domingo, 19 de novembro de 2017

CONJUGAÇÃO DO VERBO RAPIO
Para o polígrafo Eurípedes Chaves Junior




“Encomendou   el-rei D. João, o terceiro, a São Francisco Xavier, o informasse do estado da Índia por via de seu companheiro, que era mestre do príncipe; e o que o santo escreveu de lá, sem nomear ofícios nem pessoas, foi que o verbo rapio na Índia se conjugava por todos os modos.

Conjugam por todos os modos o verbo rapio, porque furtam por todos os modos da arte, não falando em outros novos e esquisitos, que nem conhecem Donato nem Despautério.

Tanto que lá chegam, começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos, é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como tem o mero e misto império, todo ele, aplicam despoticamente às execuções na rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quando lhes mandam: e, para que mandem, todos os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem; e, gabando as cousas desejadas aos donos delas, por cortesia sem vontade as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam; e basta só que ajuntem a sua graça, para serem quanto menos meeiros na ganância. Furtam pelo modo potencial, porque sem pretexto nem cerimônia usam da potência. Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões. Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem fim o furtar com o fim do governo, e sempre já deixam raízes, em que se vão continuando os furtos. Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas, porque a primeira pessoa do verbo é a sua; as segundas, os seus criados; e as terceiras, quantas para isso tem indústria e consciência. Furtam juntamente por todos os tempos; porque do presente, que é o seu tempo, colhem quanto dá de si o triênio; e, para incluírem no presente o pretérito e o futuro, do pretérito desenterram crimes que de que vendem os perdões, e dívidas esquecidas, de que se pagam inteiramente; e do futuro empenham as rendas e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a cair nas mãos. Finalmente, nos mesmos tempos não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, mais que perfeitos, e quaisquer outros; porque, furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em suma, que o resumo de toda essa rapante conjugação vem ser o supino do mesmo verbo: a furtar, para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados de despojos e ricos; e elas ficam roubadas e consumidas.”  (Vieira, Sermões, Tomo III, pag. 344.)


P.S.: Crônica do padre Antônio Vieira sobre a Índia de antanho, mas que cabe como uma luva, nos dias hodiernos para um” gigante adormecido” sufocado por um cancro avassalador corroendo suas entranhas, incluindo os três podres poderes pátrios!


Antônio Vieira, padre da Companhia de Jesus (Lisboa, 1608-1697) foi exímio pregador, notável epistológrafo e autor de opúsculos de menor valia. Como orador sagrado atingiu universal nomeada, e aos brasileiros simpaticamente se recomenda como propugnador da liberdade dos índios, e eloquente adversário da invasão holandesa. Envolvido nos interesses políticos da época, prestou relevantes serviços à sua pátria. Viveu largos anos no Brasil, e em Roma pregou perante o sumo pontífice Clemente X. Em sua trabalhosa existência, duas vezes provou as agruras do cárcere: no Maranhão, onde foi preso pelos sectários da escravidão dos indígenas e remetido para o Reino; e pela inquisição que levara a mal certas arriscadas proposições do Quinto Império.

Posto que pague copioso tributo ao imoderado posto das antíteses, Vieira é um dos melhores mestres da língua e oferece lato campo de estudo aos amadores da vernaculidade. (Antologia Nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet; Livraria Francisco Alves; 1931.)


Um comentário:

  1. Excelente artigo sobre o grande Pe. António (com acento agudo mesmo) Vieira. Muito grato pela honrosa dedicatória.
    Abraço fraterno do
    Eurípedes Chaves Júnior.

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