domingo, 28 de dezembro de 2014

Há uma criança na rua - Mercedes Sosa


“ A esta hora  exatamente / há uma  criança na rua / há uma criança na rua / é honra dos homens proteger o que cresce / cuidar que não haja infância dispersa pelas ruas / evitar que naufrague seu coração de barco / sua incrível vontade de pão e chocolate / colocar uma estrela no lugar da fome / caso contrário , é inútil , caso contrário é um absurdo / ensaiar na terra a alegria e a música / porque de nada vale , se há uma criança na rua “ / .

“ Todo o tóxico do meu país entra pelo meu nariz / lavo carros , limpo sapatos , cheiro cola e também uso crack/ roubo carteiras , mas sou gente fina , sou um sorriso sem dentes / chuva sem teto , unha com terra , sou o que sobrou da guerra / um estômago vazio , um golpe no joelho que se cura com o frio / o melhor guia turístico da redondeza / por três moedas te guio pela capital / não preciso de visto para voar pelos arredores porque brinco com aviões de papel / arroz com pedra , frango com vinho , e o que me falta eu imagino / não deve andar o mundo  com amor descalço / acenar com um jornal com uma carta na mão / subindo nos trens , substituindo  o riso /  batendo – nos no peito com um lado cansado / não deve andar a vida recém- nascida ,  a preço / a infância arriscada por uma extrema ganância / porque , então , as mãos são fardos inúteis / e o coração , apenas uma pobre palavra / quando cai a noite , durmo acordado , com um olho fechado e o outro aberto / porque senão os tigres me mandam um balaço /minha vida é como um circo , mas , sem palhaço / vou caminhando pelas ruas fazendo malabares com cinco laranjas / pedindo moedas  a todos numa bicicleta de uma só roda / sou oxigênio para este continente / sou o que o presidente descuidou / não se assuste se tenho mau hálito  , se me vês sem camisa com as tetas ao vento /sou um elemento a mais na paisagem / os resíduos da rua sem camuflagem / como alguma coisa que existe , mas de mentira / algo sem vida , mas que respira / pobres são aqueles que se esqueceram de que há/ crianças na rua / que há milhões de crianças que vivem na rua / e muitas crianças que crescem nas ruas / eu os  vejo  apertando seu pequeno coração / a mirando – nos a todos  com uma fábula nos olhos /um relâmpago truncado cruza seus olhos / porque ninguém protege  a vida que cresce / e o amor faz- se perdido , como uma criança solta na rua / “ . Tradução livre da música  “ Hay um nino en  la calle “ .

Hoje, exatamente 25 de dezembro de 2014, à luz de pleno dia, com um sol abrasador, na Avenida Virgílio Távora próximo à Santos Dumont,  não há uma  só criança na rua, mas vários anjinhos  de pés descalços, famintos, mal vestidos e um deles, nu em pelo, a se banhar com uma garrafa de água mineral. E  rindo solto a alegria dos inocentes. Uma cena de filme de  “Luis  Buñuel“.  Tomei  imitando o petiz, sem querer, um banho de água salgada nos  meus olhos cansados.  E meu “anjinho da guarda“  de sete  anos: - “painho não faz isso, senão eu faço igual!  – Não é choro, cabrita, foi um “lacerdinha“ que caiu aqui  no meu olho. Arde, mas passa já".  Porque essa injustiça ainda a nos mostrar esta dura face da  vida?  "- Vamos  embora, rápido, 2014, assim não dá! “.  Que 2015 traga   teto, família, alimento, cobertor, escola, lazer e muito amor para esses anjinhos de Deus,  e se sobrar um tiquinho, manda  pra nós também, né !
P.S:  Nos idos de 60 do século passado  apareceu por essas bandas, junto aos pés de “ficus benjamin” que cobriam a Avenida D. Manoel,  uma praga de pequenos insetos, que dizem trazidos do México. Tais criaturas ao penetrar nos olhos dos transeuntes provocavam um incômodo  ardor. Daí , logo passou a ser chamado  o inseto  de “lacerdinha“, em homenagem a um importante político, jornalista e intelectual  carioca, Carlos Lacerda, que causava incômodos a muita gente, inclusive aos áulicos do poder de então, os Marechais da República.

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