Para Rosali, uma outra fada
" Foi por vontade de Deus / que eu vivo nesta ansiedade / que todos os ais são meus /que é toda minha saudade /foi por vontade de Deus /que estranha forma de vida /tem este meu coração / vive de vida perdida /quem lhe daria o condão / que estranha forma de vida / coração independente / coração que não comando / vive perdido entre a gente /teimosamente sangrando / coração independente / eu não te acompanho mais / para , deixa de bater / se não sabes onde vais / porque teimas em correr / eu não te companho mais “.
Bela, bela, ela, bela Amália, quase que
digo “Amélia“ (aquela mulher de verdade, de Ataulfo), bela estampa de mulher,
diva da música e deusa do fado. Conseguiu Amália conjugar poesia e fado com
graça e leveza, nem parecendo triste e nem piegas, apenas foi do seu jeito.
Fado que, de fato, dizem, aqui surgiu, do lundu africano e daqui partiu, para
Portugal, cruzando o Tenebroso Mar, berço e leito definitivo de tantos bravos
navegadores. Nasceu o fado, dolent , filho da saudade negra d’África e voltou
singrando os mares, em busca de uma futura nova Roma, deitando -se mansamente
nos braços dos eternos amantes ébrios de amor deste Brasil, lindo e trigueiro.
O termo fado origina- se do latim “ fatum “ significando destino. Os antigos
gregos diziam “moira“, o destino implacável, nascido da Noite e do Caos e que dominava os céus, os mares, a terra e os
infernos.
“Não
sei , não sabe ninguém / porque canto fado / neste tom magoado / de dor e de
pranto / e neste tormento / todo sofrimento /eu sinto que a alma cá dentro se
acalma / nos versos que canto / foi Deus / que deu luz aos olhos / perfumou as
rosas / deu oiro ao sol e prata ao luar / foi Deus que me pôs no peito / um
rosário de penas / que vou desfiando e choro ao cantar / e pôs estrelas no céu
/ e fez o espaço sem fim / deu o luto as andorinhas /ai ! , deu-me esta voz a
mim / se canto não sei o que canto / misto de ventura , saudade , ternura / e
talvez amor / mas sei que cantando / sinto o mesmo quando /se tem um desgosto
/e o pranto no rosto /nos deixa melhor /foi Deus /que deu voz ao vento /luz ao
firmamento / e deu o azul às ondas do mar / foi Deus que me pôs no peito /um
rosário de penas / que vou desfiando /e choro ao cantar / fez poeta o rouxinol
/ pôs no campo o alecrim / deu flores à primavera / ai! , e deu-me esta voz a
mim “ .
“
Não queiras gostar de mim /sem que eu te peça / nem me dês nada que ao fim / eu
não mereça /vê se me deitas depois / culpa no rosto /isto é sincero / porque
não quero dar-te um desgosto / de quem eu gosto / nem às paredes confesso / e
até aposto/ que não gosto de ninguém / podes sorrir / podes mentir / podes
chorar também / de quem eu gosto / nem às paredes confesso / quem sabe se te
esqueci / ou se te quero / quem sabe até se é por ti por quem eu espero /se
gosto ou não afinal / isso é comigo / mesmo que penses / que me convences /
nada te digo /. “ Lisboa velha cidade / cheia de encanto e beleza /sempre a
sorrir tão formosa /e no vestir sempre airosa /o branco véu da saudade / cobre
teu rosto ó linda princesa / olhai , senhores ,esta Lisboa d’outras eras /dos
cinco réis , das esperas e das toiradas reais / das festas , das seculares
procissões / dos populares pregões matinais que já não voltam mais / “.
“
Numa casa portuguesa fica bem / pão e vinho sobre a mesa /e se à porta
humildemente bate alguém / senta- se à mesa com a gente / fica bem esta
franqueza , fica bem / que o povo nunca desmente / a alegria da pobreza / está
nesta grande riqueza / de dar e ficar contente / quatro paredes caiadas / um
cheirinho à alecrim / um cacho de uvas doiradas/ duas rosas num jardim / um São
José de azulejo / mais o sol da primavera / uma promessa de beijos / dois
braços à minha espera / é uma casa portuguesa , com certeza / é , com certeza
uma casa portuguesa / no conforto pobrezinho do meu lar / há fartura de carinho
/ e a cortina da janela é o luar / mais o sol que bate nela / basta pouco ,
poucuchinho pra alegrar / uma existência singela / é só amor , pão e vinho / e
um caldo verde , verdinho / a fumegar na tigela / é uma casa portuguesa , com
certeza / é , com certeza , uma casa portuguesa / . “
Amália da Piedade Rebordão Rodrigues,
nasceu em Lisboa em 23 de julho de 1920 e parou seu fado em 6 de outubro de
1999. Apodada de “ Rainha do Fado “ deixou gravado mais de 170 discos ao longo
de sua trajetória. Cantou em português, espanhol, italiano e francês. Seu pai
era sapateiro e tocava trompete em uma banda. Amália foi acusada de colaborar
com o regime fascista de Antônio de Oliveira Salazar (1889–1970), participando
do triplo F do ditador português: Fátima, fado e futebol . Em 1961 anunciou o
abandono da carreira e a intenção de morar no Brasil após o casamento, em
segundas núpcias, com o engenheiro brasileiro César Seabra. Ruy Guerra e Chico
Buarque elaboraram uma bela canção sobre o renascimento de Portugal com a
Revolução dos Cravos (25 de abril de 1974):
“
Oh , musa do meu fado / oh , minha mãe gentil / te deixo consternado / no
primeiro abril / mas não sê tão ingrata / não esquece quem te amou /e em tua
densa mata / se perdeu e se encontrou / ai, esta terra ainda vai cumprir seu
ideal / ainda vai tornar–se um imenso Portugal / sabe , no fundo eu sou um
sentimental / todos nós herdamos no sangue lusitano / uma boa dosagem de
lirismo (além da sífilis, é claro) / mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas
em torturar , esganar , trucidar / o meu coração fecha os olhos e sinceramente
chora / com avencas na caatinga / alecrins no canavial /licores na moringa / um
vinho tropical /e a linda mulata / com rendas do Alentejo / de quem numa
bravata arrebata um beijo / ai , esta terra ainda vai cumprir seu ideal / ainda
vai tornar-se um imenso Portugal / meu coração tem um sereno jeito / e as
minhas mãos o golpe duro e presto /de tal maneira que , depois de feito /
desencontrado eu mesmo me contesto / se trago as mãos distantes do meu peito /
é que há distância entre intenção e gesto /e se o meu coração nas mãos estreito
/ me assombra a súbita impressão de incesto / quando me encontro no calor da
luta / ostento a aguda empunhadura à proa /mas meu peito se desabotoa /e se a
sentença se anuncia bruta / mais do que depressa a mão executa / pois senão o
coração perdoa / guitarras e sanfonas / jasmins, coqueiros, fontes /sardinhas,
mandioca / num suave azulejo / e o rio Amazonas / que corre Trás – os – Montes
/ e numa pororoca deságua no Tejo / ai ,esta terra ainda vai cumprir seu ideal
/ ainda vai tornar –se um império colonial / “ .
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