domingo, 3 de outubro de 2021

 Moça Com Flor Na Boca , de Airon Monte

Para o bibliófilo e pastor de almas , Francisco de Assis Júnior.
"A esta hora tardia em que escrevo, o dia de amanhã já se anuncia no melancólico cantar de um galo insone , exilado na cidade grande. Claro que o mundo não para enquanto dormimos. As coisas continuam acontecendo, seguindo seu próprio ritmo .
Quem sabe , em algum lugar , neste determinado momento, um bebê tenha acabado de nascer e a humanidade se engrandeceu mais um pouco, envolta no doce mistério da carne, como se nós todos milagrosamente ressurgíssemos do nada.
Na mesma escala do tempo, num botequim da periferia , compadre Raimundo matou compadre Francisco por causa se uma dose de cachaça pedida e recusada. Em uma cobertura luxuosa da Avenida Beira - Mar , um marido ( respeitável cidadão) espancou outra vez a mulher só porque ela abraçou e beijou um velho amigo de faculdade. Trancado no quarto, olhos fixos na tela do computador, o filho de 5 anos sente o ódio envenenando sua dolorosa meninice.
Já no centro da cidade, que jamais dorme , maus meninos de boas famílias ateiam fogo num mendigo bêbado, só para tornar a noite menos chata. Pela internet , um casal ainda jovem se ama por correspondência e usa nomes falsos e troca retratos fictícios.
Num sobradinho branco, janelinhas azuis recém- pintadas, à beira do mar , um homem e uma mulher celebram no altar de Vênus sob as bênçãos de Afrodite.
Num terreno baldio , uma criança é estuprada e morta pelo vendedor de picolés.
Na Praia de Iracema, as vendedoras de flores poetizam a noite sórdida. Dentro de um mesmo universo multifacetado, há, ao mesmo tempo, uma lua de mel , um velório de pai rico onde os filhos choram com advogado do lado e com firma reconhecida.
Ah , quantos dramas , quantas tragédias acontecendo agora enquanto escrevo, inclusive uma canção que se solta pelo ar , uma estrela cadente , uma nuvem esculpida caprichosamente pelo vento, um homem solitário recitando poemas de amor e seu coração gritando vida, meus olhos sonhando com a mágica visão de uma moça linda ,com um sorriso de jardim suspenso da Babilônia e , certamente , irremediavelmente com uma flor na boca , que o poeta colherá inevitavelmente, imune ao veneno de todos os espinhos ".
Crônica da autoria de Airton Monte , nascido na cidade de Fortaleza ( 1949 - 2012 ) . Médico formado pela Universidade Federal do Ceará. Poeta , cronista e contista . Um dos criadores do Grupo Siriará de Literatura.
Autor dos livros : O grande pânico ( 1979 ) ; Homem não chora ( 1981 ) ; Alba sanguínea ( 1983 ).
Pode ser uma imagem de 1 pessoa e óculos

Nenhum comentário:

Postar um comentário