BICO – DOCE E O COMPRIMIDO
Na Praça do Passeio Público, um imponente
hospital filantrópico foi fundado no ano de 1861 com fins de prestar
assistência a uma população de cerca de 160.000 almas moradoras na capital
cearense. Era a Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza que ao longo dos anos
tornou-se, com a ajuda inestimável de Homens de Bem que compõem sua Irmandade
Beneficente, uma modelar instituição de assistência à saúde, ensino e pesquisa
do Ceará.
Na década de
70 do século passado, no movimentado ambulatório de ginecologia da Santa Casa
de Misericórdia, uma jovem de 18 anos busca atendimento médico para o que seria
uma emergência. A queixa era de dor cortante ao ato de urinar, que surgira há
três dias. A história clínica sumária trazia pouca luz para se firmar uma
hipótese diagnóstica razoável. O médico dispensou o exame ginecológico e
solicitou exames que rapidamente poderiam elucidar as causas daquele incômodo:
um hemograma completo, um sumário de urina e uma glicemia de jejum.
Os resultados
dos exames evidenciaram: Hemograma completo dentro da normalidade; sumário de
urina sem quaisquer sinais de infecção, mostrando, contudo, a maciça presença
de glicose na amostra; e a glicemia de jejum apontando 350 mg/dl, valor bem
acima da normalidade.
Conclusão:
Tratava-se de um caso de Diabetes Melito.
“ – Quer
dizer, doutor, que eu peguei essa tal de diabetes, mais um tipo de doença do
mundo? “
“- Não é bem
assim, senhorita “, resmungou o doutor.
“ – O
diabetes vem de dentro da gente, resultando de um excedente de açúcar no sangue
e não se trata, obviamente, de uma doença venérea como um esquentamento (gonorreia),
uma crista de galo (HPV) ou um cancro duro (sífilis) ”
“ – Agora eu
entendo – falou a cliente- o meu companheiro, mulherengo incorrigível,
conhecido no Morro do Ouro, aqui vizinho, como Bico-Doce, já me apresentou a
todas essas mazelas citadas pelo senhor, exceto esta tal do sangue doce”
“ -Só
faltava essa, pois já cansei de tomar injeção de penicilina no ambulatório do
enfermeiro Almeida, por conta das danações deste infeliz amante”
Desenhava-se
ali o prelúdio para uma nova discussão no casebre dos dois, no vizinho Morro do
Ouro, um furdunço medonho que quase sempre findava na delegacia do bairro.
E assim seguia o calvário do mulherengo Bico-Doce,
cada vez mais calado e esquisito, bebendo todas, diariamente, e chegando grogue
ao barraco, vendo alucinações de bichos andando pelas paredes, noite adentro.
Em certa
madrugada, na emergência da Santa Casa de Misericórdia, chega um Bico-Doce estropiado,
conduzido pela sua jovem companheira diabética, ele mostrando uma convulsão
generalizada atrás da outra, pletórico e vertendo espuma pela boca. Ela o
encontrara, há pouco, no chão do barraco, já desacordado, tendo ao lado uma
caixa vazia de veneno para matar ratos.
Meia hora
depois, Bico-Doce, principiava sua jornada, encompridando o sono, numa fria
mesa do necrotério, tendo ao lado uma solitária vela tremeluzindo e ao longe um
galo anunciando um novo amanhecer.
“ Deixou a
marca dos dentes dela no braço/pra depois mostrar pro delegado/se acaso ela for
se queixar da surra que levou/por causa de um ciúme incontrolado/ele andava
tristonho guardando um segredo/chegava e saia, comer não comia e só bebia/cadê
a paz/tanto que deu pra pensar/que poderia haver outro amor/na vida do nego pra
desassossego/e nada mais/seu delegado ouviu e dispensou/ninguém pode julgar
coisas de amor/o povo ficou inteirado do acontecido/cada um dando sua
opinião/ela acendeu muita vela/pediu proteção, o tempo passou/e ninguém descobriu/como
foi que ele se transformou/uma noite , noite de samba/noite comum de novela/ele
chegou pedindo um copo d’água/pra tomar um comprimido/depois cambaleando foi
pro quarto e se deitou/era tarde demais quando ela percebeu/que ele se
envenenou/seu delegado ouviu e mandou anotar/ sabendo que há coisas que ele não
pode julgar/só ficou intrigado quando ela falou/que ele tinha mania de ouvir
sem parar/um samba do Chico falando das coisas do dia a dia”
Letra da música “ Comprimido”, composta por
Paulinho da Viola.
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