A filosofia -o amor à sabedoria- com suas indagações
básicas como, “de onde vim, quem
sou e para onde vou“ permeia tam bém o mundo
mágico da música popular brasileira. Não o filosofar acadêmico carregado de
“ismos“, do tipo existencialismo,
empirismo e outros que tais, mas as ditas coisas simples do nosso rico cotidiano. É o saber em estado bruto, de
pessoas humildes, a maioria sem vivência acadêmica formal, com passagens
marcantes, penas nos bancos das escolas da vida (poetas do
morro). Claro que o enfeite do bolo faz–se com aqueles menestréis filhos do saber acadêmico (poetas do asfalto) . Uns e
outros, dois rios caudalosos misturando suas águas em busca do mesmo mar
da cultura.
Filosofia (Noel Rosa):
“ O mundo me condena, e ninguém tem pena / falando sempre mal do meu
nome / deixando de saber se eu vou morrer de sede/ ou se vou morrer de fome /
mas a filosofia hoje me auxilia/ a viver indiferente assim/ nesta prontidão sem
fim/ vou fingindo que sou rico / pra ninguém zombar de mim / não me incomodo
que você me diga / que a sociedade é minha inimiga / pois cantando neste mundo
/ vivo escravo do meu samba , muito
embora vagabundo /quanto a você da aristocracia / que tem dinheiro, mas não
compra alegria / há de viver eternamente
sendo escravo desta gente/ que cultiva a hipocrisia“ .
Noel Rosa compôs esta música aos
23 anos de idade, em 1933. Sua boa formação intelectual (fora acadêmico de
medicina) permitia–lhe fazer voos neste terreno do pensar filosófico,
trazendo críticas ao modo de vida (boemia), a luta de classes (rico,
pobre ) e ao poder da grana (capitalismo), que ergue e destrói coisas belas. Noel portava todos os atributos de poeta do asfalto e convivia
harmoniosamente com os poetas do morro.
Como uma onda (Nelson Motta e Lulu Santos):
Nada do que foi será/ de novo do jeito que já foi um dia / tudo passa ,
tudo sempre passará / a vida vem em ondas , como um mar / num indo e vindo
infinito / tudo que se vê não é / igual ao que agente viu há um segundo / tudo
muda o tempo todo no mundo / não adianta fugir / nem mentir pra si mesmo /
agora / há tanta vida lá fora / aqui dentro
sempre / como uma onda no mar .
Os dois autores, filhos da classe média , misturando a filosofia Zen com um “baseado”, surfaram nas ondas da filosofia pré-socrática dos filósofos da natureza como Heráclito de Éfeso (540 – 480 a. c.), que falava na mudança
eterna, no devir, no indo e vindo infinito.“ Ninguém toma banho duas vezes no
mesmo rio, pois ambos, o rio e a pessoa, são diferentes “.
A noite se repete (Nelson Sargento):
A noite se repete / porque se repete o dia / tristeza só existe /
porque existe alegria / a terra é quem dá a vida para a flor / num coração sincero/ é
que desponta um grande amor /por existir a vida / é que a morte impera / por
haver gente falsa / é que há gente sincera / se não houvesse mar / não haveria
embarcação / se eu não te amasse / não
sofreria ingratidão .
Nelson Sargento, do mesmo modo
que seus contemporâneos Cartola, Carlos
Cachaça, Nelson Cavaquinho, passearam livremente pelo terreno da filosofia
não-acadêmica, mostrando a real poesia popular e da beleza dos contrastes do
yin e do yang. Todos os citados são legítimos poetas do morro com escassa
educação formal e com rico material poético e filosófico.
Timoneiro (Paulinho da Viola):
Não sou eu quem me navega/ quem me navega é o mar / é ele quem me
carrega como nem fosse levar / e quanto mais remo mais rezo / pra nunca mais se
acabar / essa viagem que faz / o mar em torno do mar / meu velho um dia falou /
com seu jeito de avisar : / olha o mar não tem cabelos que a gente possa agarrar / timoneiro nunca
fui / que eu não sou de velejar / o leme da minha vida / Deus é quem faz
governar / e quando alguém me pergunta / como se faz pra nadar / explico que
não navego / quem me navega é o mar / a rede do meu destino / parece a de um
pescador / quando retorna vazia, vem
carregada de dor / vivo num redemoinho /
Deus bem sabe o que faz / a onda que me carrega / ela mesmo é quem me
traz .
Paulinho da Viola é um dos
compositores da modernidade, com boa formação intelectual, que mais inserem imagens filosóficas em seus temas de
amor e vida. Sua obra musical forma um rico manual de filosofia. Chico Buarque,
Caetano Veloso e Gilberto Gil, fazem parte deste seleto time de poetas do asfalto que tornam mais rica a
Música Popular brasileira Contemporânea .
Oração ao Tempo (Caetano Veloso) :
És um senhor tão bonito / quanto a cara do meu filho / tempo, tempo
,tempo ,tempo/ vou te fazer um pedido / tempo ,tempo , tempo ,tempo /
compositor de destinos /tambor de todos os ritmos / entro num acordo contigo /
por seres tão inventivo / e pareceres contínuo / és um dos deuses mais lindos /
que sejas ainda mais vivo / no som do meu estribilho / tempo , tempo, tempo
,tempo / ouve bem o que te digo / peço –te o prazer legítimo / e o movimento
preciso / quando o tempo for propício/
de modo que o meu espírito / ganhe um brilho definido / e eu espalhe
benefícios / o que usaremos pra isso / fica guardado em sigilo / apenas contigo
e comigo / e quando eu tiver saído / para fora do teu círculo / não serei nem
terás sido / ainda assim acredito / ser possível reunirmo – nos / num outro
tipo de vínculo / portanto peço –te aquilo / e te ofereço elogios / nas rimas
do meu estilo/ tempo ,tempo , tempo ,tempo .
Caetano Veloso aborda aqu, um
dos temas filosóficos mais recorrentes, que é
a beleza e o enigma do
tempo. Santo Agostinho de Hipona
(354–430) dizia: “que é ,pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei. Se quero explica-lo a quem me pede, não sei “. A frase “não serei nem terás sido“, faz
referência a Epicuro (341–270 a. c),
filósofo grego que defendia: “ porque ter medo da morte ?.
Enquanto somos, ela não existe, e quando ela passa a existir, nós deixamos
de ser “ .
O assunto ora em pauta -música x
filosofia- exige
roupa de gala para ser sorvido num fim de
tarde, curtindo o sol bestamente
caindo nos braços do oceano, na risca, lá pras bandas da Ponte Velha, na Praia de Iracema e com
todos os apetrechos necessários (a cabrocha, o luar, a cachaça e o violão) com vistas a uma libação filosófica de respeito. Carpe Diem!
(Texto a 04 mãos, Eleuterio e Roger em momentos de reflexão não etílica)
Muito bom isso!
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