domingo, 11 de janeiro de 2015

Perdão, Monteiro Lobato, eles não sabem o que fazem




   Um país se faz com homens e livros. Regimes que incitam a queima de livros terminam por eliminar os autores dos mesmos. Aqueles que hoje jogam as pedras da intolerância contra a sublime figura de Monteiro Lobato, certamente, coitados, não tiveram o privilégio de viajar no tapete mágico com personagens como Tia Anastácia, Marquês de Rabicó, Pedrinho e Narizinho  a percorrer o mundo inteiro formando uma legião de adultos saudáveis e livres de preconceito. Lobato foi um Quixote a terçar armas com palavras em defesa da saúde pública , da exploração de nossas riquezas minerais como ferro e petróleo, da difusão do livro num país inculto e pelas liberdades democráticas. “Fui um grande inquieto dos nossos destinos e pensei demais no Brasil“.    
   José Renato Monteiro Lobato (1882 – 1948) veio ao mundo em Taubaté em 12 de abril de 1882 onde viveu uma infância feliz. Permuta aos 10 anos o “Renato “para “Bento “, segundo ele, por conta de uma bengala do pai, gravada com as iniciais J.B.M.L. Aos 15 anos perde o pai e no ano seguinte, a mãe. Viveu entre chácaras e fazendas no interior de S. Paulo com os avós. Antes mesmo de completar 18 anos ingressa na Faculdade de Direito na capital paulista onde bacharelou- se em 1904. Seu interesse maior, contudo, encontrava-se na literatura. Começou colaborando em pequenos jornais para apurar o estilo e treinar longos voos. Confidenciaria a um amigo, Godofredo Rangel, com quem manteve correspondência epistolar longa e fértil (A Barca de Gleyre, dois tomos): “Nada de imitar seja lá quem for. Temos de ser nós mesmos... Ser núcleo de cometa, não cauda. Puxar fila, não seguir“. 
   Trabalha inicialmente em Taubaté e depois no pequeno município de Areias, no Vale do Parnaíba, como promotor. Ali vivenciou a completa decadência do homem e da terra e dali retiraria boa massa para erguer seus escritos (Jeca Tatu, Júri na Roça). Em 1914 publica em jornal um artigo “Velha Praga “com grande repercussão. Em 1916 Lobato aparece escrevendo contos em uma revista, preparando impulso para lançar um livro. Em 1917 vende sua fazenda e um ano depois lança “Urupês “, um grande sucesso de público e uma arma contra a inércia governamental. O brado de Miguel Pereira à época ecoa até hoje: “O Brasil é um imenso hospital“. Agora do SUS, com mau gerenciamento e prenhe de gambiarras. Não demorou Lobato a se ombrear a contistas de peso como Lima Barreto, Coelho Neto e Machado de Assis. Em seguida apareceu “Cidades Mortas “, considerado seu melhor livro.
   Em 1927 Lobato vai aos Estados Unidos como adido comercial onde permanece até 1931. A América o hipnotiza e deduz ele que o segredo da prosperidade encontra- se no ferro e no petróleo. “Meu plano agora é dar ferro e petróleo ao Brasil“. Tem início seu martírio, isolado, contra governos, trustes, falsos patriotas, contra uma nação anêmica, deseducada e submissa. Ao remeter uma carta ao ditador Getúlio Vargas, o “pai dos pobres “detalhando seus sonhos, recebe como resposta a ordem de prisão. Após três meses foi libertado. O governo com as mãos sujas de lama e sangue acenava para Lobato com um cargo de ministro desde que acabasse com aquela história de ferro e petróleo. “Somos cada vez mais a maior vergonha deste mundo“, dito isso em plena ditadura: precisa ser muito homem!  Restou o derivativo da literatura infanto-juvenil, onde Lobato foi precursor e seu maior divulgador.
     A saga do “Sítio do Pica-pau Amarelo“ viverá para sempre. A filosofia defendida nos livros de lobato mostra que sempre a inteligência bem orientada suplanta a força bruta e seu intuito não é criar regras morais e, sim, ensinar. Monteiro Lobato deixou neste terreno da literatura infantil a presença de 22 obras. No outono de seus dias, Lobato solta um lamento, a parábola “A História do Rei Vesgo“. Muito atual, servindo a reis, rainhas e princesas planaltinas: “Na frente do palácio de certo rei do Oriente, havia um morro que lhe estragava o prazer. Esse rei, apesar de ser vesgo, tinha uma grande vontade de “dominar a paisagem“; vontade tão grande, que ele não pode resistir, e lá um belo dia, resolveu secretamente arrasar o morro. Tratava- se, porém, de um morro sagrado, chamado o Morro da Democracia, e defendido pelas leis básicas do reino. Nem essas leis, nem o povo jamais consentiriam em sua demolição, porque era justamente o obstáculo que limitava o poder do rei. Sem ele o rei dominaria ditatorialmente a paisagem, o que todos tinham com um grande mal. Mas aquele rei, que além de vesgo era malandro, tanto espremeu os miolos que teve uma ideia. Piscou e chamou uns cabouqueiros, aos quais disse: - Tirem um pouco de terra desse morro, ali onde há uma touceira de croata espinhento. Se o povo protestar contra a minha mexida no morro, direi que é para destruir o cagroatá espinhento; e que se tirei um pouco de terra foi para que não ficasse no chão nem uma raiz ou semente. Os cavouqueiros arrancaram os pés de cragoatá e removeram várias carroças de terra. O povo não protestou; não achou que fosse caso disso. Só alguns ranzinzas murmuraram, ao que os apaziguadores responderam: Foi muito pequena a quantidade de terra tirada; não fará falta nenhuma. Vendo que não houve protesto, o rei, logo depois, deu nova ordem aos cavouqueiros para que arrancassem outro pé de qualquer coisa, mas com terra _ ele fazia muita questão de que a planta condenada saísse sempre com um bocadinho de terra ... Continuando o povo a não protestar, prosseguiu o rei por muito tempo naquela política de “extirpação das plantas daninhas do morro “e as foi arrancando sempre, “com terra“, até que um dia ... –Que é do morro? Já não havia morro nenhum no reino. Desaparecera o Morro da Democracia, e o rei pode, afinal, estender o seu olho vesgo por todo o país e governa-lo despoticamente –não pelo breve espaço de apenas quinze anos, mas pelo de trinta e tantos, segundo rezam as crônicas históricas.
     Isto foi no Oriente. Mas nada impede que aqui aconteça o mesmo, porque também temos o nosso morrinho da Democracia, cheio dessas plantas más que costumam crescer em tais morros. É preciso, pois, que o povo se mantenha sempre vigilante, para que os nossos reis vesgos não as arranquem “com terra “. Do contrário, o morro se acaba – e ... como é? Ditadura outra vez? Paisinho dos pobres outra vez? Este comício tem uma significação. É um protesto do povo contra as primeiras carroçadas de terra que o nosso rei, sob o pretexto de arrancar o cragoatá espinhento do comunismo, tirou de nosso Morro da Democracia. Cesteiro que faz um cesto faz cem. Quem tira uma carroçada de terra, tira mil. Se não reagirmos energicamente, um dia estaremos privados do nosso morro e com um terrível soba dominando toda a planície. E, se tal acontecer e esse soba instituir o Relho como instrumento de convicção, será muitíssimo bem feito, porque outra coisa não merece um povo que deixa seus governantes despojarem –no pouco a pouco de suas mais belas conquistas liberais. O preço da liberdade é uma vigilância barulhenta como a dos gansos do Capitólio“.
   Assim pensava o grande Quixote Monteiro Lobato, sem medo do que quer que fosse, nem da indesejada das gentes. Afirmava ele estar ansioso para verificar se a morte era vírgula, ponto e vírgula ou ponto final. Em 4 de julho de 1948, ponto final.

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