CONJUGAÇÃO DO VERBO RAPIO
Para o polígrafo Eurípedes Chaves
Junior
“Encomendou el-rei D. João, o terceiro, a São Francisco
Xavier, o informasse do estado da Índia por via de seu companheiro, que era
mestre do príncipe; e o que o santo escreveu de lá, sem nomear ofícios nem
pessoas, foi que o verbo rapio na Índia se conjugava por todos os modos.
Conjugam por
todos os modos o verbo rapio, porque furtam por todos os modos da arte, não
falando em outros novos e esquisitos, que nem conhecem Donato nem Despautério.
Tanto que lá
chegam, começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que
pedem aos práticos, é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem
abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como tem o mero e misto
império, todo ele, aplicam despoticamente às execuções na rapina. Furtam pelo
modo mandativo, porque aceitam quando lhes mandam: e, para que mandem, todos os
que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque desejam
quanto lhes parece bem; e, gabando as cousas desejadas aos donos delas, por
cortesia sem vontade as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam
o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam; e basta só que ajuntem a sua
graça, para serem quanto menos meeiros na ganância. Furtam pelo modo potencial,
porque sem pretexto nem cerimônia usam da potência. Furtam pelo modo
permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões.
Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem fim o furtar com o fim do governo,
e sempre já deixam raízes, em que se vão continuando os furtos. Estes mesmos
modos conjugam por todas as pessoas, porque a primeira pessoa do verbo é a sua;
as segundas, os seus criados; e as terceiras, quantas para isso tem indústria e
consciência. Furtam juntamente por todos os tempos; porque do presente, que é o
seu tempo, colhem quanto dá de si o triênio; e, para incluírem no presente o
pretérito e o futuro, do pretérito desenterram crimes que de que vendem os
perdões, e dívidas esquecidas, de que se pagam inteiramente; e do futuro
empenham as rendas e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído
lhes vem a cair nas mãos. Finalmente, nos mesmos tempos não lhes escapam os
imperfeitos, perfeitos, mais que perfeitos, e quaisquer outros; porque, furtam,
furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em
suma, que o resumo de toda essa rapante conjugação vem ser o supino do mesmo
verbo: a furtar, para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz
ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se
tiveram feito grandes serviços, tornam carregados de despojos e ricos; e elas
ficam roubadas e consumidas.” (Vieira,
Sermões, Tomo III, pag. 344.)
P.S.:
Crônica do padre Antônio Vieira sobre a Índia de antanho, mas que cabe como uma
luva, nos dias hodiernos para um” gigante adormecido” sufocado por um cancro
avassalador corroendo suas entranhas, incluindo os três podres poderes pátrios!
Antônio
Vieira, padre da Companhia de Jesus (Lisboa, 1608-1697) foi exímio pregador,
notável epistológrafo e autor de opúsculos de menor valia. Como orador sagrado
atingiu universal nomeada, e aos brasileiros simpaticamente se recomenda como
propugnador da liberdade dos índios, e eloquente adversário da invasão
holandesa. Envolvido nos interesses políticos da época, prestou relevantes
serviços à sua pátria. Viveu largos anos no Brasil, e em Roma pregou perante o
sumo pontífice Clemente X. Em sua trabalhosa existência, duas vezes provou as
agruras do cárcere: no Maranhão, onde foi preso pelos sectários da escravidão
dos indígenas e remetido para o Reino; e pela inquisição que levara a mal
certas arriscadas proposições do Quinto Império.
Posto que
pague copioso tributo ao imoderado posto das antíteses, Vieira é um dos
melhores mestres da língua e oferece lato campo de estudo aos amadores da
vernaculidade. (Antologia Nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet;
Livraria Francisco Alves; 1931.)
Excelente artigo sobre o grande Pe. António (com acento agudo mesmo) Vieira. Muito grato pela honrosa dedicatória.
ResponderExcluirAbraço fraterno do
Eurípedes Chaves Júnior.