JOÃO JACQUES E A LIBERDADE
João Jacques Ferreira Lopes (1910 – 1999), jornalista, cronista, poeta e pintor, nasceu no dia 27 de janeiro de 1910, na cidade de Fortaleza. Seus pais foram, o maestro Henrique Jorge Ferreira Lopes e Júlia Magalhães Jorge. O político e jornalista Paulo Sarasate era seu irmão. Suas primeiras letras foram tomadas no Externato São Rafael, anexo ao Colégio da Imaculada Conceição e em seguida partiu para os conceituados Colégio Nogueira, Colégio São Luís, Liceu do Ceará e Seminário Arquidiocesano de Fortaleza. Participou em 1929 da criação do jornal modernista, de efêmera duração, “ Cipó de Fogo “. Durante anos brindou a todos com poéticas crônicas no Jornal O Povo, na capital cearense.
Publicou: “ Aspectos Econômicos do Ceará (1954); “ Alma em Corpo oito “ (1964); “ A Grande Viagem “ (1966); “ Os Cardeiros Sangram “(1968) ; “ Uma Fantasia e Nove Histórias Reais “ (1969 ) ; “ A Prece do Menino Aflito “ (1971) ; “ A Canção do Tempo” ( 1978 ) ; “ Galeria de Honra “ ( 1986) ; “ Otacílio Azevedo “ (1992) . João Jacques pertenceu a Academia Cearense de Letras, onde ocupou a Cadeira de n° 28.
No Almanaque do Ceará em sua edição de 1949 aparece a poética crônica de João Jacques “ A Borboleta e a Liberdade “ escrita nos negros tempos da ditadura do “ Pai dos Pobres “ Getúlio Vargas. A temática segue atual para cutucar autocracias que enlameiam a nossa triste América Latina:
“ Há três dias ela vinha lutando inutilmente. Era um lindo exemplar de borboleta. Corpo curto e fino, asas grandes, antenas crespas e longas, olhos pulados, tintas fortes e bem distribuídas. Digna mesmo de um colecionador nipônico ...
Insinuou- se pelo meu quarto sem ser pressentida e lá ficou por muitas horas, obstinada em sair, inconformada na prisão, como um pensamento que penetra num cérebro e se torna ideia fixa, obsessão.
Enquanto voejava de parede a parede, de um móvel para o teto ou vice-versa, não incomodou. Até enfeitou o ambiente. Até constituiu nota alegre, cousa inédita, ponto de reparo, pábulo para a vista e a curiosidade dos que lhe acompanhavam a volubilidade característica.
Ora estava aqui, ora ali, ora acolá. Neste momento imóvel, em descanso, estática, espalmada, aberta ao meio como um pequeno compêndio de cores. Naquele, aterrissada ao forro, de cabeça para baixo, violentando as leis físicas, movimentando as pétalas das asas, em ritmo de ensaio, como uma cor viva, animal, palpitante, destituída de aroma, mas rica de pólen ...
Depois, quando acertou com os vidros da janela, passou a molestar. Não fez mais silêncio. Não parava de bater. Não se dava tréguas a si nem aos demais.
Dia e noite, como uma cigarra elétrica, vibrava as asas incansáveis de encontro ao anteparo transparente que lhe dava a ilusão perfeita de achar- se em pleno espaço, sem peias nem limites. Debatia –se. Forçava. Investia. Trabalhava. Sem comer nem beber. Tudo pela liberdade ! E esta a poucos milímetros. E esta ali perto, sorrindo –lhe do outro lado, prometendo-lhe o maior dos prazeres, que é o de possui-la, de te-la nos braços, no coração e na alma, como a mulher a quem se ama e a quem se quer.
A pobre da borboleta então já me causava piedade.
Seus olhos através do vidro, enxergavam perfeitamente o espaço franco e acessível, a configuração rotunda das árvores lá fora, o azul do firmamento cheio de ar e claridade, a beleza toda da natureza. E não poder escapar ao destino e às circunstâncias! E não viver a vida que vivia! E não dar asas às próprias asas! E não ser como nascera! E não morrer ao menos como devera! ...
Ao fim de algum tempo, ou por importunado ou por compadecido, dispus-me a fazer a vontade da leve e inocente detenta de meu quarto. Ainda lutava. E o rufar de suas asas tinha qualquer cousa de bélico, de toque de tambor, de disposição combativa até a morte.
Concedi-lhe a fuga pela janela, que abri e de longe fiquei a observa-la na precipitação suprema. Ela saiu voando, como uma louca ou uma bêbada, em linha quebrada, aos ângulos obtusos, em itinerário de corisco, quase às cegas, mas subindo. Subindo. Subindo.
Nunca vi borboleta atingir tão alto!
A liberdade eleva o homem e as simples borboletas.
A pior das prisões ou o mais negro dos cativeiros é aquele em que se tem apenas a ilusão da liberdade ou a liberdade por um óculo “
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