ORAÇÃO À CHUVA, DE
PERBOYRE E SILVA
“ Os que nascemos no bochorno cearense aprendemos a amar-te
o cântico, ó mãe das searas fecundas e dos lares bonançosos. Refrigério das
estradas combustas e das rechãs estioladas. Embrião da alegria e da paz. Unção misericordiosa
do Ceará. És uma romanza de amor. O Solo, o Solo cearense, que a canícula
estorrica e inflama, é teu enamorado eterno. Quanto mais foges, mais ele te
deseja e mais arde, mais se calcina e mais se inferniza, no desespero de tua
ausência. Estala na sede de teu beijo. Combure-se tantalizado. Anseia por ti,
chispa revérberos de ódio, porque o fogo de suas entranhas exige o sedativo do
teu bálsamo, a maciez do teu afago, a pianíssima ternura glacial de tuas gotas.
E – pobre enamorado – repulsa de sobre
si os últimos lampejos da vida. E transforma sua face num lutuoso painel de
catacumbas.
Mas, quando vens, e desces, noiva simbólica, tamborilando o
rumor de tuas bátegas, o Solo recebe a carícia dos teus ósculos. Embebe-os,
sôfrego. Transfigura-se. E opera-se, nesse encontro o milagre sempiterno do
amor. Do amor que dá entusiasmo e dá frutos. Do amor que perpetua, na face da
terra, FIAT genesíaco da criação.
A natureza, nesse encontro, representa o grande tálamo
nupcial – teu e do Solo.
Que belo é, senão o produto desse amor, o florir dos
mandacarus e dos manacás, dos milharais de espigas louras e dos canaviais que
farfalham? Donde nascem, ó noiva cantarolante, senão da força geratriz de seus
beijos, a policromia dos pomares e o tropical esplendor das colheitas? Donde o
aroma dos mofumbais em flor, a ressureição dos bugaris e dos girassóis? Donde e por que, senão de ti e por ti, esse
hinário de natal, a proliferação da vida e a seiva das vergônteas que
desabrocham na terra, emoldurando-a de verde?
Renova, todos os anos, ó chuva, esse milagre bíblico de
amor.
Carícia do firmamento, geradora das clorofilas, mãe das
cores da Esperança, modula, sempre, a serata das tuas águas, porque és fada que
transformas o deserto líbico de nossa terra no roseiral da promissão!
És o impulso inicial da nossa existência de povo. Sem ti,
morrerá conosco, em nossa inquieta geração, a sementeira da nossa raça.
Agônica, definhará a galeria de nossos homens. Sem ti, haveremos de
pulverizar-nos e sucumbir. E não daremos mais ao Brasil nem o heroísmo nem a
luz. Nem a carne para as metralhadoras, nem a centelha para as lucubrações do
espírito. Daremos, apenas, no infortúnio patibular de tua ausência, e no
delíquio final, a última procissão brasileira dos mártires e dos santos.
Volta, sempre, e realiza, todos os anos, junto ao Solo, o
milagre do teu amor!
Faze-o, para que as nossas montanhas reverdeçam,
engrinaldadas de rosas. Para que as águas cascateiem, sonoras, nos arroios e
nas grotas. Para que se multipliquem as messes do nosso labor. Para que os
algodoais, lembrando asas de cisnes, abram os flocos brancos, como visão de
eucaristias. Para que nos radiquemos à gleba. Para que de nossas mãos
desapareça o bornal dos mendigos. Para que as violas continuem a gemer, e os
sambas a vibrar, nas cenografias dos sertões. Para que o corpo de nossa gente,
dos nossos gibões de couro, repouse, um dia, alquebrado, não nos pauis da
Amazônia, mas nas entranhas da nossa terra.
Opera, todos os anos, ó Chuva, o milagre eterno do amor.
Apieda-te do nosso Solo, que, quanto mais foges, mais se contorce e mais arde,
mais se estiola e calcina, mais se definha e mais se inferniza, desesperado e
trágico, na sede infinita do teu beijo.
Volta, de novo, ó Chuva, sobretudo agora, e faze
reacender-se em nossos lares o círio votivo da Esperança. (Da Revista da Academia Cearense de Letras,
1953)
João Perboyre e Silva (1905 – 1965), filho de Luís José da
Silva e Maria Júlia Moreira Silva, nasceu no município de Redenção no estado do
Ceará. Pertenceu à Academia Cearense de Letras como Titular da Cadeira 33, que
tem como Patrono Rodolfo Marcos Teófilo. “ Foi um prosador primoroso, orador
vibrante, professor emérito e jornalista sem medo e sem mácula, voz e espírito
sempre unidos na defesa dos sãos princípios “.
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