“Por causa de você“
Ah, você está vendo só
Do jeito que fiquei e que tudo ficou
Uma tristeza tão grande
Nas coisas mais simples que você tocou
A nossa casa, querido
Já estava acostumada guardando você
As flores na janela
Sorriam, cantavam por causa de você
Olhe, meu bem
Nunca mais nos deixe, por favor
Somos a vida e o sonho
Nós somos o amor
Entre, meu bem, por favor
Não deixe o mundo mau
Lhe levar outra vez
Me abrace simplesmente
Não fale, não lembre
Não chore, meu bem
Num bar, a meia–luz, em plena Copacabana, fumando e bebendo todas, Dolores Duran rabiscou, em minutos, com um lápis, num guardanapo, o lamento “por causa de você“. Ela fora há pouco apresentada à melodia feita por um jovem compositor, devidamente acompanhado, e que lhe causara um pronto fascínio, mas com uma letra sujeita a retoques. O compositor novato tratava-se de Tom Jobim, e o acompanhante-letrista, já famoso, ninguém menos que o grande Vinicius de Morais. O “poetinha“ rasgou de pronto a letra original que havia sido elaborada por ele. Estávamos diante de um monumental lance de santa humildade, somente afeita aos grandes e, ademais, presenciou-se um corajoso lance,uma firula na pequena área, daquela dama da noite que ainda daria muito o que falar.
Adileia Silva da Rocha (1930–1959) veio ao mundo na rua do Propósito, no bairro da Saúde, no Rio de Janeiro. Teve um infância pobre e aos oito anos de idade contraiu uma febre reumática que lhe deixou como sequela uma grave cardiopatia. Adileia pressentira que teria que fazer tudo rápido, pois seu tempo de vida seria abreviado por conta daquele estado mórbido que carregava no peito. A velha imagem se materializando da traiçoeira enfermidade “que lambe a articulação e morde o coração“. Aos doze anos, a menina Adileia conquista um prêmio no programa de calouros do compositor Ary Barroso. Deixa de seguir estudos em colégios regulares. Cedo parte para a vida boêmia na mais dura luta pela sobrevivência. Sem educação formal para tanto, Adileia canta com desenvoltura em inglês, francês, italiano espanhol e, chega, esperanto. Representava ela a genuína voz universal do amor e de suas desventuras e a vida se lhe ensinava línguas diversas..
A fortuna colocou-a no caminho de um rico casal benemérito, Lauro e Heloísa Pais de Andrade, que ajudaram –na no polimento de boas maneiras e introduziram–na em ambientes aristocráticos. Lauro passa a chama-la de Dolores Duran, no lugar do vulgar Adileia. Dolores do espanhol “dores” e Duran , de “durante“, “sempre”. Um nome forte para uma frágil alma boêmia.
Dolores compôs uma dezenas de músicas apropriadas para ambientes onde notívagos fazem pouso para aplacar dores de amores. Assim surgiram os clássicos: a noite do meu bem; castigo; fim de caso; o negócio é amar; ternura antiga; ouça; leva-me contigo; a morte deste amor; não me culpe. Pela embalagem, tem-se a ideia do conteúdo das canções.
Dolores Duran casou-se com o desconhecido compositor Macedo Neto, de quem gravou diversos sambas. Gestou apenas uma vez, uma gravidez tubária, que foi interrompida cirurgicamente. A partir de então tornou-se estéril. Tal tragédia levou a uma combinação de fatores que contribuíram em muito para um desfecho fatal: depressão, abuso de álcool, tabagismo exacerbado e, provavelmente, utilização de fármacos não convencionais. O casamento desde o inicio mostrou-se tempestuoso e de prognóstico sombrio. A mãe de Dolores, por conta de sua cor-negra não pôde comparecer às núpcias, a pedido do desapiedado cônjuge. Mais tarde, Dolores adotou uma criança, Maria Fernanda da Rocha Macedo, que nascera de um parto complicado pela morte da gestante que à época já era viúva.
Na madrugada de 23 de outubro de 1959, depois de um show na boate Little Club, Dolores partiu para uma saideira em uma festa no Clube da Aeronáutica. Retornou para casa com o sol a pino, onde brincou ligeiramente com sua pequena filha de 3 anos e deixou um aviso para sua empregada doméstica, em tom de blague: “Não me acorde, pois estou cansada. Vou dormir até morrer!“.
O samba-canção, que exaltava as dores de amores sofreu uma grande perda, mas, continuou firme desenhando puras tragédias de amores conflituosos da era do fino da fossa nas vozes de: Maysa Matarazzo, Nora Ney, Dalva de Oliveira e Ângela Maria.
Partira enfim, Dolores Duran em busca da “paz de uma criança dormindo“, para ver a “alegria de um barco voltando“, e “para enfeitar a noite do meu bem“. É, amiga, “me dê a mão e vamos sair pra ver o sol“.
Num fiapo de nuvem lá na imensidão do firmamento, no alto, alguns seresteiros preparam as boas vindas para Dolores Duran, sob a batuta do cearense Vilamar Damasceno, acompanhado pelo conjunto de Moreira Filho e mandando ver:
“Fim de caso“
Eu desconfio que o nosso caso está na hora de acabar
Há um adeus em cada gesto, em cada olhar
Mas nós não temos nem coragem de falar
Nós já tivemos a nossa fase de carinho apaixonado
Naquela base do só vou se você for
Mas, de repente, fomos ficando cada dia mais sozinhos
Embora juntos cada qual tem seu caminho
E já não temos nem vontade de brigar
Tenho pensado, e Deus permita que eu esteja errada
Mas eu estou, eu estou desconfiada
Que o nosso caso está na hora de acabar.
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