segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Menino Jesus e o Poeta Alberto Caeiro



MENINO JESUS E O POETA ALBERTO CAEIRO ( FERNANDO PESSOA )
Porque sempre é tempo de sonhar, porque sempre é tempo de poesia, porque convém acreditar na eterna infância do homem, segue o mais belo poema de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa):
Num meio–dia de fim de primavera / tive um sonho como uma fotografia / vi Jesus Cristo descer à terra / veio pela encosta de um monte / tornado outra vez menino / a correr e a rolar-se pela erva / e a arrancar flores para as deitar fora / e a rir de modo a ouvir –se de longe / tinha fugido do céu /era nosso demais para fingir / de segunda pessoa da Trindade / no céu era tudo falso , tudo em desacordo / com flores e árvores e pedras / no céu tinha que estar sempre sério / e de vez em quando de se tornar outra vez homem / e subir para a cruz , e estar sempre a morrer / hoje vive na minha aldeia comigo /é uma criança bonita de riso e natural / limpa o nariz ao braço direito / chapinha nas poças de água / colhe as flores e gosta delas e esquece-as / atira pedras aos burros / rouba a fruta dos pomares /e foge a chorar e a gritar dos cães / e , porque sabe que elas não gostam / e que toda gente acha graça /corre atrás das raparigas / que vão em ranchos pelas estradas / com as bilhas às cabeças / e levanta–lhes as saias / a mim ensinou–me tudo / ensinou –me a olhar para as pessoas / aponta–me todas as coisas que há nas flores / ele mora comigo na minha casa no meio do outeiro / Ele é a Eterna Criança , o deus que faltava / ele é o humano que é natural / Ele é o divino que sorri e que brinca / e por isso é que eu sei com toda certeza / que ele é o Menino Jesus verdadeiro / e a criança tão humana que é divina / é esta minha quotidiana vida de poeta / e é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre / e que o meu mínimo olhar / me enche de sensação / e o mais pequeno som , seja do que for / parece falar comigo / a Criança Nova que habita onde vivo / dá–me uma mão a mim / e a outra a tudo o que existe / e assim vamos os três pelo caminho que houver / saltando e cantando e rindo / e gozando o nosso segredo comum / que é o de saber por toda a parte / que não há mistério no mundo / e que tudo vale a pena / a Criança Eterna acompanha–me sempre / a direção do meu olhar é o seu dedo apontando / o meu ouvido atento alegremente a todos os sons / são as cócegas que ele me faz , brincando , nas orelhas / damo – nos tão bem um com o outro / na companhia de tudo / que nunca pensamos um no outro / mas vivemos juntos e dois / com um acordo íntimo / como a mão direita e a esquerda / ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas / no degrau da porta de casa / graves como convém a um deus e a um poeta / e como se cada pedra / fosse todo um universo / e fosse por isso um grande perigo / deixa-la cair no chão / depois eu conto lhe histórias das cousas só de homens / e ele sorri , porque tudo é incrível / ri dos reis e dos que não são reis / e tem pena de ouvir falar das guerras / e dos comércios , e dos navios / que ficam fumo no ar dos altos mares / porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade / que uma flor tem ao florescer / e que anda com a luz do sol / a variar os montes e os vales / e a fazer doer aos olhos os muros caiados / depois ele adormece e eu deito–o / levo–o ao colo para dentro de casa / e deito–o, despindo–o lentamente / e como seguindo um ritual muito limpo / e todo materno até ele estar nu / ele dorme dentro da minha alma / e às vezes acorda de noite / e brinca com os meus sonhos / vira uns de pernas para o ar / põe uns em cima dos outros / e bate palmas sozinho / sorrindo para o meu sono / quando eu morrer , filhinho / seja eu a criança , o mais pequeno / pega–me tu ao colo / e leva–me para dentro da tua casa / despe o meu ser cansado e humano / e deita–me na tua cama / e conta–me histórias, caso eu acorde / para eu tornar a adormecer / e dá – me sonhos teus para eu brincar / até que nasça qualquer dia / que tu sabes qual é ! /
Esta é a história do meu Menino Jesus / por que razão que se perceba / não há–de ser ela mais verdadeira que tudo quanto os filósofos pensam / e tudo quanto as religiões ensinam ? / “ .

Fernando Pessoa alega que Alberto Caeiro tem o direito humano de escrever tal poema. Negar isso a ele, seria o mesmo que negar a Shakespeare o direito de dar expressão à alma de Lady Macbeth, pelo fato do poeta não ser mulher. Enfim, um belo exercício de esculpir palavras e ideias mesmo diante de delicados temas religiosos.

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