A HEMOPTISE
E O COMEDOR DE GILETE
“ Morrem quatro por minuto nesta América Latina.../não conto
os que morrem velhos, só os que a fome extermina/ não conto os mortos de faca nem os mortos de polícia/conto os que morrem
de febre e os que morrem de tísica/conto os que morrem de bouba, de tifo, de
verminose/conto os que morrem de crupe, de cancro e esquistossomose/mas todos
esses defuntos, morrem de fato é de fome/quer a chamemos de febre ou de
qualquer outro nome/morrem de fome e miséria quatro homens por minuto/embora
enriqueçam outros que deles não sabem muito”
Ferreira Gullar
(1930-2016)
Surgia feito
uma visagem, sentado com as costas na parede, abraçando uma humilde mala de
madeira. Alto, esquálido, com uma mão amparando a cabeça e olhar petrificado
lambendo tristemente o chão. Súbito, um fio de sangue escorre pela boca da
pobre criatura. A maioria dos transeuntes olha de rabo de olho e passa adiante.
Chico Barrão, um petiz curioso e de coração mole, morador da casa defronte onde
se desenrola aquela patética cena, vai oferecer uma cristã ajuda. O pobre homem
pede ao garoto que se afaste, pois ele é um portador de tuberculose pulmonar, a
temível Peste Branca. O inocente, caça avexado no bolso da calça faroeste uma
cédula que serviria para comprar um almanaque do Tarzan na banca da esquina e
entrega o óbolo, satisfeito, ao doente. O homem, agradecendo, em um pinote se
ergue e some rápido no bulício da vida. O pai do garoto, olhando da porta de
casa, não teve tempo de advertir o filho incauto. Conhece a soez atitude
recorrente daquele adulto. Ele mesmo com uma gilete produzia um corte
superficial na língua para promover uma falsa hemoptise. Deste modo alimentava
sua família numerosa às custas da piedade e inocência alheias. No cruel embate
pela sobrevivência o homem pode se brutalizar a esse ponto.
“ Eu um dia
cansado que estava da fome que eu tinha/eu não tinha nada, que fome que eu
tinha/que seca danada no meu Ceará/eu peguei e juntei um restinho de coisas que
eu tinha/duas calças velhas e uma violinha/e num pau-de-arara toquei para cá/e
de noite eu ficava na praia de Copacabana/zanzando na praia de Copacabana/cantando
o xaxado para as moças olhar/Virgem Santa! Que a fome era tanta que nem voz eu
tinha.../zanzando na praia pra lá e pra cá/foi então que eu resolvi comer
gilete.../ tinha um compadre meu lá de Quixeramobim que ganhou um
dinheirão/comendo gilete na praia de Copacabana/eu não sei não, mas acho que
ele comeu tanta, mas tanta, que quando eu cheguei lá/aquela gente toda estava
com indigestão de tanto ver o cabra comer gilete/uma vez eu disse assim para um
moço que vinha passando:
“Ô decente,
vosmecê não deixa eu comer uma giletezinha para vosmecê ver?/” tu não te manca
pau-de-arara?/” só uma, que eu ainda não comi nadinha hoje”/você enche ,
hem?”/aquilo me deixou tão aperreado que se não fosse o amor que eu tinha na
minha violinha/eu tinha arrebentado ela na cabeça daquele...filho de uma
égua/puxa vida, não tinha uma vida pior do que a minha/que vida danada que fome
que eu tinha/mais fome que eu tinha no meu Ceará/quando eu via toda aquela
gente num come-que-come/eu juro que tinha saudade da fome/da fome que eu tinha
no meu Ceará/e aí eu pegava e cantava e dançava o xaxado/e só conseguia porque
no xaxado/ a gente só pode mesmo se arrastar/ Virgem Santa! A fome era tanta
que mais parecia/que mesmo xaxando meu corpo subia/igual se tivesse querendo
voar/às vezes a fome era tanta que volta e meia/a gente arrumava uma
briguinha/para ver se pegava a boia lá do xadrez/eita quentinho bom no
estômago! /com perdão da palavra, a gente devolvia tudo depois/ que a boia já
vinha estragada/mas enquanto ela ficava quentinha lá dentro , que felicidade
!/não, mas as coisas agora estão melhorando. Tem uma dona lá no Leblon que
gosta muito de ver é eu comer caco de vidro/com isso eu já juntei uns
quinhentos mil réis / quando juntar um pouco mais, vou-me embora, volto para
meu Ceará! /vou voltar para o meu Ceará/porque lá tenho um nome/aqui não sou nada,
sou só Zé-com-fome/sou só Pau-de-Arara, nem sei mais cantar/vou picar minha
mula/vou antes que tudo arrebente/porque tô achando que o tempo tá quente/pior
do que anda não pode ficar”
Canção de
Carlos Lyra (1939-) e Vinícius de Moraes (1913- 1980)
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