domingo, 24 de janeiro de 2016

O ICONOCLASTA MILLÔR FERNANDES

“ Às folhas tantas do livro de matemática, um quociente apaixonou- se um dia doidamente por uma incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável e viu-a, do ápice à base.
Uma figura ímpar olhos romboides, boca trapezoide, corpo octogonal, seios esferoides.
Fez da sua uma vida paralela a dela até que se encontraram no infinito.
“ Quem és tu? – indagou com ânsia radical.
“ Eu sou a (raiz quadrada da) soma dos quatros catetos, mas pode me chamar de hipotenusa “ .
E de falarem descobriram que eram o que, em aritmética, corresponde a almas irmãs, primos entre si.
E assim se amaram ao quadrado da velocidade da luz sexta potenciação traçando ao sabor do momento e da paixão retas, curvas, círculos e linhas senoidais.
Nos jardins da quarta dimensão, escandalizaram os ortodoxos das fórmulas Euclidianas e os exegetas do universo finito.
Romperam convenções Newtonianas e Pitagóricas e, enfim, resolveram se casar, construir um lar mais que um lar, uma perpendicular.
Convidaram os padrinhos: o poliedro e a bissetriz, e fizeram os planos, equações e diagramas para o futuro, sonhando com uma felicidade integral e diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones muito engraçadinhos e foram felizes até aquele dia em que tudo, afinal, vira monotonia.
Foi então que surgiu o máximo divisor comum, frequentador de círculos concêntricos viciosos, ofereceu-lhe, a ela, uma grandeza absoluta e reduziu-a a um denominador comum.
Ele, quociente percebeu que com ela não formava mais um todo, uma unidade.
Era o triângulo tanto chamado amoroso desse problema, ele era a fração mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a relatividade e tudo que era espúrio passou a ser moralidade, como, aliás, em qualquer Sociedade ... “.
Milton Viola Fernandes (1923- 2012), ou Millôr Fernandes, um ícone da cultura brasileira e um humanista com uma cética visão do mundo. Um ser múltiplo e genial: poeta, humorista, jornalista, artista plástico (4 exposições), escritor (36 livros), filósofo, teatrólogo (22 peças), ator e tradutor (60 peças).
Desde cedo na vida exerceu atividades laborais, começando aos 14 anos de idade na revista O Cruzeiro de Assis Chateaubriand. Viveu entre os grandes, e sempre mexeu com os poderosos de plantão. Destacou-se na imprensa em veículos como: Revista O Cruzeiro; Revista Veja; Revista IstoÉ; Jornal O Pasquim; Jornal O Dia ; e Jornal do Brasil, entre outros. Reuniu em sua volta figuras como Ziraldo, Jaguar, Stanislaw Ponte Preta, Paulo Francis, Tarso de Castro, Henfil, Luís Carlos Maciel, Fortuna e Sérgio Cabral.
Na vigência do Regime Militar (1964 – 1985) terçou armas em favor da liberdade de expressão com coragem, utilizando-se de sátira e ironia invulgares.
Certa feita, Millôr em um restaurante, recebeu áspero ataque verbal de um conhecido compositor, ícone da “esquerda- caviar“ que queria lançar uma garrafa de uísque naquele indigitado senhor de idade. Nenhuma voz se ergueu na ocasião para reprimir o ébrio compositor valente. Engraçado, diferente de hoje, quando até a Presidente da República saiu na defesa do mesmo agressor por ocasião de uma simplória discussão de bar, no mesmo Rio de Janeiro, fevereiro e março! Coisas de cegueira ideológica! Diria Millôr sobre o autor da covardia acima citada: “ – Eu desconfio de todo idealista que lucra com o seu ideal “.
Na sua estreia na Revista Veja no ano de 1968 escreveu:
“ E lá vou eu de novo, sem freios nem paraquedas. Saiam da frente, ou debaixo que, se não  estou radioativo , muito menos estou radiopassivo ...Já não se fazem Millôres como antigamente ! Nasci pequeno e cresci aos poucos. Primeiro me fizeram os meios e, depois as pontas. Só muito tarde cheguei aos extremos ... Fiz três revoluções, todas perdidas. a primeira contra Deus, e ele me venceu com um sórdido milagre . A segunda com o destino, e ele me bateu, deixando – me só com o seu pior enredo. A terceira contra mim mesmo, e a mim me consumi, e vim parar por aqui ...Creio que a terra é chata. Procuro não sê-lo . Nunca ninguém me ensinou a pensar, escrever ou a desenhar, coisa que se percebe facilmente, examinando qualquer dos meus trabalhos “.
Millôr deixou um rico acervo de livros, peças de teatro, desenhos que eternizam seu nome como um gênio da intelectualidade brasileira e um iconoclasta de valor.
“ Só uma coisa preenche tudo - o nada “,
“Só conheço um afrodisíaco – mulher “.
“ Quem não lê é mais analfabeto do que quem não sabe ler “.
“ O primeiro homem Deus fez do barro. A primeira mulher Deus fez de uma costela do homem . Só o terceiro ser humano foi feito em conjunto, pelo homem e pela mulher, usando o instrumento próprio no lugar adequado “.
“ Brasil, a prova de que geografia não é destino “.
“ Brasília prova; os países também se suicidam “.
“ Nas noites de Brasília, cheias de mordomia, todos os gastos são pardos “.
“ Cidadão, neste país em que não há qualquer cidadania, passou a significar só cidade grande “
“ Dinheiro não traz felicidade. Mas leva “.
“ Inflação – onde comem dois come um “.
“ O governo tem que acabar com esta inflação, custe o que custar “.
“ Hiperinflação – Estrutura econômica que ultrapassou os níveis negativos máximos estabelecidos por projeções tecnocráticas “.
“ Em Brasília não se chama mais ninguém de ladrão mas de pessoa movida pela ideologia da propina “ .
“ O diabo é que um presidente tem uma data de posse e uma data de saída e os problemas não respeitam cronologia “.
“ Nossos presidentes entram sempre pelo portão monumental da esperança, sentam no trono furta-cor da decepção, e saem pela porta suíça da corrupção.
Millôr Fernandes deixou órfão o Brasil lindo e trigueiro que tanto amou no dia 27 de março de 2012 aos 88 anos de idade. Seu epitáfio: “ Não contem mais comigo “.
Um Gênio! .

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