1968: O ano que não terminou. O mundo galopava a
mil levantando densa poeira que
demandaria tempo para baixar. A ampulheta que
recolheu da superfície da terra gente
como Martin Luther King e Robert Kennedy, também deu azo a conflitos como a sangrenta Guerra do Vietnã. Aqui abaixo dos trópicos, o Brasil seguia seu fadário vivendo no AI-5, um bisonho instrumento outorgado pelas
mãos do truculento General Artur da
Costa e Silva. E na bucólica Loura Desposada do Sol, um bando de álacres estudantes revoava rumo
ao vetusto Colégio Militar de Fortaleza para dar inicio a guerra do vestibular
de Medicina da Universidade Federal do Ceará: coisa de 900 candidatos para 100
vagas. Era 05 de janeiro de 1968. Primeira pugna: Prova de Português, com caráter
eliminatóri . Os cursinhos do Castelo e do Cearense , dentre outros, faziam de tudo para adivinhar o autor do texto da famigerada redação. Existia um panteão de deuses, de meter
medo: Clarice Lispector, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto,
Lima Barreto e Machado de Assis. Maiores carrascos , sem dúvidas, eram os poetas com seus bizarros traços. Muito bem, a escolhida desta feita foi a cearense Rachel de Queiroz (1910–2003) com o poema “A telha de vidro“:
“Quando a moça da cidade chegou / veio morar na fazenda /
na casa velha .../ tão velha ! . / quem fez aquela casa foi o bisavô... /
deram-lhe para dormir a camarinha / uma alcova sem luzes , tão escura ! /
mergulhada na tristura / de sua treva e de sua única portinha .../ a moça não
disse nada / mas mandou buscar na cidade / uma telha de vidro .../ queria que
ficasse iluminada / sua camarinha sem claridade .../ agora / o quarto onde ela
mora / é o quarto mais alegre da fazenda / tão claro que, ao meio dia ,
aparece uma / renda de arabesco de sol nos ladrilhos / vermelhos / que–coitados–tão velhos / só hoje é que conhecem a luz do dia .../ a luz branca e
fria / também se mete às vezes pelo clarão / da telha milagrosa .../ ou alguma
estrela audaciosa /careteia / no espelho onde a moça se penteia / que linda camarinha ! era tão feia ! / - você
me disse um dia / que sua vida era toda escuridão / cinzenta / fria/ sem um
luar , sem um clarão .../ por que você não experimenta ? / a moça foi tão bem
sucedida .../ ponha uma telha de vidro em sua vida !“ /.
Eis , cruamente, a
outra face da grande dama da Literatura Brasileira da safra nordestina de 30, Rachel de Queiroz: poeta-bissexto. “Sou como o vento, passo. Mas não sem
balançar as folhas“. Cumpriu o prometido: balançou ! Depois do susto da estudantada, era soltar a pena, de preferência com letra de “não–médico“ e tentar agradar
a banca examinadora. Um exemplo
hipotético: -Telha de vidro é um poema que verbaliza numa linguagem coloquial,
versos livres, pois não respeitam métricas; e versos brancos, sem rimas. O
eu–lírico põe rumo a quem quiser alumiar “seu quarto escuro“, suas
entranhas, ou depósito de guardar “quinquilharias inacessíveis“,
deixando penetrar os raios vivificantes
da razão. Ufa! O Mundo da Caverna de Platão propõe o mesmo, onde seres acorrentados no fundo de uma caverna
vivem nas sombras da ignorância. A única saída faz-se na busca do mundo
iluminado pelo deus-sol do
conhecimento filosófico. Corte rápido
no tempo!
Seguimos nós viagem
pelo rés-do-chão, faz 47 anos,
irmãos e cúmplices, de braços dados, numa íngreme vereda, com os pés
descalços empoeirados, as mãos cobertas de calos, nuas mas limpas. Trazemos ouro, sim, apenas no olhar e muita,
muita prata nos cabelos, tintos pelos
orvalhos da noite. É essa a nossa grande fortuna.
Deste modo queremos um dia nos
apresentar na Mansão dos Bons e dos
Justos, apoiados em nosso cajado e dizer,
humildemente: -“Senhor, eis seu pequeno fruto, que pelejou pelo mundo
afora consolando almas, lancetando feridas, receitando meizinhas e realizando
curas com Sua intercessão, agora buscando Seu regaço eterno.
Conceda- nos o perdão pelo não–feito ou pelos momentos em que
fraquejamos“. E, por fim, dai-nos a paz!
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