sábado, 29 de outubro de 2016

O GATO E O PREDADOR

Para Rosali



“O gato. Se o gato fosse gente, seria Oscar Wilde... Displicente. Cético. Gozador. Um gato, se é angorá, gato de luxo, cor de chumbo, preto ou branco, como um arminho ou um pompom ; um gato, se é ordinário , parecido com uma jacutinga ou como um maracajá – um gato é sempre um boêmio nostálgico e sensual...

Na quentura de uma almofada de seda; com a cabeça entre as patas de veludo róseo, ou nos telhados, junto às chaminés, serenata à lua, o gato é a síntese da vagabundagem inteligente; o gozo sem sacrifício ; a vida sem os compêndios da moral; o amor do próprio bem estar; a despreocupação, quanto aos princípios de gratidão e gentilezas banais – a unha que arranha , quando o contrariam; a carícia que ele ama quando o aconchegam ; o abandono do afeto, quando este afeto importa no alienar o seu prazer . Foi isso tudo que deu ao gato aquele cantor que foi Baudelaire.

O gato é um requintado. E vivia tranquilo, porque não andando em bandos, nem perturbando a ordem pública, ficou livre (ao contrário do cachorro), das leis da polícia e das posturas municipais.

Epicurista; dormindo de dia e saindo de noite; andando cautelosamente pelos passeios das avenidas e praças; preferindo as alturas dos bangalôs e dos arranha- céus; fazendo das telhas das casas, os recintos de seus cabarés, gatas bailarinas e gatos tenores, nos delírios mais arrepiados do amor, contra o gato só existia a raiva dos neurastênicos, dos que se julgam lesados com o gozo alheio , seja dos gatos , seja de semelhantes racionais...

Mas veio o samba. E com o samba a cuíca. E para a cuíca, o malandro descobriu que o couro mais forte e mais harmonioso é o do gato. Assim são trágicas as caçadas noturnas nos arrabaldes e nos subúrbios da capital. O malandro anda pelos telhados e coradouros alçando laços de arame no enforcamento do simpático animal. Laçado o gato, fazem-lhe dois cortes nas patas dianteiras. Sopram-lhes os cortes com canudos de mamoeiro. E o gato, morto e cheio de vento  fica como uma bola . Então é só dar um talho reto da goela ao fim do ventre, e o couro sai todo. Dentro de oito dias é uma cuíca vibrando surda no samba de tão singular emoção.

Aquele couro facilmente retirado e posto ao sol, com a cinza do fogão que foi leito amável do animal encantador, continua a nostalgia do bicho trucidado que vem formar na melodia dos que se divertem, líricos como ele, e talvez nostálgicos também, tirando sons da barrica musical, sem pensar na matéria prima emocional , que era aquele companheiro contemplativo , e também cantor nas horas mortas , quanto o amor e o luar dos abajures fazem suas conspirações “

Texto retirado do livro “Samba: sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores “do poeta, jornalista, radialista, cronista, cantor e compositor Orestes Barbosa (1893 – 1966) publicado em 1933 pela Livraria Educadora do Rio de Janeiro . Na crônica o coração do poeta põe a nu o caráter anormal do maior bicho predador da natureza!

Orestes Barbosa construiu uma bela jornada nos campos do jornalismo, da poesia e da música popular brasileira. Deixou sete livros de crônicas; dois de poesia; um de ensaio ; dezenas de músicas , dentre elas a eterna “ Chão de Estrelas “ com a mimosa passagem “  A porta do barraco era sem trinco/ mas a lua furando nosso zinco / salpicava de estrelas o nosso chão / tu pisavas os astros distraída/ sem saber que a ventura desta vida / é a cabrocha , o luar e o violão “



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