O GATO E O PREDADOR
Para Rosali
“O gato. Se o gato fosse gente, seria Oscar Wilde...
Displicente. Cético. Gozador. Um gato, se é angorá, gato de luxo, cor de chumbo,
preto ou branco, como um arminho ou um pompom ; um gato, se é ordinário ,
parecido com uma jacutinga ou como um maracajá – um gato é sempre um boêmio
nostálgico e sensual...
Na quentura de uma almofada de seda; com a cabeça entre as
patas de veludo róseo, ou nos telhados, junto às chaminés, serenata à lua, o
gato é a síntese da vagabundagem inteligente; o gozo sem sacrifício ; a vida
sem os compêndios da moral; o amor do próprio bem estar; a despreocupação,
quanto aos princípios de gratidão e gentilezas banais – a unha que arranha ,
quando o contrariam; a carícia que ele ama quando o aconchegam ; o abandono do
afeto, quando este afeto importa no alienar o seu prazer . Foi isso tudo que
deu ao gato aquele cantor que foi Baudelaire.
O gato é um requintado. E vivia tranquilo, porque não
andando em bandos, nem perturbando a ordem pública, ficou livre (ao contrário
do cachorro), das leis da polícia e das posturas municipais.
Epicurista; dormindo de dia e saindo de noite; andando
cautelosamente pelos passeios das avenidas e praças; preferindo as alturas dos
bangalôs e dos arranha- céus; fazendo das telhas das casas, os recintos de seus
cabarés, gatas bailarinas e gatos tenores, nos delírios mais arrepiados do amor,
contra o gato só existia a raiva dos neurastênicos, dos que se julgam lesados
com o gozo alheio , seja dos gatos , seja de semelhantes racionais...
Mas veio o samba. E com o samba a cuíca. E para a cuíca, o
malandro descobriu que o couro mais forte e mais harmonioso é o do gato. Assim
são trágicas as caçadas noturnas nos arrabaldes e nos subúrbios da capital. O
malandro anda pelos telhados e coradouros alçando laços de arame no
enforcamento do simpático animal. Laçado o gato, fazem-lhe dois cortes nas
patas dianteiras. Sopram-lhes os cortes com canudos de mamoeiro. E o gato,
morto e cheio de vento fica como uma
bola . Então é só dar um talho reto da goela ao fim do ventre, e o couro sai
todo. Dentro de oito dias é uma cuíca vibrando surda no samba de tão singular
emoção.
Aquele couro facilmente retirado e posto ao sol, com a cinza
do fogão que foi leito amável do animal encantador, continua a nostalgia do
bicho trucidado que vem formar na melodia dos que se divertem, líricos como ele,
e talvez nostálgicos também, tirando sons da barrica musical, sem pensar na
matéria prima emocional , que era aquele companheiro contemplativo , e também
cantor nas horas mortas , quanto o amor e o luar dos abajures fazem suas
conspirações “
Texto retirado do livro “Samba: sua história, seus poetas,
seus músicos e seus cantores “do poeta, jornalista, radialista, cronista,
cantor e compositor Orestes Barbosa (1893 – 1966) publicado em 1933 pela Livraria
Educadora do Rio de Janeiro . Na crônica o coração do poeta põe a nu o caráter
anormal do maior bicho predador da natureza!
Orestes Barbosa construiu uma bela jornada nos campos do
jornalismo, da poesia e da música popular brasileira. Deixou sete livros de
crônicas; dois de poesia; um de ensaio ; dezenas de músicas , dentre elas a
eterna “ Chão de Estrelas “ com a mimosa passagem “ A porta do barraco era sem trinco/ mas a lua
furando nosso zinco / salpicava de estrelas o nosso chão / tu pisavas os astros
distraída/ sem saber que a ventura desta vida / é a cabrocha , o luar e o
violão “
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