milhões de óbitos ao redor do mundo.
Autor da crônica: Pedro da Silva Nava ( 1903 - 1984 ) , médico, memorialista , poeta bissexto , nascido em Minas Gerais, filho do médico cearense José Pedro da Silva Nava , e com laços familiares com Bárbara de Alencar, Rachel de Queiroz e Antônio Sales.

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