Boneca de pano
Gingando num cabaré
Poderia ser bonequinha de louça
Tão moça mas não é
Um dia alguém a chamou de boneca
E ela sendo mulher acreditou
O tempo foi se passando
E ela se desmanchando
E hoje
Quem olha pra ela não diz quem é
Em vez de boneca de louça
Hoje é boneca de pano
De um sombrio cabaré.
No “colar de pérolas do pecado“ que envolvia com um gentil abraço o centro boêmio da Loura Desposada do Sol, num passado recente, “bonequinhas de pano“ jogavam seus confetes e suas mágoas no colo de tristes notívagos. Assis Valente, espiritualmente , gemia suas dores nas boates Fascinação, Continental, Leila e no nostálgico Bar da Alegria.
Nasceu Assis Valente no Caminho de Bom Jardim a Patioba, na Bahia, no ano da graça de 1911. Seus pais, José de Assis Valente e Maria Esteves Valente, cedo entregaram o petiz para ser criado por outra família. Relata-se que Assis realizou o sonho de muita criança por esse mundão a fora, fugindo nas asas de um circo mambembe da cidade. Em Salvador frequentou o Liceu de Artes e Ofícios, onde especializou-se em prótese dentária.
Em 1932 conheceu o compositor Heitor dos Prazeres, já na Cidade Maravilhosa, que o incentivou a seguir em frente, ao ser apresentado a algumas de suas produções musicais. Criou Assis Valente uma infinita quantidade de músicas que ganharam corpo nas vozes de Francisco Alves, o rei da voz e, principalmente Carmen Miranda, por quem o protético nutria uma paixão platônica.
Algumas jóias de Assis Valente: Camisa listrada; Boas festas; Boneca de pano; Brasil pandeiro e Cai, Cai, Balão.
Casou-se em 1941 e pouco tempo depois separou-se, deixando uma filha, Nara Nadili, nascida em 1942. Neste período, inesperadamente, atirou-se do alto do Corcovado, sendo amparado pelos galhos de uma árvore amiga. Salvou-se. Mais adiante, cortou o pulso esquerdo com uma lâmina de barbear. Sobreviveu. Por coincidência, no dia seguinte ao triste episódio, uma parceira do infortúnio, Maysa Matarazzo , a musa da fossa, o imita e vai parar no hospital, para ligeiros reparos. Ela ainda tentaria em muitas outras ocasiões buscar a paz a seu modo. Duas almas–gêmeas, dois cometas. Ele viveu 48 anos, ela, Maysa, 40 anos.
Assis Valente elaborava músicas numa velocidade alucinante, quase uma por dia, e muitas delas foram vendidas a outrem para o pagamento de dívidas. Estas o levaram a um encontro definitivo com a indesejada das gentes. Em 10 de março de 1958, Assis passou em busca de uns numerários salvadores na Sociedade Arrecadadora de Direitos Autorais. Dinheiro não havia e recebeu das mãos do tesoureiro, o poeta Joubert de Carvalho, somente um medicamento tranquilizante. Ligou em seguida para seu editor, Vicente Vitale e para o embaixador Pascoal Carlos Magno, dando conta de seu firme propósito de parar de vez com seu atroz sofrimento. Vitale tentou desesperadamente um contato com a polícia. Foi em vão. Solitário, num banco de praça, Assis Valente, confirmando a robustez do seu sobrenome, enfrentou a parca, ingerindo guaraná com formicida. Acabou. No bilhete final pedia a Ary Barroso que quitasse uma divida pendente, igual ao que fizera Sócrates, o filósofo, que antes de beber a cicuta, mandou que fosse entregue como pagamento de dívida, um galo a Asclépio. Deste modo, ambos deixaram a vida para caírem, de vez, nos braços da história.
Vestiu uma camisa listrada e saiu por aí
Em vez de tomar chá com torrada ele bebeu parati
Levava um canivete no cinto e um pandeiro na mão
E sorria quando o povo dizia : sossega leão , sossega leão
Tirou o seu anel de doutor pra não dar o que falar
E saiu dizendo mamãe eu quero mamar , mamãe eu quero mamar
Levou meu saco de água quente pra fazer chupeta
Rompeu minha cortina de veludo pra fazer uma saia
Abriu meu guarda – roupa e arrancou minha combinação
E até do cabo de vassoura ele fez um estandarte
Para seu cordão
Agora a batucada já vai começando
Não deixo e não consinto
O meu querido debochar de mim
Porque se ele pega minhas coisas vai dar o que falar
Se fantasia de Antonieta e vai brincar no Bola Preta
Até o sol raiar
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