sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Caymmi: Um mar de sargarços e de saudades



“Eu  ontem passei o dia / ouvindo  o que o mar dizia / choramos , rimos , cantamos / falou –me do seu destino / de seu fado / depois para se alegrar / ergueu -se , e bailando , e rindo / pôs - se a cantar /um canto molhado e lindo /o seu hálito perfuma /e o seu perfume faz mal /deserto de águas sem fim/ ó sepultura da minha raça / quando me guardas a mim ? / ele afastou- se calado / eu afastei- me mais triste / mais doente ,  mais cansado / ao longe o sol na agonia / de roxo as águas tingia / voz de mar misteriosa / voz do amor e da verdade /ó voz moribunda e doce / da minha grande saudade / voz amarga de quem fica / trêmula voz de quem parte / e os poetas a cantar / são ecos da voz do mar“.  Antônio Botto.

   Antônio Botto (1897 – 1959) poeta modernista português costura um canto e lamento sobre o mistério deste deserto de águas sem fim que de berço e sepultura serviu a muitos daqueles que com o mar se envolveram. Aqui na Bahia de Todos os Santos, em Salvador, um compositor, instrumentista, pintor e cantor, Dorival Caymmi, burilou pérolas musicais tendo, também, como motivo o mar.

“O  mar quando quebra na praia / é bonito , é bonito / o mar ... pescador quando sai / nunca sabe se volta , nem sabe se fica / quanta gente perdeu seus maridos , seus filhos / nas ondas do mar / o mar quando quebra na praia / é bonito , é bonito / Pedro vivia da pesca / saia no barco / seis horas da tarde / só vinha na hora do sol raiar / todos gostavam de Pedro / e mais do que todas / Rosinha da Chica / a mais bonitinha / e a mais bem – feitinha / de todas as mocinhas do arraiá / Pedro saiu do seu barco / seis horas da tarde / passou toda a noite / não veio na hora do sol raiar / deram com o corpo de Pedro / jogado na praia / roído de peixe / sem barco sem nada / num canto bem longe lá no arraiá / pobre Rosinha da Chica / que era bonita / agora  parece/ que endoideceu / vive na beira da praia / olhando pras ondas / andando rondando / dizendo baixinho / morreu , morreu , morreu , oh .../

   Este desaforo d’água com sal a engolir gente de verdade que enfrenta suas procelas, fascina e mete medo, desde os primórdios das eras e anuvia o coração dos poetas.

   Dorival Caymmi, veio ao mundo em Salvador, em 30 de abril de 1914. O pai descendente de italianos e portugueses e a mãe, de portugueses e negros. Os dois primeiros irmãos de nasceram mortos (Hidelbrando e Maria de Lourdes). A seguir veio Aderaldo, que antecedeu a Dorival.  A partir de então convencionou- se que todos os novos rebentos teriam a inicial do nome, “D “de Deus. O menino Dorival cresceu em ambiente festeiro, posto que, o pai, Durval, tocava piano, violão e bandolim e a mãe, Dona Sinhá, cantava. Motivo era o que não faltava: Festa de Nosso Senhor dos Navegantes, Dia de Reis, Festa do Bonfim, Santo Antônio, São João e São Pedro. Dorival aprendeu sozinho a tocar violão e bandolim. No início da década de 30, Dorival deu início a um contato amoroso com o mar em Itapuã.  O conjunto musical “Três e Meio“ de Dorival e amigos invadiu as rádios de Salvador, cantando sucessos de gente como Chico Alves, Noel Rosa, Carmen Miranda e outros.

  Em 1938 Dorival, como muitos faziam, partiu num Ita do Norte rumo ao Rio de janeiro, o Eldorado dos artistas da música. Assis Valente, compositor e boêmio, seu conterrâneo, e, Lamartine Babo, o Lalá, duas feras, apadrinharam o moço carregado de canções praieiras e de muita brejeirice. “O que é que a baiana tem? “Chegou, pediu licença e abafou indo para as telas do cinema com a pequena / grande notável Carmen Miranda e o filme “Bananas da Terra “:  

“ O que é que a baiana tem ?/ tem torço de seda , tem ! tem brinco de ouro , tem! / corrente de ouro , tem! tem pano – da – Costa , tem !/ tem bata rendada , tem ! pulseira de ouro , tem ! /tem saia engomada , tem ! sandália enfeitada , tem !/ tem graça como ninguém/ como ela requebra bem / quando você se requebrar , caia por cima de mim /  só vai ao Bonfim quem tem / um rosário de ouro , uma bolota assim/ quem não tem balangandãs não vai ao Bonfim/ oi , não vai ao Bonfim / oi , não vai ao Bonfim “ /
“ O samba da minha terra deixa a gente mole / quando se canta todo mundo bole / quando se canta todo mundo bole / eu nasci com o samba e no samba me criei / do danado do samba nunca me separei / quem não gosta de samba bom sujeito não é / ou é ruim da cabeça ou doente do pé “  / 

   Caymmi navegou de jangada e samburá pelas praias da MPB em suas vertentes  praieiras, fossa e Bossa Nova. Em todas foi  majestade.  

“Só louco / amou como eu amei / só louco / quis o bem que eu quis / oh! Insensato coração / por que me fizeste sofrer /  por que de amor para entender / é preciso amar / porque / só louco“
“Não fazes favor nenhum / em gostar de alguém / nem eu , nem eu , nem eu / quem inventou o amor / não fui eu / não fui eu , não fui eu / não fui eu nem ninguém / o amor acontece na vida / estavas desprevenida / e por acaso eu também / e como o acaso é importante querida / de nossas vidas a vida / fez um brinquedo também  “ 

“ Aconteceu um novo amor / que não podia acontecer / não era hora de amar /agora o que vou fazer ? / não tem solução  este novo amor / um amor amais  me tirou a paz / e eu que esperava / nunca mais amar / não sei o que faço / com esse amor demais“

   Três queixumes musicais a exigir aconchego num barzinho às escuras, uma viola, um Martini Seco e, o principal, a amada com os olhos cheios de devaneios e promessas eternas de perdão.

   Dorival Caymmi contraiu matrimônio com Stella Maris e teve três filhos, Danilo, Dori e Nana, todos com a genética musical generosa dos pais.  Um outro soteropolitano, poeta/ músico / cantor fez um gracioso mimo ao seu querido mestre:

“ Dorival é impar / Dorival é par /Dorival é terra / Dorival é mar / Dorival tá no pé / Dorival tá na mão /Dorival tá no céu / Dorival tá no chão / Dorival é belo / Dorival é bom/ Dorival é tudo / que estiver no tom/ Dorival vai cantar / Dorival em CD / Dorival vai sambar / Dorival na TV / Dorival é um Buda nagô / filho da casa real da inspiração / como príncipe principiou  /  a nova idade de ouro da canção / mas um dia Xangô / deu-lhe a iluminação /lá na beira do mar ( foi ? ) / na praia da Armação ( foi não ) / lá no Jardim de Alá ( foi ? ) / lá no alto sertão ( foi não ) / lá na mesa de um bar ( foi ? ) / dentro do coração / Dorival é Eva / Dorival Adão / Dorival é lima / Dorival limão / Dorival é a mãe / Dorival é o pai / Dorival é o peão / balança , mas não cai / Dorival é um monge chinês / nascido na Roma negra , Salvador / se é que ele fez fortuna , ele a fez / apostando tudo na carta do amor / ases , damas e reis / ele teve e passou ( iaiá ) / teve o mundo a seus pés ( ioiô ) / ele viu , nem ligou ( iaiá ) / seguidores fieis ( ioiô ) / e ele se adiantou ( iaiá ) / só levou seus pincéis ( ioiô ) / a viola e uma flor / Dorival é lindo / desse que anda nu / que bebe garapa / que come beiju / Dorival no Japão / Dorival samurai / Dorival é a nação / balança , mas não cai“ 

   Um amoroso desenho de contrastes a bailar, de Caymmi, sob a ótica do “bruxo“ Gil, enaltecendo “o nosso Buda, ocidental, atual, transpreto e transreligioso“ que partiu para iluminar outras gentes, outras mentes,  em 16 de agosto de 2008, aos 94 anos, bem vividos.

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