sexta-feira, 9 de outubro de 2015

                      UM HOMEM DE CONSCIÊNCIA / MONTEIRO LOBATO
 
“ Chamava – se João Teodoro , só . O mais pacato e modesto dos homens . Honestíssimo e lealíssimo , com um defeito apenas : não dar o mínimo valor a si próprio . Para João Teodoro , a coisa de menos importância no mundo era João Teodoro . Nunca fora nada na vida , nem admitia a hipótese de vir a ser alguma coisa .  E por muito tempo não quis nem sequer o que todos ali queriam : mudar – se para uma terra melhor . Mas João Teodoro acompanhava com aperto de coração o desaparecimento visível de sua Itaoca .
- Isto já foi muito melhor , dizia consigo .Já teve três médicos , bem , agora , só um e bem ruinzote . Já teve seis advogados e hoje mal dá serviço a um rábula ordinário como o Tenório . Nem circo de cavalinhos bate mais por aqui . A gente que presta se muda .  Fica o restolho . Decididamente a minha Itaoca está se acabando .
João Teodoro entrou a incubar a ideia de também mudar – se , mas para isso necessitava dum fato qualquer que o convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha mesmo concerto ou arranjo possível .
- É isso , deliberou lá por dentro . Quando verificar que tudo está perdido , que Itaoca não vale mais nada de nada , então arrumo a trouxa , e boto – me fora daqui .
Um dia aconteceu a grande novidade : a nomeação de João Teodoro para delegado . Nosso homem recebeu a notícia como se fosse uma cacetada no crânio  . Delegado , ele ? Ele que não era nada , nunca fora nada , não queria ser nada , não se julgava capaz de nada...
Ser delegado numa cidadezinha daquelas é coisa  seríssima . Não há cargo mais  importante . É o homem que prende os outros , que solta , que manda dar sovas , que vai à capital falar com o governo . Uma coisa colossal ser delegado  -  e estava ele , João Teodoro , de-le-ga-do de Itaoca !...
João Teodoro caiu em meditação profunda . Passou a noite em claro , pensando e arrumando as malas . Pela madrugada , botou –as num burro , montou no seu cavalinho magro e partiu .
Antes de deixar a cidade foi visto por um amigo madrugador .
_ Que é isso João ? para onde se atira tão cedo , assim de armas e bagagens ?
_ Vou – me embora , respondeu o retirante . Verifiquei que Itaoca chegou mesmo ao fim .
_  Mas como? Agora que você está delegado ?
_ Justamente por isso . Terra em que João Teodoro chega a delegado , eu não moro . Adeus .
E sumiu  . “
Extraído do livro publicado em 1919 ,  Cidades Mortas , de Monteiro Lobato ( 1882 – 1948 ) , “ Um Homem de Consciência “ descreve a situação de um simplório e pacato cidadão  de Itaoca que se vê obrigado a deixar tudo para trás por conta daquele marasmo e por não acreditar em si mesmo . Muitos “ João Teodoros “   mourejam  em Pindorama , mudos , bovinos ,  caminhando sem eira nem beira  , passivamente , rumo ao abatedouro .  Os circos de Pindorama concentram – se no planalto central com velhos palhaços sem  graça , repetindo as mesmas piadas grosseiras , com palavras de baixo calão .
Delegados de fibra  , os pouco existentes , vivem com a corda no pescoço , laçados pelos áulicos do poder . Os magistrados  , muitos com estrambóticos nomes difíceis de escrever e pronunciar não se definem em que lado pelejam , do lado do  povo ou dos poderosos  .
Muitos cidadãos e cidadãs de Pindorama sonham  em migrar para Shangri –las  como Miami , Canadá e  Austrália . Para destinos como as “ paradisíacas “  Venezuela , Cuba e Bolívia , ninguém se aventurou em pedir abrigo . Estes “ João Teodoros “  de Pindorama parecem tolos , mas não são loucos ! .






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