domingo, 4 de janeiro de 2015

05 de Janeiro de 1968 - Um Encontro Com Rachel de Queiroz


     1968:  O ano que não terminou. O mundo galopava a mil levantando densa poeira  que demandaria tempo para baixar. A ampulheta   que recolheu da superfície da terra   gente como Martin Luther King e Robert Kennedy, também  deu azo a conflitos como a sangrenta  Guerra do Vietnã. Aqui abaixo  dos trópicos,  o Brasil seguia seu fadário vivendo no  AI-5, um bisonho instrumento outorgado pelas mãos do truculento  General Artur da Costa e Silva. E na bucólica Loura Desposada do Sol, um bando de álacres estudantes revoava rumo ao vetusto Colégio Militar de Fortaleza para dar inicio a guerra do vestibular de Medicina da Universidade Federal do Ceará: coisa de 900 candidatos para 100 vagas.  Era 05 de janeiro de  1968. Primeira  pugna: Prova de Português, com caráter eliminatóri . Os cursinhos do Castelo e do Cearense , dentre outros,  faziam de tudo para adivinhar o autor do texto  da famigerada redação. Existia um panteão de deuses,  de meter  medo: Clarice Lispector, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto, Lima Barreto e Machado de Assis. Maiores carrascos , sem dúvidas, eram  os poetas com seus bizarros traços. Muito bem, a escolhida desta feita foi a cearense Rachel de Queiroz (1910–2003)   com o poema “A telha de vidro“:

“Quando a moça da cidade chegou / veio morar na fazenda / na casa velha .../ tão velha ! . / quem fez aquela casa foi o bisavô... / deram-lhe para dormir a camarinha / uma alcova sem luzes , tão escura ! / mergulhada na tristura / de sua treva e de sua única portinha .../ a moça não disse nada / mas mandou buscar na cidade / uma telha de vidro .../ queria que ficasse iluminada / sua camarinha sem claridade .../ agora / o quarto onde ela mora / é o quarto mais alegre da fazenda / tão claro que, ao meio dia , aparece uma / renda de arabesco de sol nos ladrilhos / vermelhos / que–coitados–tão velhos / só hoje é que conhecem a luz do dia .../ a luz branca e fria / também se mete às vezes pelo clarão / da telha milagrosa .../ ou alguma estrela audaciosa /careteia / no espelho onde a moça se penteia /  que linda camarinha ! era tão feia ! / - você me disse um dia / que sua vida era toda escuridão / cinzenta / fria/ sem um luar , sem um clarão .../ por que você não experimenta ? / a moça foi tão bem sucedida .../ ponha uma telha de vidro em sua vida !“ /.

     Eis , cruamente, a outra face da grande dama da Literatura Brasileira da safra nordestina  de 30, Rachel de Queiroz:  poeta-bissexto.  “Sou como o vento, passo. Mas não sem balançar as folhas“. Cumpriu o prometido: balançou !  Depois do susto  da estudantada, era soltar a pena, de preferência  com letra de “não–médico“ e tentar agradar a banca examinadora.  Um exemplo hipotético: -Telha de vidro é um poema que verbaliza numa linguagem coloquial, versos livres, pois não respeitam métricas; e versos brancos, sem rimas. O eu–lírico põe rumo a quem quiser alumiar “seu quarto escuro“, suas entranhas, ou depósito de guardar “quinquilharias inacessíveis“, deixando  penetrar os raios vivificantes da razão. Ufa!  O Mundo da Caverna de Platão propõe o mesmo, onde seres acorrentados no fundo de uma caverna vivem nas sombras da ignorância. A única saída faz-se na busca do mundo iluminado pelo deus-sol do conhecimento filosófico. Corte  rápido no tempo!

     Seguimos  nós   viagem pelo rés-do-chão,  faz 47 anos, irmãos e cúmplices, de braços dados, numa íngreme vereda, com os pés descalços empoeirados, as mãos cobertas  de calos, nuas mas limpas. Trazemos  ouro, sim, apenas no olhar e muita, muita  prata nos cabelos, tintos pelos orvalhos da noite. É essa a nossa  grande  fortuna.  Deste modo queremos um dia  nos apresentar na Mansão dos Bons  e dos Justos,  apoiados em nosso cajado e dizer, humildemente: -“Senhor, eis seu pequeno fruto, que pelejou pelo mundo afora consolando almas, lancetando feridas, receitando meizinhas e realizando curas com Sua intercessão, agora buscando Seu regaço  eterno.  Conceda- nos o perdão pelo não–feito  ou pelos momentos em que fraquejamos“.  E, por fim, dai-nos a paz!

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