sábado, 9 de abril de 2016

UMA CRÔNICA DA DAMA RACHEL DE QUEIRÓZ

Ano de 2016, mês de “ abril chuvas mil “ o cearense, uma vez mais implora aos céus um tiquinho d’água para aplacar a sede das gentes e dos bichos. Numa crônica datada de 23 de agosto de 1947 a grande dama cearense Rachel de Queiróz (1910 - 2003) desenha numa mimosa folha de papel “ Um Alpendre, Uma rede, Um Açude “:
“ Claro que esses três são apenas os termos essenciais: o alpendre é o abrigo, a rede o repouso, o açude a garantia de água e vida. Mas fora isso há os complementos – a casa, por exemplo. Fica a cavaleiro do alto e além do alpendre largo de três metros que dê uma boa rede atravessada, tem a sala ladrilhada de tijolos de barro vermelho, com a mesa e os tamboretes; a camarinha com o baú e a outra rede que a gente procura nas horas frias da madrugada; o corredor e a cozinha, com o fogão de terra ao canto, o pilão deitado e a cantareira dos potes bem fresca, posta na correnteza de ar.
À mão direita da casa o roçado- só uma garra de terra com quatro pés de milho e feijão para se ter o que comer verde. O chiqueiro da criação, com a sua dúzia de cabeças, entre cabras e ovelhas. Talvez uma vaca dando leite.
E o açude pequeno e fundo, ali ao pé, tão perto que não seja um esforço apanhar uma cabaça de água ou descer de casa para mergulhar e refrescar o corpo, nas horas de sol mais forte.
Um anzol pequeno de cará, um anzol maior para traíra, talvez uma espingardinha de chumbo para atirar num mergulhão ou numa marreca. O pau de matar cobra, o caco de enxada, o facão, a cuia de tirar leite.
Nada mais. Nem trabalho, nem ambição. Nem algodoal de colheita rica, nem pomar, nem curral cheio de gado fino. Nem baixio plantado de cana, nem engenho, nem alambique. Logo adiante do terreiro batido, o mato cresce por si, sem carecer de plantio nem limpa – Deus o faz nascer em janeiro e o próprio Deus o seca em julho.
Só a paz, o silêncio, a preguiça. O ar fino da manhã, o café ralo, a perspectiva do dia inteiro sem compromisso nem pressa. Vez por outra, um conhecido que chega conta as novidades, bebe um caneco d’água, ganha de novo a estrada.
Qualquer coisa enche a panela e o estômago, que o corpo quando dá pouco, pede pouco.
O esforço maior será mesmo o roçado, que é mister cercar ao menos com uma ramada de garrancho espinhento, abrir as covas, plantar ao romper das primeiras chuvas, dar uma ou duas limpas de enxada antes de apanhar o feijão e quebrar o milho. Assim mesmo, se se atirar aqui e além umas sementes de melão, jerimum ou cabaça, a rama alastra entre as covas do legume e não deixa o mato crescer.
No mês de janeiro rebenta verdinha a babugem do chão e as galinhas-d’angola semi- selvagens que moram no juazeiro do quintal começam a tirar suas ninhadas. Com o crescer das águas cresce o pasto, as cabras e a vaca dão cria. Se o ano for de bom inverno, talvez então o açude sangre, e o peixe sobe em cardume pela cachoeirinha do sangradouro, tanto e tão desnorteado que até se pega com a mão. No mês de maio as moitas de mofumbo se abrem todas em flores amarelas e enchem o ar com o seu cheiro doce de mimosa; em maio, também devem estar em flor as aguapés na tona do açude.
Em junho se quebra o milho e em julho é a floração dos pau- d’arcos; quase ao mesmo tempo começa a murchar a rama. Em agosto o mato perde a folha, que em setembro já forma um tapete quebradiço e ininterrupto no chão.
Dai por diante, com a caatinga seca, o mato cor – de – cinza na terra cor – de- cinza, por baixo do céu limpo e azul, começa a grande paz do verão. Os bichos pastam o capim seco e vêm beber pacificamente, sempre no mesmo lugar e a horas certas. A rede no alpendre balança e refresca na hora do mormaço e recebe a gente no colo, maternalmente.
E embora aconteça que o verão se prolongue janeiro afora, e não venha chuva, e o ano for péssimo – para isso mesmo ali está o açude com água para três anos – e nunca houve seca mais longa do que três anos. Ali estão os juazeiros, o pé de mandacaru para de tarde se dar rama à vaquinha e ao garrote. As cabras deixe estar que elas cuidam de si – as ovelhas é que talvez morram – mas que falta faz uma ovelha?
O chão não se acaba – e afinal de contas só do chão precisa o homem – para sobre ele andar enquanto vivo, e no seu seio repousar, depois de morto “

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