“Eu ontem passei o dia / ouvindo
o que o mar dizia / choramos , rimos , cantamos / falou –me do seu destino / de
seu fado / depois para se alegrar / ergueu -se , e bailando , e rindo / pôs -
se a cantar /um canto molhado e lindo /o seu hálito perfuma /e o seu perfume
faz mal /deserto de águas sem fim/ ó sepultura da minha raça / quando me
guardas a mim ? / ele afastou- se calado / eu afastei- me mais triste / mais
doente , mais cansado / ao longe o sol na agonia / de roxo as águas
tingia / voz de mar misteriosa / voz do amor e da verdade /ó voz moribunda e
doce / da minha grande saudade / voz amarga de quem fica / trêmula voz de quem
parte / e os poetas a cantar / são ecos da voz do mar“. Antônio Botto.
Antônio Botto (1897 – 1959) poeta modernista
português costura um canto e lamento sobre o mistério deste deserto
de águas sem fim que de berço e sepultura serviu a muitos daqueles que com
o mar se envolveram. Aqui na Bahia de Todos os Santos, em Salvador, um compositor, instrumentista,
pintor e cantor, Dorival Caymmi, burilou pérolas musicais tendo, também, como
motivo o mar.
“O mar quando quebra na praia / é
bonito , é bonito / o mar ... pescador quando sai / nunca sabe se volta , nem
sabe se fica / quanta gente perdeu seus maridos , seus filhos / nas ondas do
mar / o mar quando quebra na praia / é bonito , é bonito / Pedro vivia da pesca
/ saia no barco / seis horas da tarde / só vinha na hora do sol raiar / todos
gostavam de Pedro / e mais do que todas / Rosinha da Chica / a mais bonitinha /
e a mais bem – feitinha / de todas as mocinhas do arraiá / Pedro saiu do seu
barco / seis horas da tarde / passou toda a noite / não veio na hora do sol
raiar / deram com o corpo de Pedro / jogado na praia / roído de peixe / sem
barco sem nada / num canto bem longe lá no arraiá / pobre Rosinha da Chica /
que era bonita / agora parece/ que endoideceu / vive na beira da praia /
olhando pras ondas / andando rondando / dizendo baixinho / morreu , morreu ,
morreu , oh .../
Este desaforo d’água com sal a engolir gente
de verdade que enfrenta suas procelas, fascina e mete medo, desde os
primórdios das eras e anuvia o coração dos poetas.
Dorival Caymmi, veio ao mundo em Salvador, em 30 de
abril de 1914. O pai descendente de italianos e portugueses e a mãe, de
portugueses e negros. Os dois primeiros irmãos de nasceram mortos (Hidelbrando
e Maria de Lourdes). A seguir veio Aderaldo, que antecedeu a Dorival. A
partir de então convencionou- se que todos os novos rebentos teriam a inicial do
nome, “D “de Deus. O menino Dorival cresceu em ambiente festeiro, posto que, o pai,
Durval, tocava piano, violão e bandolim e a mãe, Dona Sinhá, cantava. Motivo
era o que não faltava: Festa de Nosso Senhor dos Navegantes, Dia de Reis,
Festa do Bonfim, Santo Antônio, São João e São Pedro. Dorival aprendeu sozinho a
tocar violão e bandolim. No início da década de 30, Dorival deu início a
um contato amoroso com o mar em Itapuã. O conjunto musical “Três e Meio“ de
Dorival e amigos invadiu as rádios de Salvador, cantando sucessos de gente como
Chico Alves, Noel Rosa, Carmen Miranda e outros.
Em
1938 Dorival, como muitos faziam, partiu num Ita do Norte rumo ao Rio de janeiro,
o Eldorado dos artistas da música. Assis Valente, compositor e boêmio, seu
conterrâneo, e, Lamartine Babo, o Lalá, duas feras, apadrinharam o moço
carregado de canções praieiras e de muita brejeirice. “O que é que a
baiana tem? “Chegou, pediu licença e abafou indo para as telas do cinema
com a pequena / grande notável Carmen Miranda e o filme “Bananas da Terra “:
“ O que é que a baiana tem ?/ tem torço de
seda , tem ! tem brinco de ouro , tem! / corrente de ouro , tem! tem pano – da
– Costa , tem !/ tem bata rendada , tem ! pulseira de ouro , tem ! /tem saia
engomada , tem ! sandália enfeitada , tem !/ tem graça como ninguém/ como ela
requebra bem / quando você se requebrar , caia por cima de mim / só vai
ao Bonfim quem tem / um rosário de ouro , uma bolota assim/ quem não tem
balangandãs não vai ao Bonfim/ oi , não vai ao Bonfim / oi , não vai ao Bonfim
“ /
“ O samba da minha terra deixa a gente mole /
quando se canta todo mundo bole / quando se canta todo mundo bole / eu nasci
com o samba e no samba me criei / do danado do samba nunca me separei / quem
não gosta de samba bom sujeito não é / ou é ruim da cabeça ou doente do pé
“ /
Caymmi navegou de jangada e samburá pelas
praias da MPB em suas vertentes praieiras, fossa e Bossa Nova. Em todas
foi majestade.
“Só louco / amou como eu amei / só louco /
quis o bem que eu quis / oh! Insensato coração / por que me fizeste sofrer
/ por que de amor para entender / é preciso amar / porque / só louco“
“Não fazes favor nenhum / em gostar de alguém
/ nem eu , nem eu , nem eu / quem inventou o amor / não fui eu / não fui eu ,
não fui eu / não fui eu nem ninguém / o amor acontece na vida / estavas
desprevenida / e por acaso eu também / e como o acaso é importante querida / de
nossas vidas a vida / fez um brinquedo também “
“ Aconteceu um novo amor / que não podia
acontecer / não era hora de amar /agora o que vou fazer ? / não tem solução
este novo amor / um amor amais me tirou a paz / e eu que esperava /
nunca mais amar / não sei o que faço / com esse amor demais“
Três queixumes musicais a exigir
aconchego num barzinho às escuras, uma viola, um Martini Seco e, o principal, a
amada com os olhos cheios de devaneios e promessas eternas de perdão.
Dorival Caymmi contraiu matrimônio com
Stella Maris e teve três filhos, Danilo, Dori e Nana, todos com a genética
musical generosa dos pais. Um outro soteropolitano,
poeta/ músico / cantor fez um gracioso mimo ao seu querido mestre:
“ Dorival é impar / Dorival é par /Dorival é
terra / Dorival é mar / Dorival tá no pé / Dorival tá na mão /Dorival tá no céu
/ Dorival tá no chão / Dorival é belo / Dorival é bom/ Dorival é tudo / que
estiver no tom/ Dorival vai cantar / Dorival em CD / Dorival vai sambar /
Dorival na TV / Dorival é um Buda nagô / filho da casa real da inspiração /
como príncipe principiou / a nova idade de ouro da canção / mas um
dia Xangô / deu-lhe a iluminação /lá na beira do mar ( foi ? ) / na praia da
Armação ( foi não ) / lá no Jardim de Alá ( foi ? ) / lá no alto sertão ( foi
não ) / lá na mesa de um bar ( foi ? ) / dentro do coração / Dorival é Eva /
Dorival Adão / Dorival é lima / Dorival limão / Dorival é a mãe / Dorival é o
pai / Dorival é o peão / balança , mas não cai / Dorival é um monge chinês /
nascido na Roma negra , Salvador / se é que ele fez fortuna , ele a fez /
apostando tudo na carta do amor / ases , damas e reis / ele teve e passou (
iaiá ) / teve o mundo a seus pés ( ioiô ) / ele viu , nem ligou ( iaiá ) /
seguidores fieis ( ioiô ) / e ele se adiantou ( iaiá ) / só levou seus pincéis
( ioiô ) / a viola e uma flor / Dorival é lindo / desse que anda nu / que bebe
garapa / que come beiju / Dorival no Japão / Dorival samurai / Dorival é a nação
/ balança , mas não cai“
Um amoroso desenho de contrastes a bailar, de
Caymmi, sob a ótica do “bruxo“ Gil, enaltecendo “o nosso Buda, ocidental,
atual, transpreto e transreligioso“ que partiu para iluminar outras
gentes, outras mentes, em 16 de agosto de 2008, aos 94 anos, bem vividos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário