UM ENIGMA E UMA LIÇÃO HIPOCRÁTICA
Para a velha-guarda de parteiros do
Ceará
Uma jovem
foi internada em caráter de urgência num Hospital-Escola no centro de
Fortaleza. Corria o ano de 1973. Era prática corriqueira a admissão ser
realizada por um graduando de medicina daquele modelar nosocômio. Foram
colhidos, na ocasião, os seguintes dados: M., cliente de 23 anos de idade, solteira,
estudante universitária, aparência saudável, relatando ausência de menstruação
há 7 meses, que coincidiu com o aumento volumétrico do abdome. Ao exame físico:
pulso e pressão arterial dentro da normalidade. Mucosas coradas. Ausculta
cardiopulmonar sem alterações. Mamas de volume e coloração normais. Abdome
abaulado, tenso, com massa lisa chegando a reborda costal, levemente dolorosa.
Não foram ouvidos batimentos cardíacos fetais com o estetoscópio de madeira, de
Pinard. Ao toque combinado: colo longo e fechado.
Um bilhete
colado na capa do prontuário assinado por um médico sugeria o internamento da
cliente por conta de um provável início de trabalho de parto. O jovem interno,
com todo o cuidado do mundo, procurou de imediato um contato com o médico da
cliente. Gostaria de dar, com todo respeito, sua humilde opinião sobre o caso.
A jovem lhe relatara que há muito tempo não tinha parceiro sexual. Na palpação
abdominal não conseguira palpar partes fetais conforme as manobras de Leopold e
na ausculta nada de batimentos cardíacos fetais.
Com um
semblante cerrado, o médico pergunta ao estudante: “- quer dizer que não
estamos diante de uma gravidez? “- e o
Pregnosticon (exame de urina) positivo para gravidez, não vale? “ - e o ventre volumoso representa ascite ou um
tumor? “ . O jovem estudante, engolindo a saliva seca, pediu desculpas pela sua
intromissão indevida, fruto de sua pouca experiência.
Deu-se
início por ordem médica a uma indução do parto de um “ feto morto “. Cumpre
sinalar que na época não havia no Ceará exames de ultrassonografia, que por
aqui aportaram somente no final da década de 70. Depois de dois dias de indução
do parto sem resposta alguma, convocou-se uma reunião com o staff da
obstetrícia do hospital. Um dos presentes sugeriu a realização de um raio X
simples do abdome para ver se a gravidez era dentro ou fora do útero, o que
justificaria o malogro da indução com ocitocina. O laudo do radiologista foi
claro: Tumor de ovário contendo estruturas semelhantes a dentes, configurando
um provável Teratoma benigno. De fato, não se tratava, realmente, de gravidez.
O jovem
estudante que há pouco admitira a cliente, pedira a um colega de turma que
assistisse a reunião do staff sobre o caso, pois faltara-lhe coragem e,
ademais, com fins de evitar um constrangimento. E foi um pouco depois encontrado
num bar próximo ao hospital, sorvendo uma caninha Guaramiranga, empalhada, com
tira-gosto de torresmo, acompanhando ao vivo a performance do grande seresteiro
Vilamar Damasceno (1946 -1989), abraçado ao pinho, com uma de suas belas
melodias, “ Meu Lamento”:
“ Ah! Esta praia,
esta canção, esta noite e o meu violão/ fazem-me sonhar / ah! Se eu soubesse/
onde está meu amor/ meu lamento não seria de dor/ mar responde, por favor/ onde
está meu amor/, se está sozinho, sem um carinho, sem um calor/
É só a ti
que não sabes mentir/ é que pergunto/ não deixes que o tempo responda, traduza
errado/ tudo o que sinto “
O outrora
estudante, hoje um esculápio ainda em plena labuta no outono da vida, guarda a
singela lição do grande mestre, Sir William Osler (1849- 1919):
“Os quatro pontos de um compasso do estudante
de medicina são: inspeção, palpação, percussão e ausculta”.
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