“ Se há um deus que regula o futebol , esse deus é sobretudo
irônico e farsante , e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar
de tudo e de todos , nos estádios . Mas como é também um deus cruel , tirou do
estonteante Garrincha a faculdade de perceber sua condição de agente divino .
Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas
tristezas . O pior é que as tristezas voltam , e não há outro Garrincha
disponível . Precisa- se de um novo , que nos alimente o sonho .” Carlos Drummond de Andrade .
Mané Garrincha , o
anjo das pernas tortas , a alegria do povo , um
“ Carlitos “ das canchas brasileiras , um herói dos gramados e no mundo real um personagem típico das tragédias gregas , daqueles que a
vida abate como gado , sem dó nem
piedade . O futebol em sua época representava pura arte , um inocente lazer onde a diversão se achava acima dos cifrões
dos grandes negócios . Hoje o esporte bretão , amiúde , comandado por vampiros , põe em campo jovens moicanos tatuados ,
desdentados , com pernas de vidros , a maltratar a “ moça gorducha “ afeita a só saltitar com
um afago generoso e craques esses , apenas nas perigosas baladas da noite .
É a arte da guerra que engoliu o futebol – arte para sempre . Os times de agora se enfrentam em arenas
idênticas as da Roma Antiga , com
torcidas organizadas , um ninho de verdugos que só se fartam com o “sangue
dos manos “ . Decadência pura e
irreversível ! .
Manoel Francisco dos Santos
, Mané Garrincha , veio ao mundo praticar peripécias no dia 28 de
outubro de 1933 , no distrito de Pau Grande ,município de Macaé , no Rio de
Janeiro . Filho de uma humilde família de 15 irmãos . Teve estudo formal precário e incompleto . Integrou aos 14 anos o elenco do
time amador Esporte Clube Pau Grande .
Levado por um “ olheiro “ realizou testes no Botafogo de Futebol e Regatas
fazendo de cara umas graças com um
marcador de grande porte , o zagueiro da seleção brasileira , Nilton Santos ,
um “ João “ de vergonha . Praticamente jogou sua vida inteira no clube da
estrela solitária e no selecionado
brasileiro , onde sagrou-se campeão em 1956 ( na Suécia ) e bicampeão em 1960 ( no México ) . Cedo Garrincha casou-se com Nair que lhe presenteou com 9 filhas . Em 1968 ajustou- se
a um novo matrimônio , desta feita com a cantora Elza Soares
. Do enlace apareceu Garrinchinha
, que veio a falecer com a idade de 9 anos ,
afogado em um acidente
automobilístico . Ulf Lindberg , nascido em 1959 , tem com pai , Garrincha e como mãe , uma sueca ,
sendo fruto de um fugaz relacionamento
amoroso ocorrido durante uma
excursão do Botafogo por aquelas plagas . Um outro filho de Garrincha faleceu em
Portugal em 1992 , também de forma
trágica em decorrência de um acidente automobilístico . Garrincha envolveu- se em séria encrenca por conta da morte de sua sogra , mãe
de Nair , sua primeira esposa num
acidente em um veículo dirigido por ele
. Uma tragédia edipiana a perseguir o pobre e genial atleta .
Um Garrincha com excesso de peso , problemas crônicos no joelho , dependente
de bebida alcoólica , sem um acompanhamento psicológico adequado foi despencando
num abismo medonho , atuando em clubes de menor expressão até finalizar
como um urso de circo sendo mostrado em picadeiros mambembes . Num melancólico
final de tarde chegou a vestir o
uniforme coral do Ferroviário Atlético Clube , em
Fortaleza , no vetusto Estádio
Presidente Vargas , num jogo caça- níquel , prostrado com as mãos na cintura, cabisbaixo caçando com os olhos tristes um
passado glorioso que lhe fugira por entre as pernas tortas e para sempre .
“ Sua ilusão entra em campo no estádio vazio / uma torcida
de sonhos aplaude-o talvez / o velho atleta recorda as jogadas felizes / mata a
saudade no peito driblando a emoção / hoje outros craques repetem as suas
jogadas / ainda na rede balança seu último gol/ mas pela vida impedido parou / e para sempre o jogo acabou / suas
pernas cansadas correram pro nada / e o time do tempo ganhou / cadê você , cadê
você , você passou / o que era doce , o que não era se acabou / cadê você ,
cadê você , você passou / no vídeo tape do sonho , a história gravou / ergue os
seus braços e corre outra vez no gramado / vai tabelando o seu sonho e
lembrando o passado / no campeonato da recordação faz distintivo do seu coração
/ que as jornadas da vida , são bolas de sonho / que o craque do tempo , chutou
.”
Elza da Conceição Soares nasceu em 23 de junho de 1930 , na favela Moça bonita no Rio de
Janeiro . Filha do operário Avelino Gomes Soares e da lavadeira Rosária Maria
da Conceição . Curtiu uma infância pobre
, mas feliz de uma criança de morro , inclusive
trabalhando cedo equilibrando latas d’água na cabeça . Aos 13 anos obrigada
pelo pai contraiu matrimônio com um jogador de cartas de nome Alaúrdes Soares , dez anos mais velho que ela . Aos 14 anos de
idade foi mãe de um menino que cedo morreu de desnutrição . O segundo filho logo a seguir também faleceu pelo mesmo motivo : fome . Outros filhos em
série foram colocados pelo jovem casal naquele mundo hostil e pobre .
Aos 15 anos pesando menos de 40 quilos , Elza
compareceu a um programa de auditório na Rádio Tupi , “ Calouros em Desfile “ , comandado pelo compositor Ary Barroso ,
aquele da “ Aquarela do Brasil “ . Ao ser chamada ao palco causou alvoroço
aquela figura miúda e desnutrida .
Ary : - O que você
veio fazer aqui ?
Elza : – Seu Ary , acho que aqui a gente canta , né
?
Ary : - E quem disse
que você canta ?
Elza : - Eu canto
E mandou ver : “ Se
quiser fumar , eu fumo , se quiser beber , eu bebo / não me interessa mais a ninguém / se o meu passado foi lama /
hoje quem me difama / viveu na lama também / comendo a mesma comida / bebendo a
minha bebida / respirando o mesmo ar / e
hoje , por ciúme ou por despeito / acha – se com o direito de querer me
humilhar / quem foste tu ?/ quem és tu ? / não és nada / se na vida fui errada
/tu foste errado também/ se eu errei , se pequei / não importa / se a esta hora
estou morta / pra mim , morreste também ! “
Ary : - De que planeta você veio , garota ?
Elza : - Do planeta
fome !
Ary , boquiaberto : - Senhoras e senhores , neste exato momento
nasce uma estrela !
Elza , radiante , retornou
para o seu barraco no morro , de taxi ,
com o dinheiro do prêmio maior do programa . Tirara a primeira nota dez naquela vida de aridez de
deserto .
Em 1958 , Alaúrdes
sucumbiu a uma fulminante tuberculose ,
a peste vestida de branco . A então jovem
viúva Elza deixa aos cuidados da mãe seus filhos e parte para cantar em
boates e bares da noite afinando a voz para voos mais longos . O inicio do
sucesso veio com a gravação de “ Se acaso você chegasse “ de Lupicínio
Rodrigues . Depois foram se sucedendo um
sucesso após o outro . Eram os tempos de
bonança até que enfim batendo a sua
porta .
Elza e Garrincha viveram por mais de uma década um
tempestuoso romance acompanhado pela mídia como uma tragédia novelesca . Por esta época as glórias do “ anjo das pernas tortas “ já se perdiam no tempo . Em meio a
sucessivas internações por problemas gerados pelo excesso de bebidas
alcoólicas , o jogo da vida foi encerrado precocemente para o pobre Mané
em 20 de janeiro de 1983 , aos 49 anos
de idade . Elza segue ainda hoje seu
caminho sofrido “ cantando para não enlouquecer “ . Uma brava guerreira que
perdeu sérios embates para a vida mas ao
fim tornou-se vitoriosa , como “ A grande dama da Música Popular Brasileira” . Um exemplo de coragem e perseverança .
“ Sorri / quando a
dor te torturar /e a saudade atormentar / os teus dias tristonhos , vazios /
sorri / quando tudo terminar /quando nada mais restar /do teu sonho encantador
/ sorri / quando o sol perder a luz / e sentires uma cruz /nos teus ombros
cansados , doridos / sorri / vai
mentindo a tua dor / e ao notar que tu sorris / todo mundo irá supor
/ que és feliz “ .
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