quinta-feira, 23 de março de 2017

ORAÇÃO À CHUVA, DE PERBOYRE E SILVA




“ Os que nascemos no bochorno cearense aprendemos a amar-te o cântico, ó mãe das searas fecundas e dos lares bonançosos. Refrigério das estradas combustas e das rechãs estioladas. Embrião da alegria e da paz. Unção misericordiosa do Ceará. És uma romanza de amor. O Solo, o Solo cearense, que a canícula estorrica e inflama, é teu enamorado eterno. Quanto mais foges, mais ele te deseja e mais arde, mais se calcina e mais se inferniza, no desespero de tua ausência. Estala na sede de teu beijo. Combure-se tantalizado. Anseia por ti, chispa revérberos de ódio, porque o fogo de suas entranhas exige o sedativo do teu bálsamo, a maciez do teu afago, a pianíssima ternura glacial de tuas gotas. E –  pobre enamorado – repulsa de sobre si os últimos lampejos da vida. E transforma sua face num lutuoso painel de catacumbas.

Mas, quando vens, e desces, noiva simbólica, tamborilando o rumor de tuas bátegas, o Solo recebe a carícia dos teus ósculos. Embebe-os, sôfrego. Transfigura-se. E opera-se, nesse encontro o milagre sempiterno do amor. Do amor que dá entusiasmo e dá frutos. Do amor que perpetua, na face da terra, FIAT genesíaco da criação.
A natureza, nesse encontro, representa o grande tálamo nupcial – teu e do Solo.
Que belo é, senão o produto desse amor, o florir dos mandacarus e dos manacás, dos milharais de espigas louras e dos canaviais que farfalham? Donde nascem, ó noiva cantarolante, senão da força geratriz de seus beijos, a policromia dos pomares e o tropical esplendor das colheitas? Donde o aroma dos mofumbais em flor, a ressureição dos bugaris e dos girassóis?  Donde e por que, senão de ti e por ti, esse hinário de natal, a proliferação da vida e a seiva das vergônteas que desabrocham na terra, emoldurando-a de verde?

Renova, todos os anos, ó chuva, esse milagre bíblico de amor.
Carícia do firmamento, geradora das clorofilas, mãe das cores da Esperança, modula, sempre, a serata das tuas águas, porque és fada que transformas o deserto líbico de nossa terra no roseiral da promissão!
És o impulso inicial da nossa existência de povo. Sem ti, morrerá conosco, em nossa inquieta geração, a sementeira da nossa raça. Agônica, definhará a galeria de nossos homens. Sem ti, haveremos de pulverizar-nos e sucumbir. E não daremos mais ao Brasil nem o heroísmo nem a luz. Nem a carne para as metralhadoras, nem a centelha para as lucubrações do espírito. Daremos, apenas, no infortúnio patibular de tua ausência, e no delíquio final, a última procissão brasileira dos mártires e dos santos.
Volta, sempre, e realiza, todos os anos, junto ao Solo, o milagre do teu amor!
Faze-o, para que as nossas montanhas reverdeçam, engrinaldadas de rosas. Para que as águas cascateiem, sonoras, nos arroios e nas grotas. Para que se multipliquem as messes do nosso labor. Para que os algodoais, lembrando asas de cisnes, abram os flocos brancos, como visão de eucaristias. Para que nos radiquemos à gleba. Para que de nossas mãos desapareça o bornal dos mendigos. Para que as violas continuem a gemer, e os sambas a vibrar, nas cenografias dos sertões. Para que o corpo de nossa gente, dos nossos gibões de couro, repouse, um dia, alquebrado, não nos pauis da Amazônia, mas nas entranhas da nossa terra.

Opera, todos os anos, ó Chuva, o milagre eterno do amor. Apieda-te do nosso Solo, que, quanto mais foges, mais se contorce e mais arde, mais se estiola e calcina, mais se definha e mais se inferniza, desesperado e trágico, na sede infinita do teu beijo.
Volta, de novo, ó Chuva, sobretudo agora, e faze reacender-se em nossos lares o círio votivo da Esperança.                        (Da Revista da Academia Cearense de Letras, 1953)

João Perboyre e Silva (1905 – 1965), filho de Luís José da Silva e Maria Júlia Moreira Silva, nasceu no município de Redenção no estado do Ceará. Pertenceu à Academia Cearense de Letras como Titular da Cadeira 33, que tem como Patrono Rodolfo Marcos Teófilo. “ Foi um prosador primoroso, orador vibrante, professor emérito e jornalista sem medo e sem mácula, voz e espírito sempre unidos na defesa dos sãos princípios “.




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