“ Boêmio , nos cabarés da cidade , buscas a felicidade / na
tua própria ilusão / boêmio , a poesia resume / no vinho , amor e ciúme / perfume , desilusão / boêmio ,
ó sultão , por que é que queres / amar a tantas mulheres / se tens um só
coração ? / boêmio , pensa na vida um instante / e vê que o amor inconstante /
só traz por fim , solidão / boêmio , tu ficas na rua , em noite de lua / insone
a cantar / na ilusão dos beijos viciosos / e dos carinhos pecaminosos / boêmio , tu vives sonhando com a felicidade /
mas não és feliz / vives boêmio sorrindo e cantando / mas o teu sofrer , o teu
riso não diz “ .
Mário de Souza Marques Filho , o Noite Ilustrada , nasceu em
Pirapetinga - Minas Gerais - em 10 de abril de 1928 . Seus pais , Mário e Alexandrina Maria viveram pouco
tempo juntos . Deste modo o garoto
precisou cedo aprender vários ofícios na escola da vida , como engraxate e entregador de leite , para
prover sua sustentação . Partiu em seguida em direção ao Rio de Janeiro para
sob as asas do pai tentar algo mais proveitoso na dura
vida . O humorista Zé Trindade , um
baixinho malandro cheio de tiques e mulherengo
, colocou o apelido no jovem Mário, de “ Noite Ilustrada “ por conta de uma
revista carioca da época . Nas décadas de
60 e 70 do século passado , o bom crioulo cantor e violonista lançou muita música ao gosto de boêmios e
notívagos sob a guarda de autores como
Paulo Vanzolini , Nelson Cavaquinho e
Ataulfo Alves .Em nossa Fortaleza bela e boêmia o artista se fez
presente ao vivo em clubes , boates e
restaurantes , incluindo o Bar do Dozinho da Jia ao lado da Faculdade de
Medicina da UFC .Ali pontuavam docentes , principalmente das disciplinas de
Patologia e Medicina Preventiva , pérolas do mais puro valor humanístico . Noite
ilustrada faleceu em decorrência de um câncer de pulmão em Atibaia , São Paulo , no dia 28 de julho de 2003 ,
aos 75 anos .
As frondosas e centenárias mangueiras do pátio da bucólica Faculdade de Medicina da UFC nos idos de 60 do
século XX serviam de ponto de partida para a fruição noturna maneira em humildes bares da circunvizinhança pela jovem estudantada . O Bar do Coronel situado no Bairro da Bela Vista dava abrigo a
um grupo fiel de notívagos diaristas . Um
aprendiz de doutor , um tipo muito estranho , moreno claro , estatura mediana , cabelos
longos encaracolados , costeletas exageradamente compridas , olhar
triste , portando uma alma de passarinho e pouco afeito a conversa , fazia
pouso com frequência naquele humilde
logradouro . Chegava mudo e saia
calado , ocupando , invariavelmente , sempre a mesma mesa , sorvendo a mesma caninha Colonial com um
tira- gosto de torresmo . Num sobrado defronte , uma bela jovem de tez escura iluminava a
janela , pensativa , com um olhar enigmático , lembrando uma Gioconda
cabocla . Na vitrola Philco do bar
, o grande “ Noite Ilustrada “ não dava
vez a ninguém , com sua voz de veludo alimentando ilusões e massageando os corações daqueles seres tristes e vadios .
“ Um dia você vai pensar direito / e vai procurar um jeito /
para me pedir perdão / é bem melhor você pensar agora / antes de chegar a hora
da nossa separação / eu já derramei um rio de lágrimas / muitas vezes chorei
minhas mágoas / só porque eu te amo
demais / olha amor / dediquei a você minha vida inteirinha / dos meus sonhos de
amor / fiz você a rainha / e você vem falando em separação / / olha amor /antes
que seja tarde o arrependimento / eu não quero ouvir mil desculpas , lamento /
porque tudo que fiz / foi para te fazer feliz “ .
Numa jornada noturna de magro movimento , o Coronel já baixando as portas do bar ,
encurralou o aprendiz de doutor e boêmio iniciante , para uma sessão relâmpago de catarse
. Aquele rude homem , também ranzinza em palavras , verteu
num só fôlego um copo de fundo alto de cana da boa e escancarou a tábua do peito . Com uma mão trêmula apontou para a
janela do sobrado : ali brilhava Florisbela , uma mulata impoluta naquele retrato a óleo , seu bibelô
de penteadeira , que tomara rumo incerto , com um maquinista da
Estrada de Ferro , um dos seis restantes torcedores do Ferroviário , deixando apenas no lugar a saudade e o pobre Coronel em nocaute técnico
. Sobrara também um cruzado de direita no estômago do sonhador estudante de medicina .Quer dizer que sua pueril “ paquera “ com aquela escultura de
ébano cheirando a pecado era de
brincadeira e resumia- se a uma tela de um pintor desconhecido cearense ? .
Resumia – se a farsa a uma ilusão de
ótica produzida pelo efeito medonho do álcool ? . Naquele pedaço de noite desfez-se em pó a
breve paixão platônica do
pobre projeto de esculápio que ziguezagueando partiu sem rumo até o
centro da cidade , pois os ônibus da linha Rodolfo Teófilo já tinham sido
recolhidos à garagem em vista do adiantado da hora . Além de queda , coice ! .
O futuro filho de Hipócrates excluiu do seu roteiro noturno
o Bar do Coronel ,e soube apenas por terceiros que as
portas do recinto foram abaixadas . Correram
céleres boatos de que o indigitado Coronel dera
com os costados no Hospital das Clínicas
Dr. Walter Cantídio buscando conserto para uma avaria no fígado em decorrência de excesso etílico e por conta da ingestão
consciente de Querosene Jacaré , que quase finda em tragédia policial . O
paciente cumpriu rigoroso regime com vistas a obter alforria e
lépido partir em busca de sua ovelha tresmalhada , lá nos confins do
sertão de Alagoas . A boa- nova chegara
pelo correio : a radiante Florisbela do
alto de sua majestade dera as contas ,
sem aviso prévio , do folgado maquinista
que saíra dos trilhos da fiel
convivência e com o acréscimo de uma alegada incompatibilidade de gênios . “ - Sebo nas canelas” , meu coronel , resgate sua valiosa prenda como um quixote alencarino e cuide
da saúde reforçando o estoque de Xantinon e de catuaba , homem de Deus , que seguro morreu de velho ! .
“ Chorei
, não procurei esconder / todos viram , fingiram / pena de mim não precisava /
ali onde eu chorei / qualquer um chorava / dar a volta por cima que eu dei /
quero ver quem dava / um homem de moral não fica no chão / nem quer que mulher lhe
venha dar a mão / reconhece a
queda e não desanima / levanta , sacode a poeira e dá a volta por cima .”
Uma Maria – Fumaça lenta , sacolejante e soltando
um estridente grito em plena três horas
da madrugada , se arrastando em direção
do Porto do Mucuripe serve de aviso para
os pombinhos Coronel e Florisbela entrelaçarem com mais força as pernas naquela branca rede de Jaguaruana , a lembrar que o perigo continua a rondar aquele doce- lar da Bela vista .
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