terça-feira, 29 de novembro de 2022

 O Paudarco

Era o orgulho de meu pai aquela árvore gigante. Ninguém passava pelo caminho sem prestar- lhe a homenagem de um olhar respeitoso , admirando - lhe o caule magnífico, aberta , em cima , a espessa ramagem, quase tocando as nuvens .
Pelo inverno, atingia o máximo de sua opulência vegetal : era um desaforo de clorofila atirado para o céu.
Um rancho de caçadores, certa noite , acampou junto ao paudarco , esperando algum tamanduá perdido nos socavões da serra. Da fogueira que fizeram , uma fagulha se comunicou à raiz do colosso, principiando a queimá-lo num lugar atacado pela broca .
Três dias depois , descobriu - se o atentado , mas era tarde: o fogo subia já pelo tronco , ganhando alento destruidor, e não foi possível mais apagá- lo.
E eu vi a agonia lenta do paudarco. Dias e dias , semanas inteiras , a combustão a lhe queimar secretamente as estranhas, minando - lhe cruelmente o organismo !
E ele permanecia impassível, abrindo no espaço os galhos sobranceiros, agitando no ar a basta cabeleira ... E uma tarde o paudarco agonizou. E todos velavam ao lado do gigante gravemente ferido.
Quantos homens andam por este mundo como essa árvore inditosa ! Quantos homens , que se mostram sadios e venturosos, levam a tuberculose no pulmão ou o inferno moral no peito, morrendo aos poucos , no estoicismo sobre-humano de esconder às multidões a sua infelicidade !
E o paudarco amanheceu caído. Amanheceu num leito de verdura, banhado de orvalho, como se a noite o prateara até a madrugada. Arrastou , na queda , um mundo de cipós, de toupeiras de imbé, crótons e mil arbustos, decepando as árvores vizinhas e esmagando o cafezal rasteiro.
De todas as vítimas uma fez mais pena : a laranjeira, a linda laranjeira , igual à noiva que morreu no altar .
Caindo em honra ao rei morto , coube - lhe a suprema obrigação - pobre virgem da serra ! - a suprema obrigação de ungir o cadáver do soberano com o seu perfume e cobri - lo , depois , com mil carolas opalinas .
Excertos da crônica " O Paudarco " , da autoria de Caio Cid ( 1904 - 1972 ) , nascido em Pacatuba , Ceará.
Cronista , contista , poeta , e , genuinamente , boêmio. Em jornais de Fortaleza , desnudava seu coração sensível, com poemas em prosa, abordando fatos prosaicos do cotidiano. Vivia rodeado de intelectuais e notívagos da cidade , como , Demócrito Rocha , Otacilio de Azevedo, Otávio Lobo e Leonardo Mota .
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Dirceu Azevedo Vasconcelos, Carolina Monte Studart Gurgel e outras 9 pessoas
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