quarta-feira, 24 de junho de 2020

Beijando cada Palavra
"Um leitor me fez, à máquina sob o pseudônimo de Aurélio, a mais curta das perguntas : "O Amigo reza ?"
Usou papel de carta e envelope. Mais ainda : a via postal.
Por que o meu interlocutor deseja saber se oro, se levanto a Deus meu espírito?
Se se lhe aguça a respeito a curiosidade, por que não pôs, na sua missiva, um endereço qualquer, para uma resposta particular ou sigilosa ?
De onde concluo que o seu desejo é provocar - me para algumas palavras nesta coluna em torno do assunto...
Rezo. E não me envergonho de dizê- lo . Pelo contrário: ufano - me até...
Rezo. Mas estou longe , bem longe de rezar como muitos rezam, isto é, em quantidade e qualidade desejáveis. Há quem não se canse de procurar a Deus , escolhendo a melhor parte. E há quem cansado , surrado, moído, quase incapacitado de rezar, assim mesmo ainda reza e se vale dos céus, numa peroração, num holocausto admirável, empolgante.
Há, por exemplo, Aurélio, no Leprosário Antônio Diogo, uma mulher extraordinária, que a doença derrubou, decepou, corroeu ao máximo, mas em quem a fé é uma labareda viva, capaz de aquecer, de longe, até mesmo a possível frieza religiosa do seu e do meu coração.
Essa mulher já não tem as mãos nem os dedos dos pés. Todo o seu rosto está desfigurado. Só possui, coitada , sensibilidade ou tato nos lábios. Pois bem. Sabe como ela reza o terço de Nossa Senhora?
Dependurando - o na boca, onde debulha conta por conta, num resmungo que vem do coração.
Isto , sim é que é rezar. Beijando cada Palavra!"
Excertos da crônica " Beijando cada Palavra " , que integra o livro " Minha Máquina, meu Piano " , 1989, da autoria de João Jacques Ferreira Lopes (1910 - 1999 ) , jornalista ,cronista , poeta, pintor, nascido em Fortaleza . Membro da Academia Cearense de Letras , onde ocupou a Cadeira 28, da Academia Cearense de Jornalismo , e da Academia Cearense de Retórica.

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